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REPORTAGEM

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Paciaroni, parte IV: criando desconforto, mas respeitando o 'tempo de Bia'

 Rafael Paciaroni, técnico de Bia Haddad Maia - Divulgação/RTB
Rafael Paciaroni, técnico de Bia Haddad Maia Imagem: Divulgação/RTB

Colunista do UOL

28/04/2023 04h00

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Nos primeiros dias desta semana, você leu aqui no Saque e Voleio as primeiras partes de minha entrevista com Rafael Paciaroni, técnico de Beatriz Haddad Maia. Leia aqui a Parte I, a Parte II e a Parte III.

Nesta sexta-feira, chegamos à quarta parte da entrevista, e é onde Paciaroni mais fala sobre seu trabalho com a atual número 14 do mundo. Sua influência sobre a postura de Bia Haddad, as análises minuciosas sobre o tênis da brasileira, a urgência por melhorar a movimentação no saibro e a necessidade de criar desconforto diariamente são alguns dos tópicos. Leiam!

O seu livro tem uma parte muito grande sobre biomecânica. É algo que você usa no trabalho com a Bia, como profissional? Ou você acha que é mais útil na formação e no profissional nem tanto?

Eu acho que é eternamente útil. De novo: tudo o que possa proporcionar 0,1%, e não tô dizendo que proporciona 0,1%. Pode proporcionar 49%. A gente tem que ir atrás sempre. Acho essencial no processo de formação. A gente tem que ter uma base técnica de alto nível, assim como a escola francesa e etc. Técnica é muito importante na parte formativa. Acho muito importante ter as avaliações periódicas. Não sou biomecânico, mas foi uma área que eu me dediquei bastante. Hoje, a gente tem a biomecânica através da empresa, então quando eu quero ver alguma coisa, seja pelo toss dela? Não é uma coisa simples. A variação do toss, que normalmente é muito pra esquerda. A gente já sabe que, em termos de estatística e mecânica, o saque funciona melhor quando o toss está levemente pra direita. Ela tem muita dificuldade. Nesse jogo com a [alemã Jule] Niemeyer [pela BJK Cup), ela parava o toss 15 vezes porque, enfim, no jogo anterior ela ficou lançando o toss lá na esquina. Porque favorece o saque slice, mas prejudica o kick e prejudica o flat. Eu gosto muito do termo "princípios biomecânicos. O que é isso? Existem alguns pontos, alguns nortes que o golpe tem que passar. Não tem como. Agora... Existe a especificidade e individualidade. Você vai falar: 'Eu acho que tem que diminuir o movimento saque da Bia" ou "Não, tem que ser mais pendular completo." Mas existem os nortes, né? O movimento, ele vai ser de baixo pra cima, de trás para frente. Então se o toss tem que ser mais alto, dá mais tempo de encaixar o cotovelo e ter um pouco mais tempo de carga, de acumulação de energia... Ou não, tem que ser um movimento mais rápido, mais explosivo.

Aí entram várias coisas, inclusive - que aí as pessoas não sabem tanto - limitações corporais. A Bia, querendo ou não, ela tem quatro cirurgias, né? Então tem muita coisa que a Bia não pode fazer. E um dos nossos trunfos no trabalho hoje, o que eu sinto muito orgulho, é que são três anos desde que a gente começou o trabalho que a Bia não teve nenhuma lesão. A Bia tinha um histórico de lesão altíssimo, e são três anos sem se machucar. Depois eu te mostro também, com o maior prazer, as coisas que a gente desenvolveu de ferramenta, de controle de carga... A gente controla sono, controla humor, controla estresse, controla a parte hormonal dela e tudo isso. Período menstrual ou não... De acordo com o período menstrual, dá pra dar mais carga e menos carga, os treinos dela podem ser mais longos ou menos longos. De acordo com o nível de estresse, o treino pode ser mais curto ou mais longo. Agora tá faltando um pouquinho quadra, de ficar mais cascuda, a gente precisa fazer um treino um pouco mais com volume e "Opa! Nessa janela dá, bora." Mas tem muita coisa que não dá. A Bia tem, só nas costas, são duas ou três cirurgias, então tem muita coisa que ela é fisicamente limitada pra fazer. E, mesmo identificando isso, hoje o que ela conseguiu melhorar de movimentação na quadra rápida, por exemplo, é incrível.

