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Micale cita frustração com Tite: 'Podia ter sido mais contundente em 2016'
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Rogério Micale está na história do futebol brasileiro como o treinador que comandou a Seleção em seu primeiro ouro olímpico, no Rio, em 2016. Com mais de 25 anos de carreira consolidada nas bases de Atlético Mineiro, Figueirense, Cruzeiro, Londrina e outros clubes menores, segue sua vida profissional no Al Dhafra, nos Emirados Árabes Unidos.
Está na segunda temporada no oriente médio e disse que quer construir uma carreira lá. Treinou o Al Hilal - atualmente no Mundial de Clubes - até abril de 2021, e assumiu o Al Dhafra há três meses e meio. Durante quase uma hora, o baiano de 52 anos, natural de Salvador, opinou sobre o momento do futebol nacional, a formação de jogadores, e contou detalhes do ouro em 2016, além do cotidiano no futebol árabe.
Diferenças e similaridades entre Brasil e Arábia Saudita
''São situações muito diferentes, cada uma com sua particularidade. O Brasil está bem avançado em termos de estrutura de futebol, a organização física dos clubes, CT, fisiologia, nutrição, psicologia... Tudo isso já virou comum nos grandes clubes e até em outros que não são tão grandes. Na Arábia Saudita não há essa estrutura toda, é um quadro menor. O que faz a diferença é poder utilizar oito estrangeiros ao mesmo tempo em campo. A exigência em termos de resultados imediatos é muito similar ao Brasil. Não se tem muita paciência quando o time oscila.''
Realidade nos Emirados Árabes
''Já nos Emirados Árabes nós temos menos estrangeiros por equipe, apenas três profissionais. O goleiro tem que ser local e alguns atletas trabalham em outras atividades. Vão treinar depois do trabalho. Então é preciso entender a carga certa de treinamento para cada um. A maioria deles trabalha no exército. São particularidades importantes para entender e poder ter resultados. Um fator positivo daqui é que eles analisam mais o trabalho. Se você trabalha bem no dia a dia, eles têm tolerância maior caso não tenha resultados imediatos. O Al Nassr, time mais rico daqui, está há nove jogos sem vencer, e o treinador se mantém. Isso no Brasil seria impossível. Quero ficar um tempo aqui justamente por isso. Geralmente a gente não trabalha no Brasil. A gente chega para apagar incêndio.''
Saída do Al Hilal
''Nunca perdi dois jogos seguidos no Al Hilal. Sempre alternando derrotas e vitórias, e a pressão é muito grande mesmo assim. Tive uma oscilação na Champions Asiática e isso culminou na perda do meu emprego. Peguei a equipe na 4ª posição e deixei líder da Liga Saudita e classificamos para a 2ª fase no torneio continental. Mesmo assim, por oscilar e perder um jogo que não deveríamos realmente perder, houve o rompimento do contrato.''
Ser treinador no Brasil
''Eu nunca iniciei um trabalho no Brasil. Sempre cheguei no meio da temporada, com dois jogos por semana e viagens longas entre os jogos. Basicamente não se treina. Descansa e recupera pensando na próxima partida. Não há processos. Você não consegue fazer a sua periodização tática. É um termo muito utilizado em Portugal. É preciso saber como percorrer os espaços para chegar aonde você quer. Aqui nós conseguimos fazer isso. No Japão, na Coreia. É possível obter melhores resultados através do trabalho. No Brasil você depende muito da química dos jogadores, de uma situação de jogo, de sorte. Vencendo você ganha tempo e consequentemente tem sequência para implantar algo.''
O treinador brasileiro no Mundo
''Atualmente vem sendo muito discriminado em função do que a gente é internamente. Isso começa dentro do país. Existe uma onda que o técnico brasileiro não serve. Me sinto privilegiado de ser um dos poucos a terem essa oportunidade no momento. Passei pelo Al Hilal, que é o maior clube da Ásia, e agora estou num time menor, mas com a possibilidade de desenvolver um trabalho. É um orgulho poder ajudar a abrir portas para os treinadores brasileiros. No passado nós tivemos muitos aqui, depois não tinha mais ninguém. Hoje temos Odair Hellmann e eu aqui nos Emirados Árabes. O Péricles Chamusca está fazendo um grande trabalho na Arábia Saudita, e o Nelsinho Baptista no Japão.''
