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Paulo Anshowinhas

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Anshowinhas: Pista no parque abre o baú de uma viagem no tempo sobre skates

Ibiraboys - Anshowinhas, Edu, Salada, Tommy, Bolota, Folha (em pé), Kuge e Gralha - Arquivo Pessoal
Ibiraboys - Anshowinhas, Edu, Salada, Tommy, Bolota, Folha (em pé), Kuge e Gralha Imagem: Arquivo Pessoal

Colunista do UOL

18/11/2022 04h00

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Se você pode sonhar, você pode fazer. A conhecida frase de Walt Disney, que serviu de inspiração para a "Fadinha" Rayssa Leal conquistar sua honrada medalha de prata nas Olimpíadas de Tóquio, pode ser usada novamente desta vez para contar a odisseia dos Ibiraboys, grupo pioneiro de skatistas que durante quatro décadas sonhou com uma pista de skate no Parque do Ibirapuera.

Paciência, resistência e persistência foram atributos essenciais dessa turma de amigos, da qual eu faço parte com muito orgulho, que atravessou o final do século 20 em busca de um objetivo agora conquistado.

O surgimento da célula Country Boys, por volta de 1975, foi a semente que culminou com o aparecimento dos Ibiraboys, que reunia skatistas das mais diversas tribos sob a Marquise do Ibirapuera, um local coberto, de piso plano, liso e perfeito para deslizar com as rodinhas.

Os Country Boys eram formados por praticantes de free style (estilo livre) com apelidos curiosos como Bolota, Folha, Thronn, Gralha, Tijolo, Salada, Kuge, Anshowas, Teco, Tommy, Aladim e Pois É, entre outros tantos, que sem saber criaram um revolucionário laboratório de cultura urbana com linguagens exclusivas, elementos da moda, da música, das artes e que criou ramificações que viraram tendências até hoje.

ibiraboys - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Skatistas Ibiraboys posam em frente a foto clássica na Marquise em 2016
Imagem: Arquivo Pessoal

A trajetória dos Ibiraboys se transforma em um paralelo com a evolução do skate no Brasil, com tramas que parecem roteiro de cinema.

O confronto entre grupos rivais de skatistas em competições visto no filme "Dogtown and Z-Boys" também teve sua versão tupiniquim. Os Wave Boys, skatistas de vertical de elite da extinta pista de Wave Park, que criaram sua própria versão de Dogtown ao inventarem o grupo "Pig City", antagonizavam diretamente com os Ibiraboys, os skatistas do solo plano e das ruas, mais ao estilo marginal dos "Daggers", da Califórnia, do que os skatistas da Powell Peralta.

As equipes uniformizadas que começavam a surgir —como DM/Pepsi, Costa Norte e Beira Rio— contrastavam com o visual mais punk rocker dos Ibiraboys, que levavam a tiracolo seus Walkman modelo Sony Sports de cor amarela, e fitas cassetes personalizadas com nome das bandas escritos a mão.

pig city - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Skatistas da Pig City em foto de 1978 no Parque do Ibirapuera
Imagem: Arquivo Pessoal

A frase "let's make some noise" (vamos fazer barulho) pode ter surgido nesta época depois de ouvir trilhas sonoras de Dead Kennedys, Black Flag, Bad Religion, The Clash, Offspring, Agent Orange, Oingo Boingo e Devo, sem falar no hit obrigatório, a canção visceral "Possessed to skate" (Possuído pelo skate), da banda Suicidal Tendencies, uma das precursoras do skate rock.

As gangues, as baladas, e a comunicação na era pré-internet

Assim como no filme "Warriors - Os Selvagens da Noite", as aventuras dos Ibiraboys não se limitava às arenas de competição e avançavam noite afora. De skate, iam para bares, baladas, casas noturnas e "inferninhos", como Madame Satã, Cais, Hoellisch, Napalm, Gimba, Anny 44, Rose Bombom e Aeroanta em busca de diversão até o dia amanhecer.

E a temperatura esquentava quando grupos rivais como "Os Moemagem" surgiam sempre de preto, ou os Panela Wheels, o pessoal de Campon, ou até mesmo os temíveis "Carecas do ABC" se encontravam no mesmo ambiente e acabavam se estranhando.

Esse estilo de vida era retratado através de uma forma de comunicação extremamente criativa, as "cartas-punks", correspondências secretas que transitavam entre os Ibiraboys e skatistas de outros estados, com conteúdo politicamente incorreto, escritas e desenhadas a mão, com recortes de revistas e que levavam uma semana para chegar ao destinatário, o que criava uma grande ansiedade por novidades.

cartas punks - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
As cartas punks do skatista Tai Tai Warwick para os Ibiraboys
Imagem: Arquivo Pessoal

Os fanzines surgiram logo na sequência, como o Skate Zine e Skate News, e abriram espaço para as revistas especializadas, como a Revista Yeah! e a Overall, na época em que não havia internet nem telefone celular.

Em 1988, o então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, despachava do seu gabinete onde hoje se localiza o Museu Afro Brasil, no final da Marquise do Ibirapuera, e ficava tão incomodado com o barulho das rodinhas dos skatistas que decidiu proibir o skate no Parque do Ibirapuera.

proibicao de skate - Reprodução Revista Yeah! edição número 10 - Reprodução Revista Yeah! edição número 10
Recortes de jornais de 1988 sobre proibição de skate em São Paulo
Imagem: Reprodução Revista Yeah! edição número 10

Confrontado por um grupo de praticantes pela medida arbitrária, Jânio decretou de forma autoritária a proibição de se andar de skate em toda a capital paulista.

A revista Yeah!, da qual eu era o editor/fundador, fez uma matéria de capa chamada "Andar de Skate Não é Crime", que viralizou e chegou até os ouvidos da candidata a prefeita Luiza Erundina. Ela se comprometeu a liberar o skate na cidade caso fosse eleita.

skate nao é crime - Reprodução - Reprodução
Capa da revista Yeah: "Andar de skate não é crime"
Imagem: Reprodução

Erundina ganhou o pleito, e uma das suas primeiras medidas, em 1989, foi derrubar o decreto de proibição de Jânio e liberar o skate novamente para todos.

Em 15 de setembro de 1990, entrevistei a prefeita Erundina e levei meu skate comigo. Ela topou o desafio e subiu no carrinho, o que rendeu uma matéria de capa no Jornal da Tarde.

"A prometida pista do Parque do Ibirapuera só depende de vocês. Se a Câmara Municipal liberar as verbas antes do fim do meu mandato, ela estará pronta", afirmou a prefeita na época. Mas esta promessa não se cumpriu.

Os Ibiraboys não se renderam, e na década de 90 surgiu Alexandre Magno Abrão, o Chorão, que criou a banda Charlie Brown Jr. e se tornou o principal embaixador do skate nacional. Nos braços, tinha tatuado as frases Marginal Alado e Skate Por Toda Vida, expressões de liberdade e rebeldia.

Em 2017, a arte e o design se alinharam na tentativa de conquistar uma pista de skate no parque. Durante a 32ª edição da Bienal do Ibirapuera, a artista coreana Koo Jeong A construiu uma obra de arte interativa em formato de bowl de concreto que serviu de pista temporária, mas foi aterrada poucos meses depois.

obra de Koo Jeong - Arquivo Pessoal - Arquivo Pessoal
Skatistas Ibiraboys em frente a obra da artista coreana Koo Jeong A
Imagem: Arquivo Pessoal

Agora, em novembro de 2022, finalmente o sonho se concretizou e se abre espaço para novas gerações começarem novas histórias de sucesso em cima dos carrinhos.