'Há coisas que só acontecem ao Botafogo.' Frase nasceu com Botafogo campeão
A repetição da frase se dá toda vez que algo ruim acontece ao Botafogo.
"Há coisas que só acontecem ao Botafogo."
Textualmente, é assim. E não "Tem coisas que só acontecem com o Botafogo."
Pouca gente se dá o cuidado de citar a oração corretamente e também são poucas as vezes em que se cita a origem.
Foi Paulo Mendes Campos, alvinegro até a medula, quem cunhou a sentença.
Aconteceu depois de uma derrota para o Fluminense.
Num ano em que o Botafogo foi campeão, contra o próprio Tricolor.
O que dá noção de que há coisas que não acontecem só com o Botafogo.
Ou, há boas coisas que ocorrem ao Alvinegro.
Paulo Mendes Campos escreveu o texto "O Botafogo e Eu", em que se comparava ao clube de seu coração, em coisas boas, ruins e neutras também. "O Botafogo é meio boêmio, como eu..."
Só que foi publicado no Diário Carioca na sequência a uma derrota por 1 x 0 para o Fluminense, gol do ponta esquerda Escurinho, citado pelo escritor. Era a décima rodada do Campeonato Carioca de 1957, o alvinegro era líder com 16 pontos, um a mais do que o Tricolor, que assumiu a ponta da tabela ao ganhar diante de 44 mil espectadores no Maracanã.
"A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão...", escreveu Paulo Mendes Campos depois da perda da liderança. O Botafogo não era campeão desde 1948, o que dava a noção da ansiedade tomando conta de sua torcida.
Menos de três meses depois, na manhã de domingo, 22 de dezembro, o mesmo coração alvinegro descreveu a doçura do momento alvinegro, horas antes da mais espetacular goleada de uma decisão carioca: Botafogo 6 x 2 Fluminense. Cinco gols de Paulo Valentim, um de Garrincha, devolveram a liderança e o troféu a General Severiano.
Naquele domingo, o escritor estava mais otimista e escreveu a crônica Botafogo dos Botafogos: "Eu me assentarei nas arquibancadas para sofrer noventa minutos; mas a sua vitória será doce como os frutos. A sua ala esquerda pode desferir chutes indefensáveis, e a sua ala direita é mais insinuante do que o vento."
O Botafogo precisa desenterrar a cabeça da terra e vencer o Vasco, na segunda-feira.
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OLHAR APURADO
Uma curadoria diária com as opiniões dos colunistas do UOL sobre os principais assuntos do noticiário.
Quero receberAssim como os jogos têm noventa minutos, os campeonatos têm 38 rodadas e o Botafogo ainda tem duas de folga, seis pontos perdidos a menos do que o Palmeiras, quatro a menos do que o Bragantino.
Abaixo, as duas crônicas de Paulo Mendes Campos. "O Botafogo e eu" publicada depois da derrota para o Fluminense em 29 de setembro de 1957. "Botafogo dos Botafogos", escrita antes dos 6 x 2 sobre o mesmo Fluminense, que deram o título carioca de 1957.
Há coisas que só acontecem ao Botafogo.
Algumas delas são muito bonitas:
O BOTAFOGO E EU
Que partilhamos defeitos e qualidades comuns, não há dúvida. Nos meus torneios, quando mais preciso manter os números do placar, bobeio num lance, faço gol contra, comprometo, tal qual o Botafogo, numa difícil campanha.
A mim e a ele soem acontecer sumidouros de depressão, dos quais irrompemos eventualmente para a euforia de uma tarde luminosa. Sou preto e branco também, quero dizer, me destorço para pinçar nas pontas do mesmo compasso os dualismos do mundo, não aceito o maniqueísmo do bem e do mal, antes me obstino em admitir que no branco existe o preto e no preto, o branco.
Sou um menino de rua perdido na dramaticidade existencial da poesia; pois o Botafogo é um menino de rua perdido na poética dramaticidade do futebol. Há coisas que só acontecem ao Botafogo e a mim. Também a minha cidadela pode ruir ante um chute ridículo do pé direito do Escurinho.
O Botafogo tem uma sede, mas esqueceu a vida social; também eu só abro os meus salões e os meus jardins à noite silenciosa. O Botafogo é de futebol e regatas; também eu sou de bola e de penosas travessias aquáticas. O Botafogo é um clube com temperamento amadorístico, mas forçado, a fim de não ser engolido pelas feras, a profissionalizar-se ao máximo; também sou cem por cento um coração amador, compelido a viver a troco de soldo.
Reagimos ambos quando menos se espera; forra-nos, sem dúvida, um estofo neurótico. Se a vida fosse lógica, o Botafogo deixaria de levar o futebol a sério, fechando suas portas; eu, se a vida fosse lógica, deixaria de levar o mundo a sério, fechando os meus olhos.
