Tenistas ganham fama de reclamões mimados na Austrália
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Tênis é um esporte peculiar e, especialmente em alguns países que produzem poucos atletas da modalidade, qualquer talento precoce tem tratamento de minicelebridade. Tem pai e técnico para carregar raqueteira, alguém para marcar quadra de treino e pedir bola nos torneios, uma meia dúzia de gente para paparicar e dizer que o jovem é incrível, que será isso e aquilo. Amigos genuínos e abutres atrás de sua galinha dos ovos de ouro se misturam para criar uma bolha de mimos e paparicos. Não acontece com todos, obviamente, mas também acontece nos países que fabricam muitos tenistas.
Em alguns desses casos, os jovens se tornam grandes profissionais. Ganham dinheiro, troféus, viajam em jatinhos privados, hospedam-se em suítes luxuosas de hotéis badaladíssimos. Tudo isso são privilégios adquiridos graças ao seu esforço e às conquistas esportivas. Fazem por merecer em um mundo que recompensa bem um certo grupo de atletas. Existe, contudo, um outro lado da moeda. Nesse grupinho de astros e superastros que tiveram mimos lá atrás e, mais tarde, conquistaram outros privilégios, há quem tenha vivido sempre em uma bolha e não conheça a vida fora dela. E é esse dilema, esse choque de realidade, que alguns tenistas vêm encarando em Melbourne na preparação para o próximo Australian Open.
Alizé Cornet foi uma das principais vítimas da fúria dos aussies. Ao saber que teria de ficar 14 dias presa no quarto de hotel (voos, hospedagem e alimentação são pagos pela Tennis Australia), a francesa disse que a situação era insana. Depois, percebendo o tamanho de sua insensibilidade, apagou o tweet e pediu desculpas. A carta de Djokovic a Craig Tiley, diretor do Australian Open, também foi mal vista. Não, o sérvio não fez exigências. Fez pedidos. E sim, eu li a íntegra do documento, e o tom era cordial, solicitando o que fosse possível para amenizar os dilemas de quem vai ficar "preso" por 14 dias.
Ainda assim, a resposta das autoridades veio em tom ríspido. O primeiro-ministro do estado de Victoria, Daniel Andrew, tratou a carta, que pedia até a redução do período de quarentena rígida, como "uma lista de exigências" e disse apenas que "a resposta é não". O primeiro-ministro australiano, Scott Morrison, disse que "acho que é hora de as pessoas seguirem as regras, fazerem suas quarentenas e jogarem tênis. Elas serão bem pagas para isso. Tenho certeza que darão um grande espetáculo, e o Australian Open vai seguir adiante." Veja abaixo:
É óbvio que a situação é desagradável para os tenistas que ficarão sem sair de seus quartos por 14 dias, principalmente porque terão de competir uma semana depois contra pessoas que sairão de seus quartos e treinarão em quadras de verdade pelas próximas duas semanas (sem falar nos "Seis de Adelaide", que têm ainda mais vantagens). Mas também é preciso entender como essa mensagem chega ao povo australiano, que enfrenta todo tipo de restrição desde que a pandemia começou. Para os locais, é duro não poder voltar para casa por causa das barreiras interestaduais enquanto 1.300 pessoas entram no país com tudo pago por causa de um evento esportivo. A imagem que fica é de um grupo de gente privilegiada, que vai ganhar muito dinheiro no país, e ainda reclama das regras.
É por isso que a capa de amanhã do West Australian fala em "reclamões do tênis" e "cheque de realidade". Além da mensagem de "Não, obrigado" direcionada a Djokovic, o jornal exibe uma imagem do sérvio, chamado de "anti-vaxxer" (expressão usada para rotular pessoas que são contra o uso de vacinas) ainda na primeira página, em uma varanda de seu hotel em Adelaide - e nenhum dos tenistas quarentenados em Melbourne tem varanda, sacada ou algo do gênero. Por isso, depois de muitos tweets reclamando de comida, falta de janela, pouco espaço e outras limitações, houve até uma orientação interna para que os tenistas não se queixem publicamente das condições da quarentena.
O número de postagens diminuiu, mas algumas cenas seguem danificando a imagem dos atletas e do torneio. Djokovic foi filmado em uma van sem usar máscara, enquanto a namorada de Bernard Tomic, em quarentena com o tenista, reclamou da demora para inspecionar a comida e disse que nunca lavou seu próprio cabelo (veja abaixo). O estrago está feito. A oposição, que era contra o evento, ataca o governo e os tenistas, enquanto a situação trata as queixas dos atletas com rispidez tanto para mostrar pulso firme à população quanto por ver as "exigências" como abuso.
Como se não bastasse, a imprensa australiana fala em mais casos positivos de covid que não foram confirmados pelo torneio. Um deles seria de um tenista, e isso aumentaria o número de atletas em quarentena rígida.
Resumo da ópera? Temos desenhado em cores fortes o cenário de um torneio em que atletas vão competir em condições desiguais num país que começa a ver esses tenistas como crianças mimadas que não enxergam fora de sua bolha de privilégios. Parece justo afirmar que todo mundo vai sair derrotado disso.
Coisas que eu acho que acho:
- Ninguém vai admitir (ou vai?) publicamente, mas me parece que, a essa altura da coisa, muita gente vai engolir essas duas semanas e entrar em quadra de forma protocolar só para receber o checão de 100 mil dólares australianos (cerca de US$ 76 mil - prêmio para os perdedores de primeira rodada).
- Esportivamente, há todo tipo de prejuízo. O risco de lesão aumenta, e o condicionamento vai lá embaixo. Pedalar uma bicicleta dentro do quarto, no ar-condicionado, é bem diferente de jogar cinco sets no verão australiano. As duas primeiras semanas serão duríssimas.
- Nick Kyrgios, que andou quieto por muito tempo, voltou a criticar Djokovic via Twitter. Ele também atacou a postura sem noção da namorada de Tomic.
- Os casos de covid, a quarentena rígida e todo tipo de reclamação - lembremos do rato no quarto de Putintseva - vêm desviando a atenção de algo que prometia ser um grande problema: os privilégios em Adelaide. Por enquanto, os maiores dilemas do Australian Open estão em Melbourne mesmo.
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