"Limpeza" de golpes vocês fazem com que frequência?

A gente faz muito "educativo", de limpeza de golpe. Então vou dar um exemplo: o forehand, se deixar, a Bia prepara o forehand dela aqui [gesticula sinalizando um movimento amplo], desse tamanho, e se alguém começa a jogar rápido pelo forehand dela, até a mão dela descer e conseguir suingar a bola pra frente, acabou. Ela só raspa a bola, e a bola começa a ficar morta. Então a gente tem que ir lá direto fazer educativo para a mão dela estar passando aqui, na altura do olho. Porque senão, ela passa aqui, dois metros pra cima da cabeça. Aí golpe fica grande, pra cima, e começa a passar pra trás. Então quando a raquete aponta aqui atrás, é um movimento desnecessário na geração de potência, então você tem que ir lá e fazer educativo pra "limpar". Aí tem um zilhão: o backhand dela começa apontar o nariz pra baixo, começa entrar por cima da bola, começa a errar muito backhand na rede, ai você tem que ir lá e tem que limpar, desde o tamanho da base até o equilíbrio da cabeça, que é o eixo central do corpo. A frequência é de acordo com a necessidade. Pode acabar um jogo, e eu vi que ela se entortou muito por algum motivo, e vamos direto pra quadra limpar os golpes pra deixar a informação clara no cérebro. E pode ser que paramos e ficamos duas semanas e não fizemos. E aí tem várias estratégias, por exemplo, o espelho. Ir lá e reproduzir o movimento olhando pro espelho. Às vezes, a parte sinestésica tá boa, mas é importante pra solidificar aquele aprendizado ela se olhar no espelho, então ela reproduz aquele movimento em câmera lenta pra ficar super sinestésico na frente do espelho. A Bia tinha um saque totalmente sem ritmo porque mudava a altura do toss, mudava a velocidade do braço... Essa foi uma das primeiras modificações. Não dá pra você lançar a bola se cada hora você está num ritmo. Para isso, você tem que fazer muito trabalho confrontando o visual no espelho. E aí o seu cérebro vai gravando aquela informação até que chega uma hora que ele te ajuda nesse processo biomecânico de aprendizagem ou de evolução técnica. Então assim, em resumo: princípios biomecânicos são fundamentais pra qualquer trabalho em qualquer fase.

Mais cedo, na nossa conversa, você diz que sua análise de números, estatísticas e tendências acabava expondo muito seu trabalho. O que isso quer dizer?

Se você tiver um nível de vaidade alta - e eu sempre acho que os problemas de quase tudo é a somatória de insegurança e vaidade. Todo mundo pode ser pouco vaidoso ou muito vaidoso, então quando soma muito inseguro com muito vaidoso, putz, acabou qualquer trabalho, né? E acaba o trabalho do treinador, que consequentemente acaba com o trabalho do jogador. Eu enxergo o papel do treinador - treinador ou líder do processo - vai de -1 a 49%. Esse é o nosso papel. Se eu quiser atrapalhar a Bia, eu consigo atrapalhar muito a Bia. Eu consigo fazer a Bia perder um jogo. Consigo deixar ela extremamente estressada, maluca e etc., e ela coloca o jogo pra fora, eu consigo ter esse nível de influência. Ah, todo treinador consegue? Eu acho que nos grandes trabalhos, se a gente for olhar, sim. Tá muito claro que o Stefano [Vukov], treinador da Rybakina [Elena Rybakina, atual campeã de Wimbledon e #7 do mundo], tem total. De -1 a 49%. Se a gente for pegar o treinador da [Aryna] Sabalenka [#2 do mundo], o [Anton] Dubrov, ele vai conseguir fazer de -1 a 49%. Se a gente for pegar o David Witt, da [Jessica] Pegula [#3 do mundo], ele vai fazer. E por que 49%? Porque chega uma hora que é do jogador. Você pode mostrar vídeo, o melhor argumento da psicanálise e qualquer coisa que seja motivacional. Se o jogador não quiser, não estiver disposto a pagar o preço, acaba na hora. E por ter esse peso, essa responsabilidade dentro do trabalho, você tem o seu papel de 49%. Mas pra isso, você tem que sempre se expor. O jogador que não quer se expor tá no esporte errado. Tênis expõe e expõe num nível incrível, por isso que constantemente está todo mundo inseguro. Porque é muito duro mesmo, né? O tempo inteiro você tem que estar performando, melhorando, performando, melhorando. Eu quero que o meu jogador se exponha porque é o necessário. Mas muitas vezes a gente não quer se expor no sentido do trabalho, né? Não no sentido midiático, que esse aí eu vou pra outra linha, né? Mas no sentido de expor o trabalho, e expor o trabalho é isso: é olhar um número e falar assim: "Cara, o plano de jogo que eu montei não estava bom. Ou a gente está indo pra uma direção, mas o número está me apontando pra outro lugar." Então assim: isso expõe o seu trabalho. Não pra mídia. Expõe o seu trabalho para o seu jogador. E seu jogador chega assim: "Você está me falando tal coisa, mas eu tô vendo aqui, o número está me falando outra coisa. E aí?" E isso pode trazer insegurança para o seu processo, então se junta com uma personalidade insegura ou muito vaidosa, você fica pra trás.

