Topo

Saque e Voleio

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Paciaroni, parte II: estudos, ciência, Kerouac e "Foo Fighters x Aluguel"

Divulgação/RTB
Imagem: Divulgação/RTB

Colunista do UOL

25/04/2023 04h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Beatriz Haddad Maia começou a temporada de 2021 disputando um modesto torneio com premiação total de US$ 25 mil. Na época, a paulista ocupava apenas a 362ª posição no ranking da WTA. Dois anos e dois meses depois, Bia é a número 14 do mundo e parece justo dizer que ela tem chances reais de levantar o troféu em cada torneio de que participa.

O início de 2021 também foi o ponto de partida oficial da parceria com o técnico Rafael Paciaroni. Os dois logo entraram em sintonia, apesar de o nome do treinador ser um tanto questionado inicialmente. De lá para cá, como ele escreveu no post publicado ontem aqui no Saque e Voleio, foram 17 finais em simples e duplas, incluindo uma decisão de slam (AO/2022 na duplas), outras quatro em WTAs 1000, além de quatro títulos de nível WTA.

Até agora, porém, o grande público sabe muito pouco sobre Paciaroni e sua real influência sobre Bia - embora os resultados falem um bocado. Quem é o paulista de 36 anos que levou a maior promessa do tênis feminino brasileiro à elite do tênis? De onde surgiu? Como vive? De que se alimenta? Piadinhas globorreporterianas à parte, é fato que Paciaroni ainda é uma figura relativamente desconhecida dos fãs de tênis.

A ideia deste especial, iniciado ontem, é justamente mostrar quem é, como se preparou e por que Paciaroni tirou de Bia o melhor tênis que ela já jogou. O próprio Rafael me recebeu em sua casa, aqui em São Paulo, onde conversamos por cerca de quatro horas (2h30min de gravação). O resultado é o que será publicado aqui até quarta-feira, em quatro partes, e o leitor que chegar ao fim deste "especial" terá uma excelente noção dos porquês do sucesso da parceria Haddad Maia-Paciaroni.

No post de hoje, segunda parte da série, publico a parte em que falamos da chegada e da ascensão de Paciaroni no tênis. Um rapaz que deixou de lado o futebol e o sonho de uma carreira profissional no tênis porque precisava pagar contas e seria mais fácil ajudar a família como treinador; que viajou até a Inglaterra por conta própria em busca de conhecimento e intercâmbio; e que nunca deixou de estudar. Fez faculdade de educação física, escreveu o livro "Tênis - Novos Caminhos Para uma Abordagem Profissional", publicou artigos científicos e aplica até hoje em seu trabalho conhecimentos técnicos, tecnologia, números e estatísticas com um nível de detalhe raro na modalidade. Leiam. Vocês vão gostar.

Você fez a faculdade de educação física porque já estava envolvido no esporte?

Eu sempre fui muito competitivo, sim. Eu tinha notas muito boas, era um aluno muito bom em termos acadêmicos, mas o meu negócio era trabalhar de bermuda e esporte de alto rendimento. Eu sempre fui muito, muito competitivo. E a única coisa que eu sentia: no tênis já tinha começado atrasado, então eu já tinha essa clareza. Eu ia ter que dedicar muitas horas, e muitas horas significavam muito dinheiro, e meus pais não tinham esse subsídio. E aí foi nessa época que eu falei: "Putz, cara, o futebol é o meio mais complicado, né?" Eu já tinha vivido bastante futebol, continuava jogando na várzea ainda, e era um ambiente muito diferente. Foi quando eu falei: "Eu tô decidido que eu vou pro tênis. E ali, com 16 pra 17 anos, eu começo a fazer estágio e começo a dar aula, que era aula social e tênis pra crianças de 4, 5, 6 anos.

E a partir daí, em linhas gerais, depois eu vou para uma outra academia chamada Ripol. A Ripol era muito legal, o Léo [Azevedo] era o consultor técnico da academia e trabalhava com o [Thomaz] Bellucci nessa época. Eles me convidaram pra trabalhar na época com [crianças de] 9, 10, 11 anos. E aí [mais tarde] eu recebo o convite pra ir para o Clube Pinheiros. Era para trabalhar com pré-competitivo, jogadores que tinham ali, 10, 11, 12 anos. O coordenador, na época, era o Eduardo Eche. E quem me fez o convite era o Luis Fabiano Ferreira, que é quem hoje trabalha no RTB. Tudo sempre muito escalonado, passando por todas as fases, fazendo pequenos bons trabalhos. É quando eu conheço a Bia. E ali a Bia tinha 12 ou 13 anos. Eu dava bastante treino para a Bia e mais ainda para o primo dela.

