Primeira mulher trans do skate explica por que decidiu competir no feminino
Lu Neto tinha duas certezas quando decidiu que era chegada a hora de iniciar os tratamentos de bloqueio de hormônios masculinos: se assumiria uma mulher transexual também no mundo do skate, inclusive com mudança de nome, mas não competiria na categoria feminina. Depois de 16 anos andando na elite do street e realizando manobras ainda inéditas entre as mulheres, seria injusto competir contra Rayssa Leal, Pâmela Rosa e todas as outras.
Há duas semanas, o plano foi posto em prática. Eliminada na primeira fase do STU de São Paulo, com um 29º lugar modestíssimo para quem já foi vice-campeã do torneio em 2018 e finalista de duas etapas no ano passado. Lu se deu conta que o que estava atrapalhando seu desempenho não era o shape, a rodinha, a academia... eram os efeitos de seis meses de tratamento hormonal.
"No início, meu pensamento era de: vou transicionar, mas vou continuar competindo no masculino porque vou ter a força igual sempre tive, vou ser uma Mulher Maravilha. E nos primeiros dois meses foi assim mesmo, eu mantive minha força. Depois, passei a não conseguir fazer o que fazia antes, e comecei a me frustrar. Troquei 10 vezes de shape e não conseguia fazer. Ficava botando culpa no shape, na roda, na pista", conta Lu.
"Minha endócrino[logista] tinha me avisado que eu perderia força, mas eu não tinha botado fé. As pessoas falam que a mulher trans tem muito mais força que a mulher cis, e eu também achava. Só nesta etapa do STU em São Paulo, que tinha uma pista muito maior, que eu percebi que não tinha força para subir nos corrimões altos, nos caixotes. Foi só ali que eu entendi que não era problema do shape, da roda, da pista, era que meu corpo estava mudando. Eu olhava minhas pernas e pensava: 'perdi minha perna, preciso fazer o funcional'. Mas é meu corpo ficando um corpo de mulher".
Ela admite, porém, que é difícil convencer disso quem não quer acreditar. "Se nem eu, que transicionei, acreditava que ia perder força, imagina quem só vê de fora. Só vai entender quem passar por isso."
Ex-Luiz Neto
Diferente de outras mulheres transexuais, que preferem apagar os registros da vida antes de transicionar, Lu Neto não vê problemas em dizer que, até muito recentemente, era Luiz Neto. A vontade já vinha há alguns anos, mas ela temia a consequência de uma decisão desse tipo na vida de quem vive de contratos de imagem.
"A cena do skate é meio cruel. Por conta de patrocinadores, por conta de imagem, de nome, eu tinha segurado muito, muito tempo. Mas fazia muitos anos que eu queria", conta Lu, que era tida como um "delicado homem metrossexual", segundo relato dela mesma.
Só tomou coragem com o apoio da namorada. Sim, namorada. Gênero e orientação sexual não são coisas relacionadas. O que antes era um relacionamento heterossexual entre Luiz e Kaliane, agora é uma relação homossexual entre Lu e Kaliane. Muda a nomenclatura, não a paixão.
"Foi difícil no início, porque ela era uma menina que não se atraía por outras mulheres, era uma mulher heterossexual. E com isso veio a insegurança da minha parte. Ela gostou de mim com um corpo masculino e não se atraía pelo corpo feminino. Mas com o passar do tempo, quando as coisas foram mudando, quando a gente foi conversando, a gente foi entendendo, ela acho que passou a me olhar de outra forma, com outros olhos. E quando a gente ama não é o físico que importa. Quando a gente ama, não tem essa de só vou amar um menino, ou só vou amar uma menina", avalia.
Lu, por sua vez, se assumia como pansexual (quem tem atração por pessoas, independentemente de sexo ou indentidade de gênero), mas cada vez mais vinha se relacionando só com mulheres.
Masculino ou feminino?
Desde 2021, cada modalidade olímpica define seus critérios para a inclusão de atletas trans, mas a partir de uma diretriz do COI de "não presunção de vantagem". No skate, há um caso conhecido: Leo Beker, que foi bicampeã da SLS, grande nome do street antes de Rayssa Leal, e que transicionou para o masculino.
A World Skate, federação internacional de skate e patins, optou por seguir os parâmetros sugeridos pelo COI em 2015, exigindo tratamento de um ano e controle de testosterona até um máximo de 5nmol/L. Dentro dessas regras, no último dia 24, a patinadora Maria Joaquina foi campeã mundial júnior de patinação inline.
Naquele mesmo dia, Lu comemorou seu 29º aniversário e circulou no STU de São Paulo com aspecto mais feminino (cabelo mais comprido, maquiagem, roupa justa, decote, saia). Antes do torneio, ela havia pedido pela primeira vez à organização para ser tratada como mulher, seja com o uso do gênero feminino para se referir a ela na transmissão, ou com o uso do nome "Lu Neto", que ela já usa em todas as redes sociais.
O objetivo dela não era competir no feminino, mas seguir no masculino até ser 'brecada" por ser notadamente uma mulher, já que pretende fazer diversos procedimentos estéticos possíveis para ficar mais feminina. Mas o pedido para ser tratada no feminino fez a CBSk discutir o assunto e decidir adotar, para os torneios nacionais, os mesmos critérios do COI e da World Skate.
Quando a confederação procurou a skatista para informar a novidade, há uma semana, ouviu que ela havia mudado de ideia depois de perceber o impacto do tratamento na sua performance. Se o período de transição é de um ano e ela começou o tratamento há seis meses, então em abril do ano que vem Lu estará competindo entre mulheres.
Vai ter vantagem?
Um risco para Rayssa, Pâmela e Gabi Mazetto? Lu diz que não. "Estava vendo a linha do último evento feminino, e eu não ganharia da Rayssa. Não pegaria nem um pódio. Tem manobra que ela faz que eu não consigo. Eu nunca fui o menino que sabia todas as manobras. Eu ganhava porque sabia jogar muito bem, estratégia e tal."
Lu cita dois exemplos, de uma live no Instagram onde os seguidores pediam as manobras. "Um kick board que eu fazia de olho fechado, eu demorei umas 20 e poucas vezes para acertar. Um flip nose que eu fazia fácil, eu fiquei uns 15 minutos para acertar a manobra, apanhando mesmo. Por mais que seja triste pra mim, meu nível diminuiu, meu skate tá diminuindo."
A skatista de 29 anos entende que sua única vantagem sobre as mulheres cis é saber como fazer determinadas manobras que não fazem parte do repertório das mulheres. Mas cita que Rayssa, por exemplo, leva vantagem importante em outros quesitos.
"Ela já está acostumada com a força dela. Como ela é mais nova que eu, e tem a questão de eu estar tomando hormônio, meu corpo é mais frágil e velho que o dela. Se ela cair no chão e eu também, vai doer muito mais em mim do que nela. A minha vantagem hoje é já ter tido essa força e ter tido a experiência de fazer certo tipo de manobra. Não quer dizer que eu vá conseguir fazer de novo, não é uma coisa de outro mundo."
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