Não tem como não utilizar os números, mas claro que existe uma limitação, né? Porque êxito é uma questão de estado de espírito, né? Então a Bia pode estar super preparada, treinando muito bem, com as informações claras na cabeça, mas se ela entrar na hora do jogo e ela pensar duas coisas erradas e se perder nos pensamentos, acabou tudo. E acaba tudo na hora. Então o jogador pode estar totalmente preparado, como a gente esteve preparado em vários momentos no ano passado, e as coisas não foram. E Toronto, que era um torneio que, de repente, a gente estava psicologicamente menos preparado, só que a vaidade foi lá pra baixo, e a gente começou a ficar mais tempo no presente, foi quando ela vai lá e faz o melhor torneio de simples da vida dela. Eu entendo quando alguém fala que "o jogo é lá dentro". É claro, é verdade total, mas uma coisa não anula a outra, e o papel como treinador e líder de uma equipe é juntar as duas coisas e conseguir sempre oferecer o melhor que tiver em qualquer lugar. Tudo que colabora, 0,1% para uma possível evolução do nosso trabalho, eu tenho que ir atrás. Vai me demandar mais tempo, mais esforço, vai me fazer gastar mais energia, vou ter menos tempo pra uma vida social, pra uma leitura, pra um filme, uma cerveja, mas é isso, cara. Não tem como. Esse é o preço que a gente tem que pagar hoje pra, enfim, estar onde a gente está.

Alguns anos atrás, a Bia era uma menina que falava com muito receio sobre expectativas. De repente, ela até tinha internamente, mas não externava as ambições dela. Até no fim de 2017, quando ela fez a final de Seul com a Ostapenko, ela sempre falava de si mesmo como sem expectativa. Nunca se colocava como favorita. Eu sentia um receio de colocar pressão sobre ela mesma.

É isso aí.

E hoje eu vejo a Bia quase ao contrário - já falei isso para ela. Ela assume. Ela fala "se eu entro no torneio de cabeça 1 ou 2, eu quero ser campeã". E ela sai de um dos jogos na Austrália, na chave de duplas, que ela dá entrevista em quadra "eu senti a pressão". Ou seja, ela hoje fala com mais naturalidade das sensações. Isso é uma influência sua?

Ótima pergunta. É que eu não consigo ver muita evolução sem exposição. Em um esporte que te expõe 100% do tempo, eu não acredito no seu dia a dia se ele não for exposto também, né? Um esporte que te deixa o tempo inteiro flertando com a pressão. Eu não acredito em nenhum mecanismo de tirar pressão, então o meu papel não é tirar pressão da Bia. O papel dela não é tirar pressão. O papel dela é assumir a pressão e aprender a lidar com aquilo. Porque a partir do momento que ela aprende a lidar com a aquilo, o céu se torna o limite. Pode chegar um momento que a gente vai ter uma barreira tenística ou uma questão física ou técnica, que não consegue executar, e por mais que você tente não faz...

Vocês tiveram essa conversa em algum momento?