E como você vai parar na Inglaterra?

Dentro do Pinheiros, cada vez fui trabalhando com jogadores mais velhos e sempre de uma maneira bastante virtuosa, assim, bem legal. E a partir daí vem a possibilidade de morar na Inglaterra, e nessa época eu estava pra entrar no mestrado. Eu tinha entrado, na verdade e... Só que veio essa possibilidade de ir para a Inglaterra, e nessa época, cara, eu tava consumindo e lendo muito - eu gosto muito de ler, né? - Jack Kerouac, e ele tem muito essa questão. O livro principal chama On The Road, e ele tinha muito essa questão de, cara, de autoconhecimento pela estrada, de viver novas coisas, de se abrir e etc. Experimentar, para cá, para lá, se mexer e... Mas o autoconhecimento pela estrada mesmo, né? Experimentar viver em outros lugares, etc. Outras experiências culturais. E aí, cara, é quando existe uma possibilidade de ir para a Inglaterra, a princípio com uma pequena bolsa de estudo, mas ao longo do caminho essa bolsa deixou de dar certo, e eu decido ir assim mesmo. Quando eu chego na Inglaterra, eu fiz toda... São equivalências de currículo, então eu tinha que fazer o que eu tinha de curso, e nesse período que eu tô te falando, eu fui sempre me capacitando. Fiz bastante curso de capacitação, e aí eu consigo fazer equivalência, então eu consigo uma licença pra trabalhar na Inglaterra, o que era difícil na época. Só que antes eu faço um mochilão de quase 60 dias, e todas as reservas financeiras que eu tinha até o momento, elas vão embora nesse mochilão.

Você estava com quantos anos aí?

Uns 23. E praticamente, cara, fiquei mochilando por toda Europa. Fui pra uns dez países, foi sensacional, mas eu praticamente fiquei sem recurso. E quando eu chego na Inglaterra, eu começo a aplicar pra trabalho. Eu tinha dinheiro para mais quatro semanas exatamente. Não tinha como pedir pro meu pai e pra minha mãe porque não tinham dinheiro, né? E aí eu começo a fazer entrevista, só que meu inglês era horroroso. Era daquele que ia no McDonald's e tinha que apontar para o painelzinho. E batata: eu comecei a ir pras entrevistas de emprego, e os caras olhavam o currículo e falavam: "Pô, currículo bacana pra cá, mas... " Porque eu já tinha trabalhado bons jogadores, juvenis e etc, no Brasil, que estavam com algum destaque internacional. Só que chegava na hora, eu não falava quase nada. Por exemplo, é engraçado: quando eu cheguei lá, eu não sabia como é que falava paralela. Quando eu cheguei lá, os caras "down the line", e eu assim, tipo, o que é isso? E fui entender na prática.

E aí cara, devo ter feito nessas três semanas umas dez entrevistas, e a segunda entrevista foi num clube no norte da Inglaterra, um pouquinho fora de Londres. Senti que o cara gostou de mim, mas viu que tinha falha de comunicação. Só que eu saí, e tinha um juvenil batendo paredão, e eu falei: "Putz, posso aproveitar que eu tô aqui e posso lá e treinar um pouco?" E nessa época eu tava treinando bastante. E aí putz, fui na quadra de cima, comecei a treinar com o juvenil, fizemos um treino pegado, e aí vou pra casa sem expectativa nenhuma. Aí quando passa uma semana, chega um e-mail dele falando assim: "Ó, meu, eu selecionei um cara da Eslováquia porque ele tem um passaporte europeu, facilita muito na questão de trabalho, mas, putz, gostei muito do seu jeito e como você se dispôs depois da entrevista a bater bola pra dar uns toques para uma jogadora juvenil, vamos ficar em contato. E aí já veio o desespero. Eu não sei se você gosta de rock and roll ou não, mas...

Gosto!

