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Candidato a vencer a São Silvestre comia terra para matar a fome no sertão

Melhor brasileiro da última edição da São Silvestre, Fábio Jesus Correia vai largar no domingo (31) como um dos favoritos a ficar com o título, buscando encerrar um jejum de 13 anos sem uma vitória do Brasil na principal prova de rua do país. Um ano depois de brilhar mesmo dividindo o tempo entre os treinos e o trabalho como coletor de lixo, o baiano chega credenciado como melhor da temporada de provas preparatórias.

Fábio já venceu por ter chegado vivo aos 24 anos. Filho de uma mulher que tinha oito crianças para criar na pequena Monte Santo, no sertão da Bahia, passou a primeira infância na rua, criado por si só, sem ter o que comer.

"Eu dormia nas valas, comia terra. Minha barriga era assim, bem grandona, cheia de verme", conta, enquanto mostra com a mão o tamanho da antiga barriga, muito sobressalente à atual, de atleta. Foram anos tomando Benzocreol, um medicamento veterinário, para matar os vermes.

Fábio conta que uma senhora até preparava uma mamadeira para ele, em solidariedade com o menino passando fome na rua. "Mas minha mãe de sangue bebia, porque ela também estava com fome, e não me dava para beber", lembra. Até hoje ele é conhecido em Monte Santo por "Futuca", já que vivia "futucando" atrás dos outros, pedindo alguma coisa.

Foram anos de "muita fome", até ser adotado por Francisco e Atalina, um casal que também não tinha posses, mas onde havia comida à mesa. "Eu ia para a escola e levava minhas coisas na sacolinha. Me davam caderno, lápis, coisas simples, que eu não tinha. Também não tinha dinheiro para comprar comida na escola, ou na rua. Tinha vontade de comer, mas não tinha dinheiro".

Até hoje isso está presente na vida de Fábio, agora de forma oposta. Como dizer para o hoje atleta de alto rendimento não comer o rodízio japonês inteiro, ou maneirar nas peças de picanha da churrascaria, depois de tudo que ele viveu?

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Imagem: Miguel SCHINCARIOL / AFP

Dom de correr

Pai aos 16, Fábio ainda era adolescente quando largou a escola e assumiu as responsabilidades familiares. "Não queria que acontecesse com ele o que aconteceu comigo, ser criado pelos outros, passar necessidades", diz. Trabalhava em uma fazenda quando foi convidado a participar de uma corrida de rua na cidade, a Corrida da Paz Troféu Ivanildo Dias.

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Nascido ali, Ivanildo trabalhava como coletor de lixo em São Paulo quando participou de uma corrida interna para funcionários da concessionária EcoUrbis, ganhou como prêmio a inscrição na São Silvestre, e passou a conciliar o trabalho com uma carreira de corredor. Em busca de dar a mesma oportunidade a outros garotos como ele, passou a promover uma prova com seu nome na Bahia.

Sem nunca ter treinado, Fábio já foi bem na primeira vez que correu. Na "cara e coragem", sem qualquer técnica, foi ainda melhor na segunda, e ganhou a terceira. Ivanildo queria trazê-lo a São Paulo, mas o hoje candidato ao título da São Silvestre tinha família para criar, e só sairia da Bahia com emprego garantido no Sudeste. Ivanildo conseguiu que Fábio fosse seu colega coletando lixo.

"Deus me deu força para conseguir vir. Minha mãe estava bastante doente, em cima da cama, e na hora de me despedir foi triste. Eu sabia que vinha e não veria mais ela. E dito e feito: ela morreu antes de eu conseguir voltar", lembra Fábio, que morou na casa de Ivanildo e demorou a começar a treinar. "Minha preocupação era só trabalho, não pensava em ser atleta. Queria conquistar com trabalho o que eu não tinha na Bahia".

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Imagem: Foto Radical/Divulgação

Do sertão ao Morumbi

Mas havia um lugar reservado para Fábio também como atleta. Coordenador do Kiatleta, projeto social que por décadas foi associado ao São Paulo, Toninho Carlos também estava naquela prova na Bahia e havia se impressionado com o talento do jovem de então 19 anos. Tão logo conseguiu, levou Fábio para treinar no Morumbi.