Não, esse é o nosso ambiente. Nosso ambiente é esse mesmo, tem que assumir. Igual agora, ela foi jogar a Billie Jean King Cup, ela tinha uma responsabilidade. Ela tem que assumir. Ela falhou. Ela sentiu a pressão e fez um jogo extremamente emocional desde o começo [Bia perdeu o terceiro jogo do confronto para Jule Niemeier, deixando o Brasil quase sem chances de vencer]. Já estava no primeiro set com uma carga emocional altíssima. Se eu perco o primeiro, set não acontece absolutamente nada no jogo ainda. Nada. Ganhar um set e perder um set, não aconteceu nada. Se você ganha, legal, você tem uma chance de jogar, talvez, uma hora a menos. Se você perde, poxa, vou talvez jogar uma hora a mais. Não aconteceu nada. Nada que justifique uma carga emocional altíssima. E ela jogou com uma carga emocional alta porque ela sabia que ela tinha uma responsabilidade com a equipe. E só tem como evoluir se assumir isso. Se eu for lá, tentar pegar essa pressão e ficar jogando pra longe, quem pega e joga a pressão pra longe pode ter um resultado, mas não vai ter a consistência de resultados. Jogar pressão pra longe pode fazer com que você ganhe uma semana, mas não vai fazer com que você tenha consistência de chegar e galgar um lugar no ranking. O que traz isso é consistência, e consistência se traz assumindo as questões diárias. A gente chegou na Austrália este ano, ela estava inacreditável treinando. Inacreditável. Um dias antes de começar o Australian Open, a Bia treinou com a [Donna] Vekic [#23 do mundo]. Acabou o treino, elas jogaram nove games, foi 9-0 pra Bia. A Vekic chegou pra mim e falou assim, me chamou de canto, falou assim: "Eu nunca vi isso." Incrível. Incrível o que ela estava jogando de tênis. Só que passou, ela chegou na hora, naquele momento, e não conseguiu lidar com pensamentos, né? [Bia perdeu na primeira rodada para a espanhola Nuria Parrizas Díaz, #75 do mundo, por 7/6(11) e 6/2]. Ela entrou na quadra, o aquecimento dela pré-jogo foi inacreditável. Cara, passaram 20 minutos, ela estava na quadra, e o primeiro game dela tem duas bolas no pé da rede. Então assim... É gestão de pensamento, mas isso você só consegue passar pro próximo nível se existir exposição. "É isso aí mesmo cara. Falhei. Eu queria muito, senti que eu estava pronta e, cara, não dei conta. Pensei errado, falhei. E o que me falta agora? Nada. Falta seguir em frente, criar oportunidade de novo e ir." Eu lembro uma frase de um dirigente do Corinthians que dizia assim: "O Corinthians só vai ganhar a Libertadores quando o Corinthians começar a jogar a Libertadores todos os anos." Não adianta ir lá e jogar a Libertadores a cada cinco anos, porque aí se torna um evento, e quando se torna um evento único, você fala: "É a chance da minha vida", e quando é a chance da minha vida, pode ir pra um lado ou pro outro. Você pode realmente fazer algo inacreditável, mas você também pode falhar de maneira inacreditável. Agora... A partir do momento que você vai, você falha e não subiu o dólar, não abaixou o dólar, ninguém ficou mais saudável nem menos saudável na minha família, então bora. A partir do momento que eu lido com isso de maneira exposta, clara, e eu passo por isso, eu me torno? Não invencível, mas eu me torno muito poderoso, né? A verdade é essa: este ano, a Bia quer ser top 10. Talvez ela não consiga, como a gente pode dar inúmeros exemplos, né?

Sim.

Um exemplo rápido que veio aqui na minha cabeça: a Krejcikova ganhou Roland Garros em 2021. Começa 2022 muito bem, faz quartas na Austrália, fica #2 do mundo, incrível. A partir de lá, ela toma na primeira rodada de Roland Garros, e ela vai até setembro ou outubro sem ganhar nada. A gente foi jogar dupla com ela em Toronto, e ela assim, num nível de impaciência, de negativismo, inacreditável. E ela vinha do melhor ano da vida dela, bateu o melhor ranking da vida dela e vinha muito mal, só focando no problema, não na solução. Quando ela acaba a temporada de Grand Slams, que ela falha - falhou em Roland Garros, falhou em Wimbledon, falhou no US Open - aí ela vai pro final da temporada dela e, aí sim, ela volta. Vaidade dela baixa, né? Porque aí o jogador faz aquele pensamento: "Isso não deveria estar mais acontecendo, eu já passei dessa fase." É aí quando o jogador cai do cavalo. Quando ela vai lá, reencontra a Bia em Tallinn, ganha da Bia jogando muito bem na rápida coberta em Tallinn... Se você pegar a comemoração dela em Roland Garros e a de Tallinn, é muito parecida. Porque o jogador volta realmente a se dedicar pra aquele momento, pro jogo, né?