E aí chegou a fatídica última semana de dinheiro. Entre aluguel, comida e tudo, acabou. E nessa última semana, tinha um show do Foo Fighters em Wembley, que era do lado de onde eu morava no começo. E era assim, cara: ou eu comia e pagava aluguel ou eu ia pro Foo Fighters. Aí putz, tive que pagar o aluguel e comer, e aí perdi esse show, que acho que é um dos maiores do Foo Fighters de todos. O show do Foo Fighters era sábado, assim, e sexta-feira mais ou menos o Paul, que era o head coach, me ligou e falou: "Meu, você não quer me acompanhar em um treino que eu vou dar hoje?" Foi quando eu fui, fiquei lá com ele, ele gostou, e na semana seguinte ele: "Cara, vamos na terça? Vai ter uma aula de crianças de 7, 8, 9 anos." Passou menos de um mês, e a gente já estava abrindo o competitivo do clube, que tinha parado. Um ano depois, tava com a vida linda lá. Tava muito bem, todo mundo melhorando. O clube, putz, com todos os subsídios. E cara, tudo indo muito bem, mas chega uma hora que eu não conseguia mais renovar meu visto, nessa época eu não tinha o passaporte italiano. Aí eu não queria ficar ilegal porque pra mim tudo o que foge a regra me incomoda um pouco e ai eu falei...

Quanto tempo você ficou lá ao todo?

Quase dois anos. Para mim, foi excelente. Aprendi a língua, consegui ver gente trabalhando no mundo inteiro, aí foi quando eu tive contato diário mesmo com treinador espanhol, treinador italiano... Pra mim, foi muito bom porque comecei a olhar e falei: "Pô, o cara é italiano, mas eu trabalho mais duro que esse cara." Ou "pô, espanhol sempre tem aquela fama de trabalhador, mas cara, acho que o meu treino tem um pouco mais de qualidade do que o treino desse cara." E eu comecei a ver que o meu profissionalismo estava forte. Isso me encheu de convicção do processo, e eu sempre fui muito sonhador. E aí vence meu visto, e o Alex Blumenberg estava procurando treinador. Foi muito legal porque foi super desafiador, foi um aprendizado muito grande pra fase do Alex, que tava jogando Future, e foi a minha primeira experiência no tênis profissional. Foi um trabalho que até hoje eu super me orgulho, assim, porque o Blumenberg, quando a gente começa a trabalhar, era 1340, e a gente vai junto até 620 mais ou menos na ATP. E isso, de novo, me encheu um pouco mais de confiança. A partir daí, veio o convite do Instituto [Tênis, atual RTB, o Rede Tênis Brasil].

E você acabou chegando na Bia, indiretamente, por estar lá...

É aquela história que eu acredito muito assim, que é... O nosso papel, a gente tem que fazer bons trabalhos onde a gente tá no momento, então putz, agora o que eu tenho pra trabalhar é uma jogadora de 11 anos ou 12 nível estadual? Eu tenho que pegar essa jogadora de 11-12 anos e tenho que fazer ela ser a melhor versão que ela pode ser. A partir daí, não tem como: outras portas vão se abrir. As pessoas olham, não tem como. A pessoa vê que você era um nível e tá outro. Se a pessoa faz um trabalho com essa jogadora, ou com esse jogador que é limitado, pô... "Será que não pode fazer com outro jogador num outro nível?"

Você também escreveu artigos científicos. Quando encontrou tempo para isso?

Antes de ir pra Inglaterra, eu tava bastante engajado porque eu ia muito bem academicamente, então tinha boas publicações, enfim, boas notas, redigia bem, enfim... A teoria era pra me dar subsídio para a prática, nunca foi o contrário. Então eu sempre fui um cara da prática, mas os meus questionamentos eu ia buscar. Só que eu sempre tive muito claro que ninguém se alimenta de cardápio, então ficar só na teoria não dava. A teoria, pra mim, sempre foi a base da minha aplicação prática. Então eu tava aplicando, tinha dúvidas e ia buscar na literatura que outras pessoas já tinham vivenciado, e acho que é assim até hoje, né? Pra mim, a ciência é um braço que se você virar de costas pra ela, você fica pra trás na mesma hora, seja tecnologia, seja qual for a base que você tenha. E nessa época eu fazia parte do grupo de estudo da USP muito forte e tinha acabado de aplicar pro mestrado, mas aí vem a tomada de decisão que eu não me arrependo, que é... Eu dou o freio na vida acadêmica e vou viver essa experiência de morar fora. Eu enxergava que pra eu chegar no alto rendimento e ser um bom treinador, eu precisava falar outras línguas, e se eu ficasse eu ia ser um cara que ia redigir em inglês, ia conseguir ler em inglês, mas nunca ia falar, me expressar bem em inglês provavelmente, então eu tinha muito claro que pro meu caminho eu precisava ter essa experiência internacional. Na época, até o meu projeto de mestrado era esse: eu comparava o Brasil e a Inglaterra com Argentina e Espanha porque na época o Brasil financeiramente era uma potência, né? A Inglaterra sempre nadou de braçada em relação à Espanha em termos financeiros e econômicos, só que tanto a Espanha como a Argentina tinham inumeramente mais jogadores do que Brasil e Inglaterra. Então a minha questão era tentar identificar culturalmente onde isso pesava porque não era fatores econômicos, eram fatores culturais, né? E então a pesquisa era super interessante, mas aí eu abri mão e não me arrependo, porque depois as coisas vão caminhando na parte prática.