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Talento não faltava, mas mantê-lo atleta foi um desafio. Fábio morava e trabalhava em Itaquera, na zona leste da cidade, e o Morumbi fica na zona sul. O turno como coletor entrava madrugada adentro, e o melhor horário para treinar é de manhã. Não dava tempo de descansar de um trabalho bastante desgastante fisicamente.

Além disso, havia os vícios, que Fábio trouxe de uma cidade sem opções de entretenimento. "A diversão é se arrumar, ir para o bar, e encher a cara. Eu tenho marcas que são de bebida. Eu bebia e caía de moto. Era o único lazer que eu tinha", conta. Mesmo em São Paulo, os porres eram constantes, e terminavam com Fábio, de ressaca, ligando para Toninho e para o técnico Elvis Conceição dizendo que não queria mais.

Não foram poucas as vezes que brigaram, romperam, mas Fábio sempre voltava, e sempre entregando resultado. Foi vice-campeão brasileiro sub 23 nos 10.000m em 2020 e campeão sul-americano da mesma categoria no ano seguinte, no Equador. Também faturou um segundo e um quarto lugares no Pan Júnior, na Colômbia.

"Foi depois que eu viajei para fora e consegui as coisas que eu não tinha esperança de ganhar que eu comecei a levar mais a sério. Quem imaginava ter um tênis de R$ 2.000 no pé? E hoje eu tenho", diz ele, que é apoiado pela Adidas. Elvis ajudava fazendo-o acreditar: mostrava o ranking brasileiro, os tempos de Fábio, e os de atletas com anos e anos de treinamento, bem atrás dele.

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Imagem: Alexandre de Paulo/ADPhoto/Siemaco

Atleta de ponta

Fábio ainda trabalhava diariamente como coletor de lixo quando foi quarto colocado na São Silvestre do ano passado, melhor brasileiro, com o tempo de 46min13s. Na chegada, levou uma bronca do técnico.

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"Ele soltou! Não fez força na Brigadeiro. Qualquer chegada ele faz força, mas ele olhou para trás e entrou vibrando na Paulista. Dava para pegar o terceiro colocado tranquilo, mas ele se conformou. Dava para ter corrido abaixo de 46 minutos tranquilo", diz Elvis.

O bom resultado fez o São Paulo, que então tinha longa parceira com a Kiatleta, oferecer um emprego a Fábio como atleta de carteira assinada, algo que o clube tricolor não tinha há anos — a última havia sido Maurren Maggi. Entre a saída do emprego como coletor e a contração pelo São Paulo, porém, ele teve negado visto na Austrália para disputar o Mundial de Cross Country, no começo do ano passado. "Ali a vontade foi de largar tudo, desistir de correr".

Mas não largou, e teve ótima temporada. Estreou em meias-maratonas ganhando tanto a da Asics e sendo vice na da Adidas, em julho e agosto, ambas no Rio. No começo do mês, encerrou um jejum de quatro anos sem vitórias brasileiras na tradicional Volta Internacional da Pampulha, em Belo Horizonte, colocando mais de um minuto de vantagem sobre o campeão pan-americano Ederson Vilela.

Na última corrida de preparação para a São Silvestre, há duas semanas, travou batalha alucinante na chegada da São Silveira, em Barueri, vencida na última passada pelo finalista olímpico Altobeli Santos, que não vai correr em São Paulo na virada do ano.

Toninho, que viu o São Paulo romper a parceira com o Kiatleta este ano e demitir também Elvis, acredita que o pupilo é forte candidato ao título da São Silvestre. "Ele está super motivado. O filho dele veio da Bahia para ficar junto dele, e a esposa dele está grávida, o Fábio vai ser pai de novo. Ele vai para ganhar este ano. Está super bem treinado e motivado", diz.

Além de Fábio, outro destaque do Brasil para a prova deste ano é Johnatas Cruz, do Praia Clube, curiosamente ex-colega de Fábio na EcoUrbis. A elite terá, entre outros, o ugandense Moses Kibet, que venceu Fábio na Meia do Rio, e os quenianos Vestus Cheboi Chemjor, que ganhou as maratonas de São Paulo e Porto Alegre este ano,e Timothy Kiplagat Ronoh, vice em Roterdã (Holanda) este ano e campeão em Melbourne (Austrália) e Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos) em 2022.

Reportagem

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