O Botafogo é capaz de quebrar lanças por um companheiro injustiçado pela Federação; eu aguardo a azagaia de uma justiça geral. O Botafogo pratica em geral o 4-3-3; como eu, que me distribuo assim em campo: no arco, as mãos, feitas para proteger minha porta; na parede defensiva, meus braços, meu peito aberto, meus joelhos e meus pés; no miolo apoiador, trabalho com os pulmões e o fígado; vou à ofensiva com a cabeça, a loucura e o coração. Falta um, Zagalo. Em mim, essa energia sem colocação definida é a alma, indo e vindo, indistinta, atônita, sarrafeada, desmilingüindo-se até o minuto final.
O Botafogo é capaz de cometer uma injustiça brutal a um filho seu, e rasgar as vestes com as unhas do remorso; como eu.
O Botafogo põe gravata e vai à macumba cuidar de seu destino; eu meto o calção de banho e vou à praia discutir com Deus. O Botafogo não se dá bem com os limites do sistema tático; tem que ser como eu, dramaticamente inventado na hora.
Miguel Ângelo é botafogo, Leonardo é flamengo, Rafael é fluminense; Stendhal é botafogo, Balzac é flamengo, Flaubert é fluminense; Bach é botafogo, Beethoven é flamengo, Mozart é fluminense. Sem desfazer dos outros, é com eles que eu fico, Miguel, Henrique, João Sebastião.
Dostoiévski é Botafogo, Tolstói é flamengo (na literatura russa não há fluminense); Baudelaire é fluminense, Verlaine é flamengo, Rimbaud é Botafogo; Camões não é vasco, é flamengo, Garrett é fluminense, Fernando Pessoa é Botafogo. Sim, Machado de Assis é fluminense, mas no fundo, no fundo, debaixo da capa cética, Machado, um bairrista, morava onde? Laranjeiras!
O Botafogo é paixão, é Brasil, é confusão; Paulo Mendes Campos é paixão, Brasil, confusão.
O Botafogo conquistou um campeonato esmagando inesperadamente o Fluminense de 6 x 2; uma vez, enfrentei um dragão enorme e entrei no castelo encantado.
O Botafogo, às vezes, se maltrata, como eu; o Botafogo é meio boêmio, como eu; o Botafogo sem Garrincha seria menos Botafogo, como eu; o Botafogo tem um pé em Minas Gerais, como eu; o Botafogo tem um possesso, como eu; o Botafogo é mais surpreendente do que conseqüente, como eu; ultimamente, o Botafogo anda cheio de cobras e lagartos, como eu.
O Botafogo é mais abstrato do que concreto; tem folhas-secas; alterna o fervor com a indolência; às vezes, estranhamente, sai de uma derrota feia mais orgulhoso e mais Botafogo do que se houvesse vencido; tudo isso, eu também.
Enfim, senhoras e senhores, o Botafogo é um tanto tantã (que nem eu). E a insígnia de meu coração é também (literatura) uma estrela solitária.
BOTAFOGO DOS BOTAFOGOS
Eu me assentarei nas arquibancadas para sofrer noventa minutos; mas a sua vitória será doce como os frutos. A sua ala esquerda pode desferir chutes indefensáveis, e a sua ala direita é mais insinuante do que o vento.
Eu vos conjuro, botafoguenses de todo o Brasil, a comparecer ao Maracanã; para o que der e vier; aquele é o Garrincha, ei-lo que vem como um cabrito montês, saltando os obstáculos; eis que entra na área adversária, causando um pânico formidável.
Se o Botafogo entrar bem, eu andarei pelos bares da praia até que assopre o dia e declinem as sombras; jardim fechado será a sua defesa, jardim fechado, fonte selada; Nilton Santos é como o aquilão, assoprando de todos os lados; e muito difícil será contê-lo. Dorme, Adalberto, ele velará o seu sono.
Eis que é Didi batendo à porta do adversário, e dizendo: "Abre, Castilho, sou eu"; e a sua folha-seca será bonita como um exército carregado de bandeiras; o Botafogo entrou por uma fresta e as entranhas do Fluminense estremeceram.
Os tricolores fecharam a porta com um pesado ferrolho; mas o Botafogo já tinha se ido, e era já passado a outra parte. O meu time é alvo e negro, e possui uma estrela solitária. Suas vitórias são melhores que o vinho; seus campeonatos são como a mirra preciosa.
O Botafogo desceu pela direita, terrível como um exército ordenado; nem todos os cacás do mundo terão forças para detê-lo; quem é este que avança pelo centro como um leão esfomeado? E eis que é o Paulinho abrindo a marcação dos contrários como um leão esfomeado; põe o teu selo sobre a leiteria, para que as gerações pronunciem o teu nome com respeito.
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