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Sempre vou lembrar

Roger Federer é carregado após seu último jogo profissional, na Laver Cup de 2022 - Getty Images
Roger Federer é carregado após seu último jogo profissional, na Laver Cup de 2022 Imagem: Getty Images

Colunista do UOL

24/09/2022 04h00

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Sempre vou lembrar de Houston/2003. Jogão contra Agassi na fase de grupos da Masters Cup. Ele teve dois match points. Você salvou o segundo com uma direita inside-in espetacular. Depois, fechou o jogo com uma direita cruzada que confundiu até o narrador. Foi a primeira vez que você me... irritou! Talvez a única. Aquele dia foi duro. Agassi foi o cara que fez eu me apaixonar por tênis. Até aquela partida, ele nunca tinha perdido de você. Depois, nunca mais venceu. É difícil entender e aceitar quando os melhores dias do seu ídolo ficam para trás. Aqueles forehands vivem comigo até hoje. Machucaram mais do que aquela final de 2005, a última chance de verdade para Agassi vencer um slam. E tudo bem. Este texto, assim como os 19 anos desde aquele dia no Texas, também é sobre um segundo amor.

Sempre vou lembrar do décimo slam. O slam nota 10. O primeiro que vi e revi em DVDs piratas comprados de um americano que anunciava em um fórum online. Por muito tempo, aquela semifinal contra Roddick foi minha definição de atuação peRFeita. Impecável. Implacável. Intocável. O jogo é uma coleção de highlights, mas um ponto em especial ficou comigo. Uma passada de bate-pronto de backhand no 0/2, 0/30 do segundo set. Sublime. Uma obra-prima tenística. Dez slams, e você tinha só 25 anos. Os 14 de Sampras, recorde outrora inalcançável, já estava na mira. As maiores marcas do tênis estavam sendo reescritas, e só você tinha acesso ao livro de recordes.

Sempre vou lembrar daquela passada. Seu reinado no All England Club estava em jogo. Você salvou um tie-break no terceiro set, e eu tive que deixar o clube. Meu voo de volta era naquela noite. No caminho até a o metrô, entro em uma loja pop-up da Nike para ver o segundo tie-break. Rafa teve saque e match point. Sacou na sua esquerda. Subiu à rede na sua esquerda. A bola voltou rente à rede, rente à linha. Match point salvo. Tie-break salvo. Reinado salvo (até então). No mais duro dos momentos, contra o mais duro dos rivais, no maior dos duelos - essa final ainda carrega o rótulo de maior partida da história. Se um dia um backhand foi peRFeito por um instante...

Sempre vou lembrar das lágrimas no pódio em Melbourne. Era uma final na quadra dura, contra um rival que jogou 5h na semi. Era a hora de recuperar o domínio, a liderança do ranking. Não aconteceu, e seu mundo desabou ali, diante de dezenas de câmeras que transmitiam seu choro via satélite. Machucou, impossível negar. Ao mesmo tempo, revelou mais sobre seu caráter e seu espírito do que qualquer vitória. Quem dizia que você não se importava o bastante entendeu muito naquela noite australiana. "Não quer sujar a camisa", falavam. Bobagem. Você queria e queria pra caralho. E ali, no pior dos momentos, também entendemos que era hora de você abraçar aquela rivalidade. Era necessário entender o tamanho de Rafa e o quanto vocês fariam um do outro melhores tenistas. Melhores homens até.

Sempre vou lembrar que, quatro meses depois, as lágrimas foram de alegria. As suas, as minhas e as dos deuses. Choveu durante quase toda aquela final de Roland Garros, e ninguém vai me convencer que foi um mero fenômeno climático. Era o slam que nos faltava (e dane-se a terceira pessoa daqui até o fim deste texto) e, finalmente, Rafa estava fora do caminho. Foi duro passar por Haas e Del Potro, mas quando veio a decisão contra Soderling, ninguém tirava aquele troféu de você, de mim e de uma Chatrier inteira que esperava e sofria há quatro anos esperando aquele dia como uma espécie de season finale badalado. Ver suas lágrimas através das minhas colocou um pedacinho deste fã naquele pódio. Torcer contra você sempre foi torcer contra a arte. Não gostar de você é não gostar de tênis.