Quando a gente conversou lá no evento do RTB, você falou sobre o conservadorismo da Bia. Que ela precisa chegar a um nível e estabilizar para depois voltar a subir. Que ela nunca vai dar um salto....

Não sei se nunca. Eu evito falar "sempre" e "nunca".

Você luta contra isso ou...

Todo dia.

Ou é algo que vocês aceitam...

Não. Não existe aceitação em nada.

E como é que se manifesta esse conservadorismo no dia a dia?

Em muitas coisas. Conservadorismo não necessariamente é algo negativo. O que eu diria, pra ser mais claro, é que o medo é inversamente proporcional à coragem. Quem tem muito medo, por valorizar demais o caminho ou por pesar muito as coisas, mas consegue passar por aquilo, também é muito corajoso. Então a Bia é extremamente corajosa, mas ela também tem muito medo. Ela valoriza muito. Ela sabe o quão duro é chegar a #12 do mundo. Ela não chegou lá "de olho fechado". Cada passo foi sabendo onde ela estava e o que ela tinha que melhorar. Quando a gente pega a trajetória dela, normalmente ela vai, ela sobe e ela estabiliza. Ela vai, ela sobe e ela estabiliza. Mas normalmente ela não volta. Se a gente pegar a trajetória da Jabeur, por exemplo, é muito mais lenta do que a da Bia. Ela entra no top 100, o segundo ano ela é 60, o terceiro ela é 51, o quarto ela é 31 e no quinto ano, ela consegue romper o top 10. Só que ela chegou no top 10 e nunca saiu mais. E não vai sair porque tem muita qualidade. A nossa briga é diária. Eu não posso me frustrar se as coisas não acontecem na velocidade que eu gostaria. A Bia treina incrível. Antes de começar Indian Wells, a gente treinou com a [Iga] Swiatek [#1 do mundo] na quadra central, e a Bia sacudiu ela, passando por cima, jogando set. No dia seguinte, ela treina com a Sabalenka, foi para uma quadra que estava cheia, aí subiu a expectativa, já fez um treino ruim, mas tomou 6/4. Saiu da quadra, a gente conversou, ela pegou a [Liudmila] Samsonova [#18], jogaram oito games e foi 8/0 pra Bia. Passando o carro. Depois pegou a [Veronika] Kudermetova [atual #13], 5/0. E aí no dia seguinte, vai para a quadra, contra a [Katerina] Siniakova [atual #45], e aí tem que lidar com as emoções [Bia venceu de virada, por 5/7, 7/6(4) e 6/3].

Esse jogo foi duro.

Duro. E taticamente indisciplinada, só que cara, são os pensamentos. Chegou uma hora, no fim do segundo set, eu consegui despertar ela. Talvez aquele dia o meu papel foi perto dos 49%. Tem dia que é zero, mas aquele dia foi perto do 49.

O que você falou? Pode dizer?

Não vou nem conseguir ser preciso agora, mas consegui despertar ela para o presente de alguma maneira e consegui mostrar: "Você tá jogando taticamente totalmente errado, inverso do que a gente combinou!" É o que eu te falei. Às vezes, é com abraço. Às vezes, é com chute na canela, mas ela despertou e quando ela volta, o jogo desenrola com certa tranquilidade. Então existe o timing do jogador. O nível de experiências que eu preciso passar para me sentir apto para o que eu vou viver agora. Tem gente que é rompedor. Vai na primeira. Você pega a jornada da Swiatek... Ela vai. Do primeiro ano de top 100 até chegar a top 10, é inacreditável. É rompedora. Parabéns pra ela. Vem com outro background, outras experiências. A gente tem que entender o caminho da Bia. A quantidade de lesões, vezes que parou de jogar tênis, quantas vezes ela escutou que fisicamente ela é limitada, que não sei o quê... Então as pessoas trazem várias mágoas, receios, feridas, que é um processo de desconstrução, né? E agora a gente está numa fase que é o último degrau da carreira, que é ela ser top 10. E ela precisa do tempo dela para lidar com essa gestão de emoção. Mas se ela vai precisar de duas semanas ou um ano...

Com alguns jogos duros no meio...

