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Arábia Saudita quer ter duas corridas por ano: como é cobrir o GP no país

O espanhol Carlos Sainz pilota sua Ferrari em Jeddah, na Arábia Saudita, durante treino da Fórmula 1 - Clive Mason/Getty Images
O espanhol Carlos Sainz pilota sua Ferrari em Jeddah, na Arábia Saudita, durante treino da Fórmula 1 Imagem: Clive Mason/Getty Images

Colunista do UOL

22/03/2023 04h00

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Enquanto você lê essas linhas, os boxes da pista de Jeddah estão vindo abaixo para a construção de uma estrutura melhor para a prova que deve abrir o campeonato de 2024 da Fórmula 1. Não é de hoje que o dinheiro da Arábia Saudita está presente na categoria, os primeiros investimentos aconteceram ainda no final dos anos 1970. Mas os sauditas agora vieram para ficar, com planos de receber duas corridas por ano (daí a vontade de melhorar a estrutura de Jeddah) e até a possibilidade de comprarem o campeonato.

Estive presente nas três edições do GP mais controverso da F1 desde que a categoria corria na África do Sul em pleno apartheid. Muitos jornalistas decidem não ir por não concordar com a presença da categoria por lá. Respeito a posição deles. Há questões de direitos humanos em outros países pelos quais a F1 passa, mas não no nível da Arábia Saudita. Do meu lado, quero, primeiramente, estar lá como uma profissional mulher e ser vista atuando desta forma dentro do país. E também prefiro ver a realidade com meus próprios olhos.

Mesmo quem quer ignorar as contradições de correr na Arábia Saudita foi obrigado a encarar a realidade quando um míssil atingiu um reservatório da Aramco (parceira global da F1 e patrocinadora principal de uma série de GPs e da Aston Martin) nos arredores da pista ano passado. Em 2023, a segurança estava reforçada, e pouco se falou do que aconteceu há um ano.

Com isso, há quem questione se todo aquele papo de que a F1 atuaria como um fator de mudança na Arábia Saudita não ficou esquecido. O que tenho é que a abertura para eventos internacionais inevitavelmente traz mudanças mesmo, ainda que lentas. No primeiro GP, os organizadores tentaram impor um código de vestimenta. Acabaram voltando atrás, mas tínhamos dúvidas em relação às roupas nas áreas mais tradicionais da cidade, e resolvi usar uma abaya para ir ao centro antigo. Dois anos depois, já é menos alienígena ver ocidentais usando suas roupas de sempre pelas ruas da cidade.

Mesmo assim, já me acostumei a atrair os olhares curiosos no embarque para Jeddah, por ser a única mulher ocidental no avião, viajando com muitos muçulmanos mais religiosos, que usam a segunda maior cidade da Arábia Saudita como entrada para Mecca. Muitos, inclusive, já viajam vestidos com ihram, traje utilizado neste tipo de peregrinação e que consiste em um tecido de algodão amarrado ao corpo. Não-muçulmanos não podem entrar em um raio de 35km ao redor da cidade sagrada.

Tento abrir o mapa para saber quanto tempo de voo falta. Mas ele não funciona. "Não é defeito", diz o comissário, desculpando-se. "É que? é assim mesmo." Bem-vindos à Arábia Saudita.

Essa é uma realidade. O controle das telecomunicações se faz notar claramente no bloqueio de ligações por whatsapp, por exemplo. Outra camada é o estranhamento que minha presença causa, lembrando que eu sigo usando minhas próprias roupas, só tomando cuidado para cobrir joelhos e ombros, por se tratar de um país mais conservador. Quando estou sozinha em um táxi ou na rua, dificilmente um homem dirige a palavra a mim, a não ser que eu pergunte algo. Há algumas exceções, geralmente de adolescentes, que dão as boas-vindas. Na Arábia Saudita não é uma regra, mas geralmente as mulheres andam em grupos ou acompanhadas de alguma figura masculina.

Se estou acompanhada de algum colega, o quadro muda completamente. Ainda pouco acostumados a turistas, os locais gostam de interagir, e se empolgam quando digo que sou do Brasil. "Neymar, Ronaldinho!". Eles amam futebol, é difícil você ver algum jovem na rua que não esteja com alguma camisa (geralmente, bem surrada) de algum time europeu.

Pela minha experiência, são um povo muito hospitaleiro, que está aberto a trocar experiências com pessoas que têm costumes diferentes. Uma coisa é o povo, a outra é o regime, que segue promovendo sessões de pena de morte em massa por crimes que estão previstos na Sharia, o conjunto de leis ligado à interpretação mais tradicional do Alcorão. Andando por alguns (poucos, é verdade) dias nas ruas de Jeddah, nem parece o mesmo lugar onde atrocidades são cometidas.

A pista, em si, só agora parece realmente pronta, com aqueles exageros que só quem tem muito dinheiro sobrando pode pensar em ter, como sistema de som potente instalado dentro da ponte que passa por cima do circuito e leva VIPs para o paddock. E algumas peculiaridades que não são vistas nem em outras provas em países de maioria muçulmana (são cinco atualmente na F1): a música no paddock para durante os horários das cinco rezas diárias.

Entre uma reza e outra, Will.I.Am gravou um videoclipe usando um carro com branding da própria F1, na pista. E os sauditas falavam em ter dois GPs no calendário quando a pista que originalmente seria o palco do GP da Arábia Saudita, em Qiddya, ficar pronta. Mas estamos falando de 2027 ou até mais para frente.