O desafio de roteirista da série de 'trazer o Senna de volta para a Terra'
"Ayrton nunca morreu lá em casa", é como Álvaro Mamute começa a explicar o fato de ter decidido, aos 22 anos em 2016 (e, portanto, ser ter visto Senna correr) escrever o roteiro do que seria um filme sobre o tricampeão da Fórmula 1, que hoje pode ser visto na série da Netflix recriando a vida do piloto e que estreou nesta sexta-feira (29) sob o título 'Senna'.
"Nós conversávamos sobre as corridas, sobre as coisas que o Ayrton fazia, sobre a representatividade que ele teve". Era um assunto tão presente para um carioca que nasceu exatamente no dia do último aniversário de Senna, em 1994, que a dificuldade dele não foi de entender por que o Brasil amava tanto o Senna, mas sim de tentar trazê-lo de volta para a Terra.
"Não posso te contar o número de vezes que tive dificuldade de humanizar Ayrton ou normalizá-lo. Quando você idolatra alguém, você tende a ser um fardo para essa pessoa em muitos aspectos. Ele passou de um nível intocável para um nível compreensível. E mesmo que para muitas pessoas isso pareça algo ruim, para mim é exatamente o oposto, porque ele deixa de ser uma pessoa especial que pisou na face da Terra. O que ele fez é alcançável. Existe um método. Existe um treinamento. Obviamente, existe um talento que está ali."
Por que ninguém pensou nisso antes?
Álvaro queria ser o dono dessa história. Achava que ela não tinha sido contada cinematograficamente da maneira como ele a enxergava. Ele achava, claro, do alto de seus 20 e poucos anos e sem experiência em roteiros para cinema, que isso nunca tinha sido feito simplesmente porque ninguém tinha pensado nisso. Encontrou lá pela décima página no Google o email de Bianca Senna, sobrinha de Ayrton, que está à frente do Instituto Ayrton Senna atualmente, e descobriu que sua visão não era tão distante do que a família queria.
Isso foi no início de 2017, há quase oito anos. As idas e vindas de lá para cá só mostraram como era tudo mais complexo do que Álvaro poderia imaginar.
"Eu descobri e aprendi e vi que mesmo contando essa história, não tem dono para essa história.
Várias pessoas queriam, entre aspas, controlar essa narrativa. Pessoas externas, pessoas que conviviam com o Ayrton? Parece que todo mundo queria que o Ayrton, realmente, fosse o Ayrton deles. E aí eu entendi por que demorou tanto para esse projeto acontecer. Porque encontrar o Ayrton, o Ayrton lógico, o cara que vivia os acontecimentos que aconteciam na vida dele e explicar esses motivos foi uma coisa muito difícil."
Retratar Prost foi um grande desafio
Até porque é claro que, quando se conhece a história a fundo, há problemas. Como recontar a história da posição da pole position do GP do Japão de 1990, que acaba resultando no acidente que decide aquele campeonato a favor de Senna.
"É como se ela sempre fosse do lado sujo da pista, do lado de dentro da curva 1, e Senna tivesse tentado mudar porque estava na pole na decisão do campeonato. A história não é bem essa, é algo que vinha de algum tempo, mas imagine alguém que não estava lá, tentando recriar uma narrativa já construída."
Outro ponto ao mesmo tempo complicado e importante para Álvaro era dar voz ao grande rival de Senna, Alain Prost. E aí vem a grande vantagem de fazer uma peça de ficção e não um documentário, porque é possível mostrar situações das quais não há imagens mas, sim, relatos de quem esteve lá.
Um momento capital da relação dos dois é um ótimo exemplo disso: o acordo que Senna e Prost tinham em 1989 e que teria sido quebrado pelo brasileiro no GP de Imola. "Isso nos deu a possibilidade de contar momentos que podem ser muito complexos, que podem estar faltando de muitos pontos de vista e a gente conseguiu colocar isso na narrativa de uma forma que eu acredito, e espero que todo mundo acredite, que foi muito justa com todas as partes que estavam ali. Essa parte da relação com o Prost é muito complicada.
Por que Senna está na moda?
São histórias que aconteceram há mais de 30 anos e que não foram revisitadas de maneira tão intensa quando a morte de Senna completou 10, 20, 25 anos. A Fórmula 1 vive um intenso processo de renovação de sua audiência, especialmente depois que outra série da Netflix, "Dirigir para Viver", fez sua estreia em 2020. São jovens e adolescentes curiosos para saber mais sobre essa figura que se tornou quase mítica no esporte, e que estava na vanguarda ao unir o esporte a valores que são importantes para essas novas gerações.
Até porque Senna era extremamente competitivo, mas ao mesmo tempo queria usar sua posição de privilégio para chamar a atenção do que acontecia, especialmente no Brasil, fora das pistas.
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Quero receber"Ele representava valores que nós, como cultura, amamos. Que nós, como cultura, precisamos. Então ele era especial porque ele era capaz de representar esses valores." Especial e, para Álvaro, necessário para o Brasil atual.
"Estamos abraçando o lugar de ser o time do quase, que sabe que vai perder, aquele vira-latismo clássico Rodriguiano. Começamos a apontar o dedo um para o outro como se não fôssemos bons o suficiente, como se fosse culpa dos outros. Não, temos que assumir a responsabilidade e temos que voltar e sentir que somos capazes. Se podemos ter um legado com essa série do Ayrton, é o legado do próprio Ayrton."
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