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Herdeiro dos Ermirio de Moraes assume vaga de príncipe por título do Dakar

Lucas Moraes poderia estar fazendo, literalmente, qualquer outra coisa da vida. Herdeiro de uma das famílias mais ricas do país (ainda que não tenha o 'Ermirio' como segundo nome) e milionário por conta própria depois de criar e vender uma startup avaliada em mais de R$ 200 milhões, o piloto abre o ano buscando percorrer quase 8 mil quilômetros no meio do deserto, atrás de um título inédito para o esporte nacional.

Nunca um brasileiro conquistou o primeiro lugar dos carros no Rally Dakar — nem quando a maior prova off road do mundo ainda usava o "Paris Dakar". Mais do que isso: até o ano passado, quando Lucas fez a melhor estreia de todos os tempos e chegou em terceiro lugar, nunca um piloto do Brasil havia sequer disputado a taça diretamente.

Agora, ele fará sua estreia como piloto da equipe oficial da Toyota, substituindo uma lenda dos ralis, o príncipe catariano Nasser Al-Attiyah, que venceu a provas nos últimos dois anos a Toyota Hilux que Lucas vai dirigir no deserto saudita. "A gente sonha grande para esse ano, sem dúvida. Como atleta profissional, a gente tem sempre que buscar a vitória, mas a gente também sabe o tamanho do evento. É a prova mais difícil do mundo, e ter um carro confiável é importante, mas é sempre importante saber respeitar a corrida", disse ele à coluna.

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Imagem: Kin Marcin / Red Bull Content Pool

Talento puro

No rali, tanto quanto em qualquer categoria importante do automobilismo, ninguém chega à elite sem ter bastante dinheiro, ou o apoio de quem tem bastante dinheiro. Mas, assim como na Fórmula 1, também ninguém é contratado para dirigir um carro bicampeão, ou chega ao terceiro lugar na prova de estreia, sem ter um enorme talento.

Lucas provou esse talento desde cedo. Dirigiu o primeiro motor aos 4 anos, quando pediu uma motinho para o pai, e disputou a primeira prova de motocross logo depois. O hobby começou a ser levado a sério aos 14 anos, quando um ônibus aposentado da Cometa passava duas vezes por semana por Alphaville, onde ele morava, para buscar garotos e suas motos para treinar em locais mais afastados.

"Toda terça e quinta eu saía para andar de moto, e comecei a entender de competição, ter equipe, alguém que poderia me ajudar com a mecânica da moto. Foi uma experiência incrível", lembra Lucas. Neto do industrial Antônio Ermírio de Moraes, que quando morreu em 2014 possuía uma fortuna avaliada em US$ 12,7 bilhões, o então adolescente teve seu primeiro emprego aos 15 anos, como piloto de motocross.

"A Suzuki me contratou para ser piloto deles no Brasileiro de Motocross. Fui ser piloto, foquei no esporte, até parei de estudar. No ano seguinte, a Yamaha me contratou", lembra Lucas, que se destacou correndo no Brasil, e foi contratado para competir nos EUA, berço do motocross. "Fui só o segundo ou terceiro brasileiro a ter essa experiência. Era muito intenso, tinha que treinar todos os dias, mas voltei com um problema no quadril, uma doença, que gerou uma artrose, que o esporte de alto rendimento ajudou a piorar. Até hoje tenho uma prótese no quadril."

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Imagem: Divulgação

Vem de berço

Levaria mais de 10 anos para Lucas reaparecer como piloto de destaque, desta vez entre os carros, mas a história dele com o rali começou muito antes. Marcos Ermirio de Moraes, o MEM, seu pai, foi dono e promotor do Rally dos Sertões, principal prova brasileira, de 1990 a 2019. "Eu brinco que o Sertões é meu irmão mais novo, um ano mais novo. Eu vi ele crescer", diz Lucas.

Apesar de piloto nas horas vagas, que alugava um carro e ia correr, só foi estrear na prova do pai em 2018, com um veículo bem mais simples do que os que disputavam a ponta. No ano seguinte, já ganharia o título, em uma prova que mudou sua carreira.

"Ali eu fui entender o nível que eu precisava andar para ganhar os Sertões. Em 2018 eu corri com um carro nacional, não era para disputar a ponta. Mas quando você tem um carro que você sabe que vai aguentar os 10 dias, você pode andar muito mais rápido, você muda o estilo de pilotagem. Esse entendimento foi impressionante. 'Caramba, então é assim que anda?'."