E hoje continua assim?

Nunca deixei de estudar, nunca deixei de ler, mas a parte acadêmica se tornou mais do que nunca realmente um braço de evolução. Até hoje, por exemplo, a gente estuda muito hoje. Eu e o Rodrigo Urso, que é o preparador físico da Bia, a gente estuda muito questão perceptiva-cognitiva, que é tudo... Quanto que eu recebo de informação até o processamento, com a parte dos olhos, visual, e o quanto demora esse meu tempo de resposta, que é uma das coisas que na Bia a gente tem certeza que... Agora a gente tá embasado com isso porque a gente fez alguns testes, a gente tem certeza que é uma das coisas que ela vai melhorar muito, e a partir do momento que ela evoluir muito, isso vai com certeza resultar em coisas maiores pra ela, então a Bia tem ainda essa questão de identificação visual muito lenta, então até chegar...

Eu ia chegar nisso lá na frente, mas já que você entrou nesse assunto agora, como é que vocês identificaram isso e como é que se trabalha para evoluir?

Existem baterias de teste, existem empresas especializadas mesmo que fazem a avaliação toda ocular de perceptivo-cognitivo. Tempo de identificação, depois tempo de processamento e tempo de resposta. No tênis, seria antecipação mais ou menos. De acordo com a pessoa chegou na bola, o equilíbrio do corpo da pessoa e a posição da raquete, onde ela vai bater, né? Ou seria um padrão antes. Normalmente, a Rybakina saca mais aqui ou ali, aí vem a confirmação visual. Pelo toss dela, realmente, agora é fechado. Então tem esse tempo de antecipação, aí tem o processo dele, que seria o tempo de reação: o quanto que eu demoro pra processar e reagir. E o quanto que eu consigo reagir mais cedo, antecipo mais cedo, reajo melhor, eu tenho mais tempo pra decidir. Então a tomada de decisão da Bia normalmente é muito boa, mas o processo dela de recepção de informação é mais lento, e a Bia antes tinha muita dificuldade de atenção mesmo. Você ia conversar, ela se distraia com facilidade. É isso que eu falo do multifoco, mas que é uma coisa não só da Bia, mas é uma coisa muito da juventude ou da geração mais contemporâneo. É que cara, eles cresceram num ambiente que existem muitas informações, só que no tênis só tem uma, né? Que é a bola. E, claro, existe a questão corporal do adversário. E a Bia melhorou 600% já nisso. É uma das coisas que ela mais melhorou nesses últimos três anos, mas agora recentemente ela fez uma bateria de testes e ela ainda tá muito abaixo da média em relação na questão de identificação visual. Ela demora ainda pra identificar alguns padrões, e isso faz com que a última fase do processo tenha que ser tomada tudo muito eufórica, muito rápido. E aí bate isso com perfil de ansiedade, que embora tenha baixado muito, a Bia é uma pessoa ansiosa, então em alguns momentos, quando ela não tá 100% conectada com a ação, o tênis dela acaba caindo bastante. Agora, quando ela se conecta... Você pega igual ao terceiro set dela com a Rybakina em Abu Dhabi [Bia venceu a então número 10 do mundo por 6/2 nesse terceiro set], você fala assim: "E aí?" É o nível de atenção.

Em termos para leigos, é como se ela demorasse para perceber, por exemplo, a posição do pé da adversária no saque? E isso vai indicar aonde vai a bola?

