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O dia em que Federer se revelou um mortal em Wimbledon
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Federer nunca foi deus, mas isso nunca ficou muito claro em Wimbledon. A relação entre o suíço e a catedral do esporte sempre teve algo de sagrado. O branco, a tradição, o silêncio, a idolatria... Uma conexão de fãs que reverenciam um tênis preciso, alegre e ousado, um atleta que admira, resgata e preserva costumes seculares e a Quadra Central, o berço espiritual do tênis moderno. Uma espécie de Santa Trindade Tenística, por assim dizer.
Orar por Roger Federer e seus milagres no All England Club, seja passando a noite na fila em busca de ingressos, seja literalmente dentro de uma igreja cujo letreiro propaga que "Deus Fez Roger Federer" (veja abaixo), é uma peregrinação anual para milhões de fiéis há cerca de 20 anos. Em Wimbledon, o suíço sempre misturou as noções de sonho e realidade, mítico e banal, mortal e eterno.
Roger, hoje com 39 anos, nunca se colocou como favorito ao título deste ano. Pelo contrário. Desde as duas cirurgias no joelho direito, que exigiram um processo de recuperação muito mais longo do que o esperado, o suíço mediu com cuidado suas expectativas. Um mês atrás, foi bem claro ao afirmar que não tinha chances em Roland Garros. Não tinha mesmo, e o abandono após a terceira rodada apagou qualquer dúvida.
A mudança de cenário foi um bálsamo para a congregação. O circuito foi do saibro para a grama, e e relva era a esperança de voltar a ver a divindade tenística com toda sua onipotência e onisciência. Nada indicava, porém, que o Federer de 2021 seria o mesmo de antes, e a dura derrota para Félix Auger-Aliassime no ATP 500 de Halle chegou como mais uma evidência doída. Restava, no entanto, a fé inextinguível.
Bastou Wimbledon começar para que a chama fosse alimentada. A vitória sobre Adrian Mannarino, ainda na primeira rodada e com uma atuação muito aquém de suas melhores apresentações na Catedral, teve ares de ressurreição. Federer esteve a um set da eliminação e avançou quando o francês sofreu uma lesão ao escorregar na grama quando ainda estava à frente no placar. Grama sagrada? Intervenção divina? Ato dos deuses?
Os dias seguintes teriam sido a desconstrução perfeita do mito. Federer teve seus altos e baixos contra Richard Gasquet, Cameron Norrie e Lorenzo Sonego. Os sinais estavam lá. Era a campanha mais "humana" de Roger em Wimbledon, ainda que exista algo de super-humano em um cidadão de 39 anos que se coloca entre os oito melhores da competição mais cobiçada do esporte. Deus ou herói? A confusão é justa e existe desde Héracles.
Zebra, mas zebra mesmo, Federer nunca foi e provavelmente não seria até uma final contra Djokovic, mas foi aí que entrou em cena Hubert Hurkacz como se desembarcasse de um Cavalo de Tróia. O polonês derrubou Daniil Medvedev, número 2 do mundo, na rodada anterior, mas o que parecia uma nova providência divina para dar sequência ao conto mitológico provou-se a peça reveladora da mortalidade.
O tombo foi duro, e incluiu tanto um literal escorregão no tie-break do segundo set quanto um figurativo pneu no fim. Um 6/0 que não acontecia desde 2008, quando Rafa Nadal, o Rei do Saibro, marcou seu território em Roland Garros e rumou para conquistar a Bretanha. Um raro 6/0 que veio com elementos perversos e machucou. Aconteceu em casa, na Catedral lotada de fiéis que passaram momentaneamente de torcedores a testemunhas.
Federer, o mito, não é mais. O Roger que desafiou a história, acumulando semanas como número 1 do mundo e empilhando troféus, teve sua apoteose e vai morar para sempre nas lembranças de seus seguidores. O suíço que flutuava em quadra e desferia golpes com e leveza de pinceladas divinas merece ser tema de poemas, canções, filmes e livros de história.
Wimbledon 2021 viu um Federer comum pela primeira vez, e o choque é compreensível. Este Federer dos mortais foi quebrado sacando para o set, cometeu seguidos erros quando precisou rebater na corrida, hesitou junto à rede e abateu-se mentalmente quando ficou dois sets atrás de Hurkacz. Um Federer que treinou pouco e competiu menos ainda antes do torneio. Um Federer que lutou para estar lá com o que tinha, e o que tinha era isso.
É justo crer que, se o corpo permitir treinos mais intensos e frequentes, Roger estará mais forte nos próximos torneios. Também é justo crer, sobretudo depois do impacto do tombo diante de Hurkacz, que o Federer da igreja e da experiência religiosa de David Foster Wallace (leiam!) não fará aparições muito frequentes. Resta ao fã, ao fiel e ao fanático, torcer, empurrar e orar pelo suíço de hoje. E este Federer, caros leitores, requer mais fé do que nunca.
Coisas que eu acho que acho:
- Se o Federer dos mortais, destreinado e quase quarentão, chegou às quartas de um slam, por que duvidar de um último milagre?
- O que seria esse último milagre? Acho que cabe aqui um exercício de rever expectativas. Aos 40, não parece justo exigir que este Federer vá derrotar Djokovic num slam, em melhor de cinco, na quadra dura. Mas ganhar um Masters? Um ATP 500? Uma bela campanha em Wimbledon no ano que vem? Por que não? E não é vergonha nenhuma, a essa altura das coisas, admitir que Federer não pode ser mais "aquele" Federer.
- Do mesmo modo, não dá para dizer que a campanha deste ano, chegando às quartas, foi um fracasso. Ficou, sim, a impressão de que era possível bater Hurkacz, mas, contextualizando a coisa toda, também parece que ficar entre os oito foi mais do que qualquer outro tenista faria nessas condições.
- Já escrevi aqui no blog e repito: é o trecho final de um voo glorioso. O momento é de apertar os cintos, encarar a turbulência e apreciar cada segundo do fim da viagem.
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