Em uma prova em que Cristian Baumgart, então tricampeão consecutivo, e Guilherme Spinelli, único penta dos Sertões, tiveram problemas técnicos, a vitória caiu no colo de Lucas, que então competia pela MEM Motorsport. No ano seguinte, seu pai, o MEM, passou a dirigir o outro carro da equipe/família.

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Startupeiro

Naquele momento, Lucas se dividia entre a descoberta de que tinha um enorme potencial como piloto de rali e a dedicação à empresa da vida. Quando ficou impedido de correr de moto, foi concluir os estudos, formou-se em administração, e seguiu para os EUA, para o Vale do Silício.

"Queria entender o que estava acontecendo ali, que estava transformando o mundo. Fui para a Universidade de San José e me encantei por IA (inteligência artificial). Conversando com um amigo, estudando ideias, a gente decidiu criar a Olívia", conta.

A Olívia foi/é um aplicativo de controle financeiro, pioneiro no Brasil, que usa inteligência artificial para ajudar o usuário a economizar. A Startup foi vendida para o Nubank em 2021, quando estava avaliada em R$ 259,4 milhões, segundo a AgeRio.

Lucas continua trabalhando para a Olívia, como administrador e sócio. Hoje, as duas empresas de nome "Olívia AI" têm capital social somado de mais de R$ 100 milhões. "Hoje a gente tem o time dentro do Nubank e eu sou um dos executivos do Nubank que ajuda a fazer essa integração", explica. Parte da tecnologia da Olívia está incorporada no app do banco.

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Um salto até a Arábia Saudita

O sucesso no rali, diz Lucas, não tem relação direta com a venda da empresa, que chegou a ser patrocinadora do carro dele no Sertões. Chegar ao Dakar já era um plano desde a vitória de 2019, mas o piloto entendia que precisava de mais experiência para se arriscar na prova mais perigosa do mundo.

"Queria correr mais em deserto, fazer treinamento em duna. Mas, claro, também queria ter a equipe certa, patrocinadores alinhados, montar uma estrutura internacional, para fazer essa migração. É como um piloto sair do kart para a Fórmula 1. Não é uma passagem direta", observa.

Também não é uma passagem barata. A estreia no Dakar foi pela Overdrive, uma equipe "privada" da Toyota, com uma Hilux que demandou investimento de Lucas e das marcas por trás dele, com destaque para a Red Bull, que passou a investir pesado no brasileiro. "É como se eu tivesse corrido pela AlphaTauri, e agora estivesse na Red Bull [Racing]", explica ele, citando as equipes de F1 também ligadas ao patrocinador.

"Com o resultado que a gente teve, as coisas começaram a mudar um pouco, aumentaram minhas chances de virar um piloto de fábrica. No Dakar mesmo já tive umas conversas com fábrica da Toyota, em junho a gente ganhou um especial no Mundial, na Espanha, o time deles estava lá e viu. Quando o Nasser sair, meu agente, o Geraldo Rodrigues, começou receber contatos para eu virar piloto oficial", conta Lucas, citando o empresário que já trabalhou com Rubens Barrichello, Tony Kanaan e muitos outros.

"É um sonho muito grande estar numa equipe desse tamanho depois de tantos anos tentando. Nunca imaginei que iria acontecer", continua o brasileiro, que assinou contrato de dois anos, que inclui o Dakar e o Mundial de Rally. Na equipe de fábrica, ele acompanha de perto a evolução do carro, tem mapas diferentes para todo tipo de teste de motor, e maior liberdade de setup de suspensão, por exemplo.

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Lucas terá como navegador, no Dakar, o espanhol Armand Monleón, que disputou oito vezes a prova entre as motos e fez a migração para os carros como navegador. Os carros da Audi são, em tese, favoritos, mas o brasileiro é apontado como um dos candidatos, depois de alcançar o melhor resultado de um piloto do país na história dos carros no Dakar — até então, o recorde era o oitavo lugar de Kleber Kolberg, em 2002, pela Mitsubishi.

Ele sabe que uma vitória pode mudar para sempre a realidade das provas off-road no Brasil, um mercado que a família Moraes conhece muito bem. "Quando eu vi a linha de chegada este ano [em 2023], me veio isso à cabeça: espero que seja um estopim para ajudar o esporte no Brasil. Até então eu não tinha pensado nenhuma vez nisso. É uma honra muito grande poder estar nessa posição, porque não é fácil chegar, disputar com essas lendas, não é fácil conseguir uma vaga numa equipe de fábrica, sem dinheiro envolvido, sem comprar o passe. Eu diria que é uma responsabilidade muito grande, mas me sinto muito honrado. Temos grandes eventos no Brasil, muitos pilotos, uma comunidade enorme, e daria o meu melhor por ela. "

Reportagem

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