Geral. Desde uma fala de uma conversa aqui agora, quer dizer, você vai fazer uma pergunta, e ela vai demorar um pouco pra processar às vezes, mas não por capacidade cognitiva. Nisso aí ela é inacreditável, mas por questão de atenção e velocidade de processamento. É o quanto ela consegue ali ficar no monofoco. A questão dela é atenção, se a gente fosse resumir assim. Não é que ela tem déficit de atenção. Não tem, tá? E ela melhorou muito nisso. A questão é que pra uma jogadora do nível que ela é, de altíssimo nível, o nível de atenção dela precisa melhorar. Então o nível de recepção de informação dela, tanto visual como auditiva, mas sobretudo visual, o que mais importa pra gente um pouco no jogo de tênis, a recepção visual dela precisa melhorar. Ainda é uma recepção visual lenta - claro, ela chegou a 12 do mundo dessa maneira, então é sempre aquela história: nosso papel é sempre buscar o tempo inteiro melhorias, e se em algum momento a gente achar que tá bom, não tem como, é dali pra baixo. E a gente já identificou isso agora. Agora a gente tá amparado porque a gente fez os testes, e os testes corroboraram, então dá pra melhorar muito. E pra mim essa é uma grande notícia. Se dá pra melhorar muito, putz, aonde que ela pode chegar? Agora... Com paciência, né?

Você está me dando um monte de informação técnica e científica que eu nunca ouvi de outro treinador, e eu já conversei com vários treinadores. Existe uma espécie de preconceito de técnicos de tênis old school com a ciência? O velho "ciência não faz jogador"?

Eu não chamaria de preconceito, mas eu acho que essa informação não tá errada, né? Porque é o que eu falei: ninguém se alimenta de cardápio. Agora, ao mesmo tempo, quem hoje não quiser...

Quem ignora isso, está atrasado.

Quem ignora isso, está atrasado. Por exemplo, hoje não tem como uma jogadora de alto nível não ter uma análise de jogo totalmente embasada por trás. Depois eu vou te mostrar. Então, cara, se eu quiser saber quantos pontos... A Bia vai jogar com a Trevisan amanhã. Como que, por exemplo, quando a Bia saca aberto com kick, do lado iguais, e a primeira bola ela mexe na zona tal, quantos pontos ela ganha? Então eu consigo saber tudo. Isso é amparo, isso é embasamento, isso dá subsídio pro seu trabalho. Não só pra você saber se você tá olhando e tá no caminho certo... Ou não. Se você tá indo pra uma direção, e os números estão te apontando pra outro, no mínimo você tem que parar e rever, né? Assim como também pro processo muitas vezes de convencimento do atleta, que não é o caso da Bia. A Bia... Uma das coisas incríveis dela é que ela é muito aberta à informação. Ela poderia ser uma pessoa super fechada conforme vai subindo, "Não não, isso aqui eu já sei." É ao contrário. O nível de disposição dela de aprender é incrível, todo dia parece que é um dia novo, que ela tá começando do zero, e isso diz pra mim muito de quem ela é e porque ela tá onde ela tá. Então assim... Quem hoje não usa informação ou quem não vai buscar alternativas tá pra trás. Então, por exemplo, essa parte de embasamento estatístico e etc. Eu consigo saber o nível de deslocamento da Bia. Quando a Bia desloca mais de 3m, se a eficiência dela sobe ou baixa; o nível de quanto a Bia no saibro consegue deslizar pro forehand pro backhand, se é o mesmo ou não, se ela consegue preencher o mesmo espaço da quadra ou não; eu consigo saber quando a Bia tá um passo dentro da quadra na região tal, se a eficiência dela é mais alta ou mais baixa, qual zona que ela tem que evitar dentro do ponto, que não pode acontecer dela bater uma bola naquela região, senão ela perde 80% dos pontos...

Mas isso tudo você consegue saber por que meio?

Hoje tem uma empresa por trás que faz esse trabalho. Só que... É, tem que ter uma empresa de reports.

(risos) Eu li duas entrevistas suas, e em ambas você fala de um relatório, mas eu fiquei louco de curiosidade porque ninguém te perguntou quem faz esse relatório [uma empresa chamada Golden Set Analytics].

