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Rafael Nadal e o valor do veterano
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Bem-aventurado é o cidadão que consegue acompanhar a carreira completa de seu ídolo. Primeiro, o surgimento. Talento in natura, sem molde nem vícios, e uma vontade mal direcionada, quase ingênua, de superar obstáculos. Depois, o auge. A técnica perfeita impulsionada pelo físico ideal e controlada por uma habilidade adquirida em anos de experiência. É o atleta que sabe o que quer, o que pode e o que precisa fazer para chegar lá. Mais tarde, a inevitável queda. O talento não se foi, mas o corpo não dá as respostas de antes. É preciso encurtar etapas, achar uma rota diversa. Falta físico, mas sobram todas qualidades de um campeão: desejo, inteligência, sabedoria. É quando fica cristalino, mais do que nunca, o valor do veterano.
Bem-aventurado é o cidadão que não deixa de acompanhar seu ídolo nesta última etapa. Gente como Andre Agassi, Gustavo Kuerten, Lleyton Hewitt e, mais recentemente, Andy Murray, Roger Federer e Rafael Nadal. Grandes campeões que alcançaram o topo do ranking e lutaram contra problemas físicos para esticarem suas carreiras. Monstros sagrados que conseguiram vitórias memoráveis, improváveis, quase milagrosas nesse período.
Agassi, com um problema crônico nas costas, alcançou a final do US Open com 35 anos em 2005, numa época em que ninguém dessa idade alcançava aquele nível de tênis. Andre arrancou vitórias memoráveis em seus últimos anos. Bateu Blake em cinco sets espetaculares. Mais tarde, em seu último torneio, o US Open de 2006, deixou Marcos Baghdatis, 15 anos mais jovem, com cãibras.
Guga, depois de uma cirurgia no quadril, nos deu de presente aquela vitória sobre Roger Federer em Roland Garros. Três sets inapeláveis sobre o então número 1 do mundo, o homem que viria a dominar o circuito pelas três temporadas seguintes. Já faltava físico, mas o talento, a coragem e a inteligência para fazer o que era necessário estavam lá, aquela tarde, na Chatrier. Mesmas características que lhe acompanharam no Costão do Santinho, em 2008, contra o modesto Carlos Salamanca. Aquela vitória na raça sobre o colombiano, que era apenas o número 318 do mundo, teve valor irrisório no ranking e no bolso de Guga, mas encantou todos que lotaram aquela arquibancada. Uma última lembrança de quem foi Gustavo Kuerten. Muito além dos resultados no circuito.
Hewitt teve todo tipo de problema no pé e ouviu de vários especialistas que não poderia voltar ao tênis profissional. Não desistiu. Lutou como poucos. Quem não lembra da vitória sobre Baghdatis em um jogo de cinco sets que acabou às 4h33min da manhã em Melbourne? Ano depois, diante de rivais que jogavam um tênis de muito mais potência, Lleyton ainda sacou da cartola um Australian Open brilhante em 2012, quando era #181 do mundo e bateu, em sequência, Andy Roddick (#16) e Milos Raonic (#25) - e ainda ainda tirou um set de Djokovic, então líder do ranking. Em 2014, o persistente australiano, então com 32 anos, levantaria sua última taça na grama de Newport. Também um triunfo pequeno diante de toda obra de Hewitt, mas um feito nascido do suor de quem deixa até a última gota na arena de combate.
E se Hewitt gostava da luta pela luta, pelo prazer de estar na sua própria versão de um octógono, Rafael Nadal não pensa de maneira tão diferente. Aos 35 e sem que o corpo lhe deixe treinar como gostaria, segue no esporte pelo amor à competição. "Minha pressão é apenas para ficar saudável e apreciar o fato de que estou competindo para dar meu melhor como fiz em toda minha carreira", disse após uma vitória neste Australian Open.
Rafa sabe que suas chances no torneio são limitadas. Antes de embarcar para a Austrália, ficou sem competir desde agosto por conta de uma lesão no pé. Em dezembro, teve seu regime de treinos prejudica porque pegou covid. Não havia como o espanhol estar fisicamente bem para disputar partidas longas no Australian Open. E isso ficou claro nesta terça-feira, quando o duelo com o canadense Denis Shapovalov, 13 anos mais jovem, foi se alongando.
Calor, incômodo estomacal, uma dezena de duplas faltas. Um adversário em grande momento e esbanjando confiança. Não, Nadal não deveria ter vencido o quinto set, mas é nesse capítulo da história que o veterano mostra seu valor. Rafa controlou o que podia controlar e o fez à perfeição graças a 15 anos de aprendizado no circuito. Usou todos elementos possíveis. Chamou o médico para tratar do estômago, colocou toalhas geladas sobre a cabeça e aproveitou o ventilador pessoal que todo atleta tem direito no torneio.
No lado técnico, concentrou-se em confirmar o próprio serviço, mudando até o movimento de saque na reta final do jogo; gastou energia apenas nos pontos realmente importantes; parou de correr atrás de bolas que não mudariam o placar a seu favor; e ganhou um gamezinho no saque de Shapovalov logo no começo do quinto set. Apenas o necessário. Rafa gerenciou o momento como só os grandes conseguem. Saiu de quadra vencedor mais uma vez.
Aproveitem, fãs verdadeiros do esporte. Andy Murray, Roger Federer e Rafael Nadal vivem este momento. Cada vitória, seja sobre Djokovic, Medvedev ou o número 150 do ranking, é mais valiosa a cada dia. E é justamente agora, quando o corpo não responde com a velocidade, a força ou a resistência de antes, que a matéria-prima de que esses monstros são feitos fica cristalina, para o mundo todo ver. Apreciemos o valor dos veteranos.
Coisas que eu acho que acho:
- Shapovalov mostrou uma imaturidade grotesca no quinto set. Errou bolas bobas, buscou linhas quando não precisava e deu todo tipo de ponto de graça para um rival que estava atordoado. Deu nova vida ao oponente errado e pagou caro por isso.
- Som de hoje no meu Kuba Disco: You Shook Me All Night Long (AC/DC) porque bem... o título é autoexplicativo, não?
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