Ela ganhou da [Sorana] Cirstea no começo do ano [no WTA de Adelaide], pegou a Cirstea em Dubai, teve dois match points e não conseguiu ganhar o jogo. Teve 4/1 no terceiro set, falhou, e a Cirstea foi lá e fez semifinal de Indian Wells e quartas de Miami. Uma jogadora que estava na mão dela o tempo inteiro. E não é que ela está perdendo por 2 e 2. Ela está tendo jogos na mão. Pega a Raducanu? O jogo estava 1/2, 30/40, com a Raducanu no terceiro set. Se a Bia joga bem esse ponto, um pouco mais agressiva e menos conservadora, ou mais taticamente disciplinada, talvez quebre ali o saque da Raducanu e talvez ganhe o jogo. Com a Ostapenko, ela teve 3/1 [no terceiro set] e apagou do jogo. A parte psicológica dela trocou o pensamento. Ela sai do jogo completamente. Dá para citar outros jogos que ela perdeu este ano, e os jogos estavam lá. Então quando ela ganha da Rybakina [por por 3/6, 6/3 e 6/2 nas quartas de final do WTA de Abu Dhabi], o nível de tênis está lá, e ela conseguiu colocar o pensamento no lugar certo. É incrível! Ela ganhou com a Rybakina jogando o que ela jogou na Austrália [a cazaque foi vice-campeã do Australian Open]! Hoje, a Bia se mexa na quadra melhor do que a Rybakina. Ela se mexe na quadra dura melhor do que a Sabalenka. É um processo.

Entendi.

Essa conta é coletiva, dela, nossa. A gente precisa estar todo dia criando desconforto. Se você fizer uma entrevista com alguém da equipe, os caras vão falar "O cara cria desconforto todo dia, ele é louco", de certa maneira, no bom sentido. Tem que ser. Desconforto para mim! Temos que evoluir. "A Swiatek chegou lá com um eletrodo na cabeça. O que ela tá fazendo? A gente tem que ir atrás." E não é ir atrás. É chegar no momento que a gente vai fazer o que ela não está fazendo ainda. Esse é o nosso papel se a gente quer pegar o lugar dela um dia. A gente tem que andar a 120 km/h. Se a gente andar a 160 km/h, pode bater e acabar tudo. E pode cair mesmo porque passamos do ponto. E se andar a 80 km/h, a gente não está fazendo o que tem que fazer. Tem que se expor, sim. Hoje, a gente está trabalhando muito bem no geral, no dia a dia, ela está jogando um nível de tênis incrível no dia a dia, e no jogo ela ainda não está conseguindo performar da maneira como tem sido o dia a dia. Isso ainda é do timing dela. Não tenho a menor dúvida que ela vai voar mais alto. Quando? Se é esta semana? Se vai levar um ano? O que eu quero dela agora é que todo dia ela esteja no desconforto máximo, e que ela consiga performar no desconforto. Ela tem duas quartas de WTA 500 e uma semifinal só jogando torneio de primeira linha. Ela saiu de bye, mas tem duas terceiras rodadas de WTA 1000. Onde a gente estava um ano atrás? Tomando segunda rodada num WTA 250 em Bogotá - tudo bem que Bogotá tem altitude, é outro esporte quase - mas ela estava jogando a BJK Cup, contra a [argentina Maria] Carlé [então #237 do mundo], uma jogadora brigadora, mas limitada tecnicamente, ganhando no terceiro set um jogo quase perdido. Um ano atrás! Depois a gente viaja pra jogar Madri, e ela toma na última rodada do quali para a Océane Dodin, uma jogadora que não tem nada de mais, entra de lucky loser e perde da [Tamara] Zidansek fácil, 6/2 e 6/3. Isso foi um ano atrás. E este ano ela já ganhou de duas top 10! Então o que eu digo é que estamos numa velocidade boa. Agora... é preciso respeitar algumas etapas. E só dá para entender isso se a gente conhece a pessoa. O que ela teve de vivência pessoal, os traumas que ela viveu - e as pessoas carregam muitos traumas que a gente não faz idea e que são limitantes - então eu digo que ela vai voar muito mais alto ainda.

Vocês têm uma prioridade #1 de trabalho hoje? Algo que precisa melhorar mais do que o resto?