É pago, é um serviço hoje que assim... Eu acho que pra poder pagar, são jogadoras que estão mais no Top 50 mesmo. Mas é um serviço caro que te dá muita informação. E aí por exemplo, acaba o jogo da Bia contra Niemeyer na Fed Cup. Se é um jogo relevante, ou seja, teve uma carga emocional normal, que não foi uma carga emocional altíssima, com um comportamento padrão que a Bia vem apresentando, eu posso ir lá, eu peço pros caras, eles pegam o Hawk-Eye do jogo, a gravação, e fazem a análise. Eu quero saber agora com a Bia se deslocando na diagonal pra frente, num tiro de quatro metros... Ela chega escorregando? Não chega? Quanto que ela para de preencher porque ela não chega escorregando? Porque tem dificuldade de escorregar nessa bola ainda, etc. Você sabe tudo, exatamente tudo. Mas o ponto é assim, né, Alê? Isso demanda tempo, isso demanda estudo do treinador, né? Porque é tempo. Por exemplo, hoje eu falei com ela uma hora antes de a gente começar a entrevista. Eu fiquei duas horas estudando, né? Isso porque ela já jogou com a Trevisan duas vezes recentemente. Eu tenho o jogo claro na minha cabeça, mas se eu achar que eu tenho o jogo claro na minha cabeça, é quando algumas coisas passam. E eu não posso, como líder da equipe e como treinador dela, eu não posso me dar esse direito. Então eu tenho que ler os reports, tenho que relembrar algumas coisas, e depois que eu vejo os reports.. "Ah, saca mais pra cá, devolve mais aqui, etc.". Eu vou nos vídeos, coloco uns vídeos pra ver se os padrões mesmo eles estão ali, né? Só que aí tem duas coisas: uma é que demanda tempo. E dessas duzentas informações, eu seleciono três, às vezes quatro, às vezes duas. Depende da fase, se a Bia está mais emocional ou menos emocional, e eu levo essas informações centrais pra ela, que é onde a gente monta o plano de jogo.

Você está me falando com o nível de detalhe que soa como um técnico de NFL, que vê e revê os jogos precisando analisar o movimento de cada jogador da defesa e do ataque...

Mas é o que a gente tem que fazer! O tênis chegou nesse lugar! Hoje é o que tem que fazer. Só que isso tem um problema que ao mesmo tempo expõe seu trabalho...

Mas quantos técnicos fazem isso?

Ah, não sei, eu não vou responder.

Eu seu que você não gosta de fazer autopropaganda, mas...

Não. Zero. Essa eu não vou entrar.

Que você não queira responder, ok, mas você sabe?

Não sei. Eu sei que no Brasil tem pessoas desenvolvendo ferramentas nesse sentido. A ferramenta tá ficando muito legal. Fui lá, falei pra eles: "Ó, meu, isso aqui acho que tá legal, isso aqui tá atrás, isso aqui tá bacana, isso aqui demora mais..." Eu não consigo, por exemplo: a Bia tava com a Ostapenko 3/1 no terceiro set. Eu demorei quase dois dias pra saber uma informação simples: eu queria saber a partir dali quantos winners a Bia tinha dado no jogo. E a resposta eu sabia, era zero, e eu queria ter essa confirmação. Zero. E toda vez que a Bia fica mais passiva, a Bia ainda erra mais. Tem duas coisas: ela deixa de ganhar e ainda começa a errar mais. E ao mesmo tempo eu queria mostrar pra Bia o que acontece na dinâmica da Ostapenko. A Ostapenko deu nove winners e errou duas bolas. Porque quando me proponho mais, que é o que eu treino, eu faço mais e falho menos porque eu tô mais concentrado em fazer do que "não posso errar" ou "não posso falhar", que é onde o jogador de tênis se perde.

—- / / —-

O "Especial Paciaroni" ainda terá mais duas partes. No post de amanhã, relato a parte da conversa em que falamos sobre a personalidade do treinador e sua relação com vaidade, seu temperamento, seus sonhos, livros e músicos preferidos e, claro, como tudo isso forma a pessoa que tem a responsabilidade de conduzir a carreira de Bia Haddad Maia dentro de quadra.

Na última parte, que vai ao ar na quarta-feira, trarei os trechos da conversa que relatam a influência direta de Paciaroni no tênis de Bia, desde como a tenista já se transformou, passando por um confronto diário contra seu conservadorismo, até o que a dupla estabelece como prioridade no trabalho de hoje, de olho nos grandes torneios de saibro.