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Ex-limpador de cocheiras recebe chance de ser atleta e se qualifica a Paris

Renderson Oliveira guarda na memória a primeira vez que esteve com João Victor Oliva. Ainda estava em idade escolar, mas a família já necessitava financeiramente do seu trabalho braçal. Limpava 30 cocheiras de cavalos por dia, ocupando o mais baixo nível da hierarquia da cutelaria onde o pré-adolescente era o filho do patrão.

Um abismo separava os dois garotos, que, hoje homens formados, comemoram juntos estarem com índice para disputar os Jogos Olímpicos de Paris no adestramento. Ambos são atletas, funcionários do mesmo haras, parceiros de toda hora, desde o café da manhã nas mesmas xícaras sujas. Mas o caminho que os levou até ali não poderia ser mais distinto.

João Victor não sabia nem engatinhar quando foi à sua primeira Olimpíada. Filho da rainha Hortência, acompanhou a mãe na campanha da prata olímpica do basquete em Atlanta-1996. Renderson estreou em Olimpíadas vinte anos depois, no Rio, como tratador de cavalos.

Era o responsável pelo bem-estar de Xamã dos Pinhais, a grande estrela do plantel da Coudelaria Ilha Verde, haras do empresário Victor Oliva, o ex-"rei da noite", principal criador da raça Puro-Sangue Lusitano, e seu patrão.

Mineiro de Ituiutaba, Renderson nunca havia montado um cavalo até mudar-se para Araçoiaba da Serra, no interior de São Paulo, para junto da família paterna, e ser avisado de que, já com 16 anos, precisava começar a trabalhar. Havia uma vaga no Ilha Verde, para limpar cocheiras. Um trabalho pesado, mas um bom emprego, uma carteira que ficou assinada por 13 anos.

Era meados de 2008 e o principal cavaleiro do haras, Rogério Clementino, também um homem preto, filho de uma empregada doméstica, estava em Pequim, na China, para ser o primeiro negro a defender o Brasil no hipismo olímpico. O cavalo dele, porém, não passou na inspeção veterinária, Rogério não competiu e, para fins estatísticos, esse tabu ainda não foi quebrado. Ainda.

"O adestramento é um esporte de complicado acesso, não é pra qualquer um. Você tem que trabalhar bastante, mas o custo é muito alto. O preconceito nem é pela cor da pele, é pelo acesso do dinheiro mesmo", diz Renderson, filho de um pedreiro e de uma cozinheira.

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Imagem: Rita Vitorino/divulgação

Foi Rogério — a quem ele chama Roger — que o ensinou o caminho das pedras: "Ele viu que eu era esforçado, trabalhador, e disse que, se eu conseguisse acabar o trabalho um pouco antes, poderia me juntar a eles, que eles começariam a ensinar a fazer outra coisas."

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Foi graças a seu esforço além do serviço contratado que, depois de mais de dois anos limpando cocheira, Renderson foi promovido a tratador dos cavalos de Roger.

À medida que ficava mais tempo com os animais, foi também aprendendo a montar e começou a frequentar competições, sempre como tratador. A chance de competir demorou, mas veio.

"Quando fui na minha primeira exposição, ganhei. Tinha uns cinco na categoria. Fui na segunda e ganhei de novo. Nessa já tinha uns 18, e ganhei com 71%. Foi quando o pessoal falou: tem coisa aí", lembrou.

Tricampeão brasileiro de cavalos novos, passou a conciliar a carreira de cavaleiro com a de fiel escudeiro de João Victor e tratador de seus cavalos. Tinha 22, e o amigo, 18, quando começaram a passar parte da temporada equestre na Europa. Foi à Olimpíada do Rio, a duas edições dos Jogos Pan-Americanos, a um Mundial, rodou o mundo. Até o que parecia decepção virar a grande chance: ficar fora da Olimpíada de Tóquio.

Caminho escrito em linhas tortas

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Imagem: Rui Pedro Godinho
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Dono dos melhores resultados que o Brasil já teve no adestramento, João Victor se classificou aos Jogos de 2020 montando Escorial, um animal pertencente não a seu pai, como de costume, mas ao haras português CampLine, para o qual já montava. Foi, portanto, o haras, e não a família Oliva, quem escolheu o tratador que iria a Tóquio, e Renderson ficou de fora.

Com João Victor no Japão, o haras ficou desfalcado de um cavaleiro no trato diário com os cavalos montados por ele, e Renderson foi contratado para fazer o serviço. Em junho de 2021, o ex-limpador de cocheiras mudou-se com a esposa e a filha para Portugal, onde estão há dois anos.

Ali, é atleta profissional do CampLine, haras do brasileiro Thiago Mantovani, que o surpreendeu com a ligação:

"Irmão, vocè acha que consegue fazer prova no Fogoso?".

A ideia já tinha passado pela cabeça de Renderson quando o cavalo finalista olímpico na sela do português Rodrigo Torres passou duas semanas no haras.

"Nossa, esse cavalo me serviria bem, hein?", pensou, como quem pensa no dia no prazer de um dia sair por aí dirigindo uma Ferrari.

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Conhecido por investir pesado na promoção do adestramento brasileiro, Mantovani garantiu que o português finalista olímpico não ficasse a pé, comprando novo animal para ele, mas repassou ao compatriota, que nunca havia disputado um GP na vida, o melhor cavalo lusitano.

A aposta deu certo. Em sete meses, Renderson já alcançou a pontuação mínima para ir aos Jogos de Paris e competir no Palácio de Versalhes. No mês passado, também na França, em Deauville, conquistou a sétima colocação em uma prova na qual os seis primeiros eram atletas olímpicos.

Renderson, porém, não depende só de si para ir à Olimpíada. Como há limite de um atleta por país classificado individualmente, e João Victor sai muito na frente por já estar somando pontos desde o ano passado, o caminho mais curto é o Brasil conseguir a vaga por equipes pelo Pan de Santiago.

Mas só isso não adianta. Em 2019 o Brasil também classificou-se pelo Pan, mas acabou perdendo a vaga porque não demonstrou, até o fim daquele ano, que tinha três conjuntos aptos a estarem na Olimpíada. Agora, o risco é acontecer o mesmo, visto que, além de Renderson e João, ninguém mais fez o índice.

"O pessoal tá se mobilizando, trocando de cavalo, para tentar conseguir até o fim do ano", afirmou.

Renderson está seguro de que a parte dele ele está fazendo: "Eu já tenho na minha cabeça o seguinte: 'Para eu conseguir tudo isso que está acontecendo, eu teria que ter uma chance de ouro e um cavalo fora de série. Eu só estou onde estou porque a Campline me confiou dar a montaria do Fogoso. Mesmo assim, eu sabia que teria que botar muitos pontos em cima de todos os outros, para não dar chance de me deixarem para trás."

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