Se fosse falar de saibro, sim. A gente tem bem claro que é a movimentação. A Bia tem muita dificuldade de movimentação no saibro. Bastante. Não é pouca. Ela tem muito medo de escorregar, se for falar de maneira bem objetiva. É até engraçado porque é uma jogadora que treinou no Brasil e foi construída no saibro, mas ela tem muito medo de escorregar. Isso, automaticamente, faz com que ela se movimente pior.

Isso tem a ver com os problemas de coluna que ela teve, de alguma maneira?

Não, é insegurança mesmo. Ela tem uma técnica que ela entra com o pé muito fechado, que a gente todo dia está estimulando, mas quando vai para o automático, ela ainda tem dificuldade.

Ela nunca torceu o tornozelo, né?

Não, mas se ela não melhorar essa técnica de escorregar, tem sempre um perigo. Hoje, no saibro, a prioridade dela é a movimentação e, taticamente, o backhand dela precisa se adaptar um pouquinho. Na quadra rápida e na grama, favorece um pouco mais o backhand dela, que é muito plano. É excelente quando ela está agressiva e pisando para dentro. É incrível, um dos melhores backhands do mundo. Mas no saibro, como a bola quica e desvia um pouco mais, se ela hesitar um pouquinho, a bola vai pra fora, então ela tem que conseguir girar um pouquinho mais a bola no backhand. Isso no saibro. Em relação à quadra rápida e à grama, é continuar estimulando. Ela está um pouquinho mais conservadora agora. Tem que estar cada vez mais dentro da quadra. Hoje ela muda muito bem a direção da bola. Isso possibilita a ela pisar para dentro. Continuar seguindo a direção de "tênis se joga pra frente". Tênis moderno é isso. Do top 20 feminino, 19 jogadoras são extremamente agressivas e jogam tênis pra pisar pra dentro. Só a Kasatkina que não joga assim. Todas as outras jogam tirando o tempo, pegando a bola na subida, mudando a direção da bola e tentando flertar cada vez mais com uma entrada de ponto agressiva. Tem que devolver e sacar agressivo. Os números da Bia quando ela devolve de trás são piores. Ela se torna mais conservadora e ocupa menos espaço na quadra. Automaticamente, ela cede mais espaço, conseguem mexer ela primeiro, a bola dela fica mais curta... Tem várias coisas.

A devolução lá de trás funciona para alguns tenistas, né?

Claro. Tem tenista que joga de trás pra frente. Precisa sair de trás com mais tempo, uma bola mais funda, e vai ganhando quadra aos poucos. A Bia, se joga dessa maneira, ela se torna uma jogadora extremamente conservadora. E toda vez que ela está mais conservadora, ela acerta menos e erra mais. Toda vez que ela está mais emocional, mais conservadora, a conta dela fica muito ruim. Ela dá pouco winner e erra muito. Quando ela se propõe a jogar um tênis agressivo, moderno, com muita bola na subida, dentro da quadra, aí ela consegue dar muito mais winner ou forçar muito mais erros, e ela acaba errando muito menos. Quando ela se propõe a sacar, ela saca muito mais. Quando ela quer só meter o saque, os índices de saque dela despencam. A mesma coisa em relação ao posicionamento na devolução. A Bia, potencialmente, é uma das melhores devolvedoras do mundo. Agora... Entra sempre a questão do estado de espírito. Pega o jogo dela com a Rybakina, você fala "ninguém devolve saque melhor do que ela no mundo." Agora se pegar o jogo da [Anna-Lena] Friedsam na Billie Jean King, você fala "e aí, cadê?"

Você falou da pressão na Billie Jean King Cup... No primeiro jogo, ela joga bem em todos momentos de pressão. Tem dois momentos ali que são de pressão. Acho que o 4/4 do segundo set e...

Mas essa sua observação é excelente. Quando vem um momento de pressão extrema e ela só tem um caminho, ela faz o que tem que fazer. Mas quando ela está num momento de vantagem, e abrem-se algumas portas, e ela tem que tomar a decisão de qual caminho seguir, é onde muitas vezes ela hesita quando está mais emocional. Isso acontece com muita frequência. Está tudo para ir por água abaixo, é o momento em que ela começa a jogar num nível muito alto porque "não posso mais negociar nada aqui. Eu tenho que fazer. Ou faço isso ou vou para casa." E ela faz. E sua observação é perfeita. Você pega do 4/4 no segundo set até o 4/0 do terceiro, ela joga bem tênis. No 4/0, ela hesita em um momento ou outro, a menina cresce um pouquinho, e a Bia já começa a ficar um pouco mais conservadora de novo.