Técnicos estrangeiros no Brasil
''Isso não é exatamente uma novidade. Os técnicos estrangeiros estão no Brasil há muito tempo. Antigamente se usava muito o argumento da dificuldade de adaptação ao nosso calendário quando não dava certo o trabalho. Aumentou depois do Jorge Jesus, que realmente fez um grande trabalho no Flamengo. Teve um grupo de jogadores fora de série e com entendimento tático pelas passagens no futebol europeu, além de terem boas formações na base. Um bom executor foi impulsionado por um bom estímulo. O Jesus dava bons treinamentos e tinha jogadores com qualidade, inteligência esportiva. Isso se reflete rápido em resultado. É diferente de fazer esse tipo de profissional executar o mesmo trabalho com jogadores menos qualificados. Você precisará de mais tempo para obter sucesso. Como tudo no Brasil são ondas, sempre vão achar que isso acontecerá todas as vezes. Tivemos as ondas dos experientes, dos novos, dos interinos. Vivemos de ciclos e em breve terminará. A grande maioria de técnicos será estrangeira no Brasil, já estamos caminhando para isso, mas apenas um vai ganhar. E geralmente só quem ganha é valorizado. E aí o restante entrará na ciranda.''
O técnico como escudo
''Há muita pressão e se busca constantemente a figura de alguém mais experiente. Então o dirigente se cansa disso e traz um nome para dividir a responsabilidade. Muda o foco. São vários os nomes assim no Brasil. As questões institucionais e políticas do futebol brasileiro fazem com que o esporte não seja tratado de uma forma tão profissional muitas vezes. Acredito que com as SAF´s isso deve mudar um pouco. O empresário vai buscar o interesse dele e o torcedor precisará entender que não é tão mais dono do clube assim. Tem um cara que põe dinheiro, e ele vai querer ver o retorno. E isso só acontece com os processos. É como construir uma casa. Não dá pra demolir uma casa depois de construída quando você vai iniciar o acabamento e a decoração. Esse tipo de rompimento atrapalha o trabalho.''
Red Bull Bragantino
''Quando não se tem convicção no que é preciso fazer, se troca de técnico toda hora. Gosto muito do Red Bull. Contratou o Barbieri num momento que estava delicado para ele, mas existia a certeza de que ele era a pessoa certa para comandar o projeto. O time oscilou, mas está lá o Barbieri e a equipe bem. Esse é o modelo. Entender as oscilações porque há um rumo, um norte. O vento muitas vezes vai mudar a trajetória, mas você volta pra rota certa ali na frente.''
Influências na escola brasileira
''Perdemos um pouco o rumo. O nosso futebol de uma forma geral. Vimos muitas escolas, a espanhola, alemã e a italiana, mas perdemos o nosso norte. O futebol espelha a cultura de onde ele está inserido. Na Alemanha é um jogo frio e calculista, de maior organização tática, porque a sociedade alemã traz isso com ela. Não há uma individualidade como Neymar, Vini Jr ou Rodrygo. Não dá pra trazer essa realidade pra gente. Abrir o nosso mercado é sensacional, receber essas influências, mas não podemos perder o nosso rumo. Os maiores clubes do Mundo vêm beber a nossa água, vem buscar jogadores. A nossa produção é muito boa. Precisamos nos redescobrir como país do futebol. Algumas influências não fazem bem ao nosso futebol.
Influência de Tite no ouro olímpico?
''Me senti desrespeitado depois da Olimpíada. O Tite não foi contundente em algumas das entrevistas dele afirmando categoricamente que não teve participação. Fiquei um pouco frustrado. Naquela época eu disse algo sobre surfar na onda e gerou uma conversa... Não tenho problema nenhum em dividir vitórias com ninguém. Não se ganha nada sozinho. Tinha uma comissão técnica fantástica do meu lado e todos eles foram desrespeitados. O Tite não me visitou só entre o segundo e o terceiro jogo. Ele me visitou no início da preparação, esteve na Granja Comary conosco. Então ele também interferiu nos empates(risos). Existe uma tendência de alguns órgãos, de acordo com interesses, de direcionar determinadas situações. A nossa virada colocou em xeque opiniões que davam como certa a nossa eliminação na 1ª fase. Muita gente foi para a frente das câmeras falar isso, e a virada que tivemos obrigou a quem fez isso arrumar um argumento para desqualificar o trabalho, e justificar o erro dele. O argumento foi o Tite. Jogaram o mérito da conquista no colo dele e ele absorveu isso. Fiquei chateado na época. Ele não deixou claro que não teve participação nenhuma no processo. E não teve. Nada! Se algum repórter que soltou isso fosse sério e quisesse ouvir a verdade era só perguntar aos jogadores. Era importante ter o Tite lá por ser o técnico da seleção principal, mas ele não fez mexidas na equipe. Quem conhece um pouco de futebol sabe que isso é impossível de acontecer.