Sempre vou lembrar daquele som no Estádio Arthur Ashe. Era a semifinal de 2009, e saí da quadra para a sala de imprensa, no térreo do estádio, quando você venceu o segundo set. Meu relato daquela partida já estava bem encaminhado quando Djokovic tentou uma curtinha no 5/6, 0/30. O estádio veio abaixo. Dava para sentir as estruturas vibrando. Um estrondo como nunca mais ouvi numa quadra de tênis. Olho para o monitor, e você ainda está correndo para alcançar a curtinha. O público continuava a festejar. Gritos, assobios, aplausos... Foi quando lembrei: "o delay da TV!" Sigo olhando para o monitor e, enfim, vejo, a passada de Gran Willy. Logo ali, no maior estádio do mundo. Logo diante daquele adversário. Valendo o match point. Paralisante. Desmoralizante. Apaixonante.

Sempre vou lembrar do dia em que bati bola com você. Nem tanto por estar na mesma quadra ou ter devolvido seu (gentil, obrigado) saque. Muito menos pela massagem no ego que vem embutida na frase "bati bola com você". O que guardo de mais especial sobre você e ocasião veio meia hora depois, quando tive a chance de entrevistá-lo em uma das salas do mesmo ginásio. Você me viu chegando, lembrou do bate-bola de antes e disse, com um sorriso: "bem-jogado lá embaixo." Porque sua genialidade, Roger, também estava em reconhecer a hora de dizer uma mentirinha bem dita, com um charme só seu.

Sempre vou lembrar de 2017. Aquela final na Austrália. O jogo que mudou o roteiro. Aos 35, voltando de lesão e contra um oponente que você nunca havia superado em Melbourne. Em cinco sets, depois de estar uma quebra atrás na parcial decisiva. Incluindo AQUELE rali. Quando todos já achavam que um novo revés era iminente. Naquele dia, você começava a recalcular a rota da rivalidade com Rafa. Um recomeço, mas também o início da fase final da jornada. Uma relargada que seguiremos saboreando muito depois da bandeira quadriculada.

Mais do que qualquer outro lugar, sempre vou lembrar de Wimbledon. Ali, testemunhar seu ofício era quase uma experiência religiosa (obrigado, David Foster Wallace). Vê-lo na grama era sentir que, por um par de horas, havia ordem no cosmos. Matéria e energia em seus devidos lugares. Uma engrenagem divina em pleno funcionamento no plano dos mortais.

Por último, sempre vou lembrar das lágrimas. As minhas, mais do que eu tinha conhecimento. As suas, claro. As de Rafa, então, me derrubaram. Também levo na memória o choro dos grupos de WhatsApp, dos seguidores no Twitter, dos seus colegas e dos meus, todos fãs de tênis com uma paixão em comum: você. Lágrimas de tristeza, sim, porque a mais mágica das histórias chegou à página derradeira, mas de alegria também por te ver sorrindo em quadra uma última vez. Por te ver feliz, celebrando e, sobretudo, celebrado.

Sempre vou lembrar dos 20 slams, das 310 semanas como número 1, dos 18 anos como top 10, do ouro olímpico, da conquista da Copa Davis e de tantas outras marcas e taças. Não foram, contudo, suas estatísticas que levantaram e embasbacaram plateias pelo mapa da bolinha amarela. Não havia fórmula matemática que sobrevivesse a um daqueles momentos em que você encontrava (provocava?) uma falha na matrix. Quando todos esperavam um forehand flamejante, e você surpreendia com uma curtinha no-look. Como se estivéssemos em rotações diferentes, e você, claro, observava todo o resto em superslow.

Sempre vou lembrar da magia. Da arte. Da poesia. Não era o quê. Nunca foi. Era como você fazia. Seu tênis encantava e confundia. Conquistava e embaraçava. Inspirava e manipulava. Apaixonava. Aquecia. Calor que derrete o mais everéstico dos números. E, ainda acima dessa montanha, Roger, você o fazia com respeito ao adversário e a nós, seus fãs. Você foi o rival que, como Andy Roddick bem colocou, seus adversários amariam odiar e odiavam amar. Questão de caráter.

O tempo vai passar e nossos encontros - você na TV, nós nas arquibancadas e sofás - serão mais raros. Talvez, apenas talvez, nós, seus fãs, esqueçamos de uma ou outra vitória, ou até daquele ponto improvável e inigualável que hoje está rodando em loop na mente. Aquela frase que um dia nos marcou quiçá se perca como um velho arquivo em um smartphone obsoleto. Memórias se desfazem, somem sem avisar. E tudo bem. Como Charlie Kaufman um dia escreveu, "é possível apagar alguém da mente. Tirá-la de seu coração é outra história."

Obrigado, Roger.

Um fã.

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