Seletiva do vôlei reúne mais de 4 mil sonhos e é cruel com 97% deles
Já era madrugada quando o técnico Marcus Bichini foi embora para casa, exausto após 16 horas de trabalho, e carregando na mochila o peso de ter dito não para o sonho de pelo menos 2 mil meninas só naquele dia. No sábado passado, quando conversou com a reportagem, outros 1,6 mil adolescentes, desta vez meninos, faziam longa fila em caracol para buscar a chance de vida e, muito provavelmente, ouvir "não".
A peneira do Centro Olímpico, clube ligado à prefeitura de São Paulo e tido como um dos principais celeiros do vôlei brasileiro, acontecia do lado de fora do ginásio do Ibirapuera. Enquanto milhares assistiam Rayssa Leal dar show na SLS de skate, outras ao menos 2 mil pessoas buscavam abrigo do sol aguardando sua vez de ter 10 minutos para mostrar serviço.
"No feminino a gente teve uma média de 2,3 mil meninas, mas um nível técnico baixíssimo. 97%, 98% das meninas não têm condição, não tem como aproveitar. O sonho é muito grande para todos. O pai chega: 'Meu filho tem um sonho...', mas infelizmente o sonho não é para todos. Em todos os setores é assim que funciona. Para passar para medicina tem não sei quantos candidatos por uma vaga também", diz Marcus, que é coordenador de vôlei no Centro Olímpico.
A fala dele é tão cruel quanto o processo, que se diferencia de um vestibular pela subjetividade. O vestibular tem respostas certas e erradas e o aluno que for mal na primeira tentativa pode, no ano seguinte, mais estudado, ser aprovado. No cruel mundo do vôlei, altura é fundamental e, a falta dela, para sempre impeditiva. E o tempo para uma avaliação, sempre subjetiva, é curto.
Gente de mais, vaga de menos
Diferente de outros clubes, o Centro Olímpico não restringiu a peneira a quem tem determinada altura, e também por isso recebe muito mais inscrições do que seus pares. "Faz três anos que eu tenho esse sonho. Nunca tinha ido em uma peneira porque queria tentar entrar direto no Centro Olímpico, que é meu sonho, mas estou sem esperança. Cheguei na hora, mas é uma demora para caramba para entrar. É muita gente", diz Felipe, de 14 anos, que mora na divisa entre o Morumbi e Paraisópolis, na zona sul.
Ele já estava há pelo menos 2h30 na fila quando conversamos. Até ali, ao menos 700 garotos haviam sido avaliados, e mais 400, pelo menos, aguardavam do lado de dentro dos muros do Ibirapuera para serem avaliados nos galpões que por anos abrigaram as equipes de judô e vôlei do Projeto Futuro, centro de formação do governo estadual.
A fila terminava no antigo "Palácio do Judô", onde os atletas eram identificados e avaliados fisicamente antes de seguirem para o galpão poliesportivo, onde tinham de 10 a 15 minutos para mostrar o que sabem fazer com a bola de vôlei. Na peneira feminina, que começou 8h30 e só terminou por volta da meia-noite, no dia 11, isso gerou muita reclamação.
"Fiquei horas e horas sentada esperando ser atendida, para na hora de jogar ficar 10 minutos e ainda ouvir que somos de nível baixo e que precisamos estudar, porque o vôlei é incerto", reclamou uma jogadora pelo Instagram. "Horas de espera e na seleção não houve nem um olhar para as meninas. No final da peneira, o treinador informou às meninas que elas não estão no nível das atletas dele. Mas o Centro Olímpico é justamente para isso.. Formação!", postou uma mãe.
A temporada de peneiras tem sido polêmica. O São Paulo também não filtrou quem poderia participar da peneira feminina, reuniu mais de 5 mil pessoas em seu ginásio, entre atletas e familiares, a situação ficou insustentável, e a avaliação foi suspensa. O próprio Centro Olímpico, na peneira do vôlei de praia, lançada depois, restringiu altura. No masculino, com menos de 1,75m não entra nem no sub 14.
Para que serve uma peneira?
Essa é uma discussão que permeia as peneiras e o próprio Centro Olímpico, clube criado para reunir os melhores atletas da região nas categorias de formação, e que não serve como escolinha. "Nós não trabalhamos com a iniciação", argumenta Marcus. "Essa categoria mesmo, sou eu o técnico, na quarta-feira fomos campeões estaduais. O sarrafo é alto. Mesmo assim, nós avaliamos todos. Tem pai que não acredita: 'Você só deu 10 minutos'. Mas, com 25 anos de vôlei a gente já tem um pouco de noção para saber quem vai e quem não vai."
As peneiras reúnem meninos e meninas nascidos entre 2006 e 2012. Os aprovados na primeira fase voltarão ao Ibirapuera para serem melhor avaliados em uma segunda fase, nas próximas duas semanas. Diante da polêmica sobre uma suposta má avaliação, o Centro Olímpico deve abrir um chamamento para quem foi reprovado enviar vídeo jogando e, eventualmente, ganhar uma segunda chance.
Sonhar não custa nada
Enquanto os garotos nascidos em 2008 e 2009 eram avaliados, os meninos da geração 2006/2007, que buscavam vaga no time sub 19 do ano que vem, aguardavam na calçada da Rua Manoel da Nóbrega. Na cabeça da fila, Celso e Andressa faziam companhia ao filho mais velho, que controlava a ansiedade dando mamadeira para o irmão caçula. O do meio estava em algum lugar da fila de dentro, esperando a hora de ouvir seu 'não'.
"Ele começou a jogar vôlei faz quatro meses, muito influenciado pelo irmão, e está aqui mais pela experiência", explica o pai. O mais velho tinha maior expectativa. Morador de Carapicuíba, pedala meia hora para ir ao treino, e meia hora para voltar, todos os dias. Nos fins de semana, ainda joga em outra equipe. É central, mas faria o teste como oposto.
"Tenho 1,82m, e os centrais são tudo caras de 2m. Sei que não dá, então vou tentar de oposto. Se eu não passar tenho que seguir em frente, pegar outras peneiras, mas aqui é onde estou querendo passar", diz ele, que do Ibirapuera iria, com a família, para a Praia Grande, para mais uma peneira na manhã seguinte.
"O que eles quiserem fazer a gente vai estar aqui para dar apoio. Não é um momento para decidir a vida. É um dos caminhos possíveis. Tem também o estudo, tem o mercado de trabalho. Se caso não for aprovado aqui, tem que continuar atrás", comenta o pai.
Do lado de dentro do portão, pais e filhos são separados. Enquanto os atletas vão para a fila da peneira, os acompanhantes ficam de lado, esperando e torcendo. "A gente tenta manter o pensamento positivo, mas a gente sabe que a chance é muito pequena, então a gente já prepara eles pro pior, mas eles sempre acham que vai dar. A gente tem que dar as duas perspectivas, falar que o esporte é complicado e que o estudo não pode ser deixado de lado", diz uma dessas mães, Patrícia.
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