Aí chega no 3/4, 40/0...

Ela fala "não dá mais pra negociar", ela vai lá, performa de novo e termina super bem. Por isso que eu falo: tem a dinâmica dela. Muitas vezes ela precisa falhar pra parar de negociar algumas coisas. E tem jogador que chega num nível - como a Rybakina chegou agora - que ela se sente pronta pra não negociar mais nada. As dúvidas diminuem, as certezas aumentam, e "é isso daqui". A Bia está numa última fase de transição pro top 10, ela tem as dúvidas, o que é normal - ela teve em todas as fases - e agora é reduzir essas dúvidas ao longo dos jogos, cada vez ter mais clareza das coisas muito boas que ela vez fazendo, e não tentar controlar o tempo. Quando tenta controlar o tempo, sobe a vaidade, aí junta com insegurança, que é natural, e aí é batata. Gera mais ansiedade, eu hesito um pouco mais, faço menos com a bola, aí acabo errando muito mais. Esse ajuste é diário. E para isso você tem que entender quem é a Beatriz, o que ela traz, quais são os traumas, quais são as potencialidades, que são infinitas. Com bastante trabalho duro, todo dia entregando mais, sem querer controlar o tempo da coisas, mas se expondo com a tranquilidade necessária, ela vai fazer muita coisa ainda.

A gente sempre pergunta pro jogador qual é a meta dele. Se é ranking, se é conquistar alguma coisa, etc. Mas e você? Sua carreira, potencialmente, tem mais uns 30 anos se você quiser. Onde você quer estar daqui a 10, 20, 30 anos?

Em trinta anos, eu quero estar num lugar muito tranquilo (risos). Vendo a vida passar mais lentamente. Eu vou estar com 66, quero que a vida passe mais lentamente. De sonho, acho que as pessoas não sabem ou não associam, mas sempre tive o sonho de ganhar um slam. Isso é muito forte na carreira de todo treinador. Mas eu ganhei um, que foi com o Pucinelli [Matheus Pucinelli foi campeão juvenil de duplas em Roland Garros em 2019]. Eu tenho um slam no currículo. Não interessa se é juvenil, se é dupla, se é simples, se é dupla mista. Tudo tem muito valor, é um slam, pesa, é gigantesco. Ainda mais lá, que o Guga esteve presente depois. Foi muito especial, tanto pra mim quanto pro Matheus. Isso te enche de confiança no caminho. Mas agora tenho esse objetivo claro de ganhar um slam no profissional. De simples, sobretudo. A Bia fez uma final de slam de duplas [Australian Open 2022], batemos na trave ali depois de um primeiro set incrível. Ela vai criar outras oportunidades, espero que estejamos juntos, e acho que ela tem totais condições de brigar por isso. Se possível, mais ainda de Wimbledon. Sou apaixonado. Pra mim, lá é o templo sagrado, não tem como. É um lugar diferente, a energia é diferente, a tradição é diferente, então se pudesse um sonho seria ganhar um slam de simples como treinador em Wimbledon. E profissionalmente, assim, tenho o sonho de poder corroborar para poder chegar num torneio e encontrar muito mais treinadores brasileiros. Que a gente possa sentar numa mesa como os argentinos e falar sobre tênis. Eu tenho isso muito claro: hoje, eu treino a Bia, que é um estado, não é algo permanente. E se viesse um jogador brasileiro e me procurasse, eu não ia poder atender. Mas eu poderia indicar você. Aí você vai lá e faz um ótimo trabalho com esse outro jogador, e te procuram, mas você pode indicar outro brasileiro. É o que acontece com a Argentina. São incríveis? Puxa, tem caras bons como aqui. Tem caras medianos como aqui e tem caras ruins como aqui. Mas eles tem uma questão muito forte, que é o ecossistema deles, que é muito bom. Argentino indica argentino. Brasileiro indica argentino, espanhol... É por isso que, de repente, a gente está em menor volume. Não é por falta de capacidade. Mas é claro, se a gente for pegar o nível médio dos treinadores, o do argentino é maior. E eu gostaria muito de colaborar com isso também. Porque isso começa com um sonho. De ir atrás, capacitar, viajar, fazer estágio, buscar informação, colocar a mochila nas costas... Esse norte existe.

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