Mexidas táticas no time olímpico
''Eu cometi um erro por inexperiência de trabalhar com o Neymar. Ele era a estrela e até aquele momento ele jogava pela esquerda. Era difícil chegar e trazer ele pro meio no primeiro jogo. Ele estava com 40 dias de férias e começando a treinar. Nos dois primeiros jogos teve dificuldades de fazer o movimento de trazer a bola pra dentro. Alguns outros jogadores também não estavam bem e faltava mobilidade nas peças centrais para criar. Nós preparamos a equipe naquele 4-2-4 durante os treinos. Não foi uma novidade para eles. Depois que o Thiago Maia levou um cartão amarelo eu vi a chance de mudar. Chamei o Neymar para a conversa e ele tinha exatamente a mesma percepção. Foi incrível o nosso papo. Fiz a mudança e puxei o Renato Augusto para fazer a saída de bola junto com Rodrigo Caio e Marquinhos, três excelentes passadores para romper a linha de marcação adversária. Liberei o Zeca para atacar bem aberto, e trabalhava entre as linhas com Neymar e Luan. De um lado vinha o Gabigol e do outro o Gabriel Jesus. Assim fluiu o jogo. Saímos de um estilo mais de posição para um jogo de função. Quando fazemos mudanças é sempre pensando nas características dos jogadores. O Jesus sempre foi um jogador de lado para mim, jogou muito bem comigo assim no Sub-20
Má fase de Luan
O Luan sabia muito bem fazer a função de ''falso 9''. Ele tem muita qualidade e aquilo que o jogador brasileiro tem de melhor, a relação com a bola, se aproxima dela o tempo todo. Entre aspas, é um peladeiro no bom sentido. Venho de formação e é preciso entender as características do jogador brasileiro. Se você solta uma bola no meio das crianças aqui, tem dez correndo atrás dela. Não tem ninguém preocupado em ocupar espaço, esperar a bola no pé. Fomos formados para buscar a bola onde ela está. Romper com isso não é fácil. A questão do jogo de posição está muito forte no Brasil. Os europeus que trabalham no Brasil, em sua grande maioria, seguem esse estilo. Somente o Jorge Jesus não fazia isso. Quando você pede para o Luan esperar a bola em determinado setor, ele não tem paciência pra isso. Vai ficar um período ali, mas vai desobedecer, vai flutuar. Pode ver que ele nunca foi cogitado para sair do Brasil, mesmo tendo sido o Rei da América. As pessoas que fazem scout não veem nele alguém que possa cumprir esse jogo de posição. Veem uma característica puramente sul-americana. O melhor momento dele pós-Olimpíada foi com o Renato Gaúcho, que dá um pouco mais de liberdade aos jogadores. Permite um jogo mais anárquico. Não estou dizendo se ele é bom ou ruim. Apenas citando uma característica.
Saída precoce de jogadores do Brasil
A maioria sai mais cedo para se adaptar a esse jogo que é muito executado na Europa. O Vinícius Junior não foi titular assim que chegou ao Real Madrid porque precisava entender isso. O Neymar também precisou aprender isso no Barcelona. E estamos falando de um gênio! Por isso que me preocupa trazer tanto essa metodologia para o Brasil. Nós formamos os jogadores com maior capacidade de desequilíbrio. Não podemos perder isso. O Barcelona tinha jogadores brilhantes de meio-campo como Xavi e Iniesta, mas quem definia os lances eram os sul-americanos. Neymar, Messi e Suárez. É necessário ter anarquia na frente. Se não, não há como quebrar algumas defesas. O que traz o suspiro para o torcedor é isso. Eu sou apaixonado por isso.
Escassez de camisas 9 e 10 no Brasil
Acho que é uma questão de ciclo, como tudo na vida. Isso começou depois do 7x1. Assim como na Olimpíada o herói, para muita gente, foi o Tite. Na Copa do Mundo o Fred foi um dos vilões. Tudo é muito rotulado. Em 94 o herói do título não foi só o Romário. Tinham outros caras trabalhando muito ali. Ele foi importante demais, mas não é só ele. Depois disso teve uma tendência grande pelo ''falso 9''. Houve um movimento muito forte também de se jogar com um tripé no meio-campo, sem a figura de um meia-central por trás do atacante. Isso veio de Portugal. Foi uma solução que encontraram para dar mais velocidade na construção dos ataques, sem precisar passar no pé de um meia que desse mais organização. O jogo se baseou muito em transição ofensiva. Isso se tornou tendência na cabeça de muitos treinadores. A modernidade para muita gente passa por coisas que estão acontecendo fora do país. Como se tudo que acontecesse dentro do Brasil fosse arcaico. A Imprensa reforçou. Os profissionais do futebol querem estar de acordo com isso. Então existe uma escassez no mercado. O meia mais cerebral que atuava no Brasil só conseguia jogar no país. Na Europa não havia espaço. Quando ele pensava em dominar e girar o corpo já era desarmado. A base acaba trazendo muito isso, essa influência do que vem acontecendo no Mundo. Tenho uma preocupação grande com a nova formação do jogador brasileiro. Não que a nova geração seja ruim. Ela está fundamentada em estudo, literatura, treinos, de saber exatamente o que fazer, mas me preocupa a nossa essência. Não podemos só achar que o que está lá fora é melhor. Daqui a um tempo poderemos sentir falta dos jogadores fortes em lances individuais, de dribles. Precisamos ter cuidado.
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