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No Brasil, ex-técnico de Federer deixa mensagem de paixão e dedicação

Ele estava no box de Michael Chang quando o jovem de 17 anos surpreendeu u planeta e conquistou Roland Garros em 1989. Alguns anos depois, ajudou Jim Courier a conquistar quatro slams e alcançar o topo do ranking mundial. Ele também tentou fazer Pete Sampras a trocar de raquete e convenceu Roger Federer a usar curtinhas de direita. Hoje com 70 anos, o técnico espanhol José Higueras tem muita história de sucesso para contar e, sobretudo, muito a ensinar.

No começo deste mês, Higueras esteve no Brasil para visitar o centro de treinamento do Rede Tênis Brasil, em São Paulo. Veio a convite de Léo Azevedo, técnico que esteve sob sua chefia durante anos nos Estados Unidos, quando o espanhol comandou a formação de jogadores na USTA, a federação de tênis do país. Veio, visitou e gostou do que viu. E mais: deixou mensagens importantes sobre paixão, dedicação e o valor da informação.

Higueras me recebeu lá no centro do RTB, na zona sul de São Paulo, em um dia quente, e foi um tanto simpático. Gosta de conversar sobre tênis. Sabe ouvir e tem muito a dizer. Não por acaso, um punhado de técnicos acompanhava de dentro da quadra quando o espanhol orientava as jovens Olivia Carneiro, 17 anos, e Pietra Rivoli, 15, em atividades dentro de quadra.

No bate-papo, Higueras falou sobre a visita, suas impressões sobre os técnicos e jogadores brasileiros que viu em São Paulo, e contou como foi fácil convencer Federer a usar mais o drop shot de forehand. Também citou Rafael Nadal como exemplo um punhado de vezes e disse o que acha sobre a atual regra que permite aos técnicos conversar com seus atletas com frequência. Leia a íntegra da conversa abaixo:

Como surgiu a ideia de vir ao Brasil e ajudar o RTB?

Léo [Azevedo] foi um dos nossos treinadores nos Estados Unidos. Ele estava na Espanha, e eu o levei da Espanha. Ele fez um ótimo trabalho com a gente no centro da USTA em Carson. Vários de nossos juvenis chegaram a número 1 do mundo. Depois, ele trabalho no centro da Escócia e fez um trabalho muito bom lá. Então somos amigos. Eu não trabalho muito. Ele me chamou, me falou do projeto e, como gosto muito de tênis, falei "vou ver o que acontece", e por isto estou aqui.

E qual foi a intenção da sua vinda?

Bom, não se prepara treinadores em uma semana, ou seja, é um trabalho de meses e anos. Todos vamos melhorando com o tempo. A ideia, acima de tudo, era ver o centro, os meninos, os treinadores e ver como estão formando tenistas. É um projeto ambicioso que exige tempo e muita paciência. A base de treinadores, obviamente, é muito importante. A base é a cultura. Que cultura temos aqui? Temos uma cultura de jogadores que são não apenas respeitosos e gente boa, mas são tremendos competidores. E que cultura queremos? Depende da cultura que queremos. Essa foi a principal razão para vir até aqui.

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Como o senhor acredita que se melhora um treinador?

Obviamente, com informação. Em primeiro lugar, o treinador precisa ter paixão. Se for um emprego somente... Bom, trabalhar por trabalhar, você pode fazer em um escritório. Se for assim, não serve para trabalhar na elite. É preciso ter paixão pelo que está fazendo. É o que mais procuro. Além disso, dependendo do interesse do treinador, é como vai ser o quanto ele aproveita. Por exemplo, há treinadores que me fazem muitas perguntas, então mostram que têm muito interesse. Os que não dizem nada ou talvez acham que sabem tudo ou talvez sejam tímidos... Mas se fico muitos dias, isso fica claro também. Eu sempre pergunto: "o que você quer fazer?" "Quero trabalhar no circuito com um jogador profissional". Ok, então eu tento mostrar o caminho de conhecimento que é exigido. Sem paixão, é impossível porque há muita gente que tem paixão. E é igual para os jogadores. Há muitas crianças que têm paixão. Se você não tem, deve fazer outra coisa.

E como foi esta semana aqui no Brasil? Como foram as conversas com os treinadores e os jovens tenistas?

Há um bom grupo de crianças. Trabalham bem. Os treinadores, no geral, acho que precisam de mais exposição, de ver um pouco mais [Higueras fala no sentido de experiência, de vivência no circuito], e saber um pouco mais sobre o que exige o trabalho diário. É fácil trabalhar bem um dia ou uma semana. Os bons treinadores trabalham bem todos os dias. Essa é a paixa, normalmente. Gostei muito do que vi aqui. As instalações são boas. As quadras são boas, as bolas são boas, as crianças trabalham. Nós, adultos, não podemos culpar as crianças sempre. Nós temos que educá-los tenisticamente e ajudá-los a crescer humanamente e então criamos a cultura que queremos criar.

O que o senhor acha que é o mais importante na formação de um treinador? A paixão?

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A paixão é o primeiro. Se você quer aprender ou não. Depois, é preciso estar exposto a situações diferentes. Porque são três áreas. Para ser um esportista profissional em qualquer esporte, é preciso ser um atleta. Ou seja, a questão atlética é muito importante. O treinador precisa ter olho para ver que tipo de atleta é. Obviamente, há a questão técnica, que é importante, mas talvez a mais fácil. Com tanta tecnologia, ensinar a fazer uma direita ou um revés... Se você olha os 100 primeiros do mundo e vê o que eles têm em comum, é um bom início. E depois há a parte mental, que provavelmente é a mais importante de todas. Então nestes três campos quanto mais você se informar... Por exemplo: eu gosto muito de conversar com técnicos de outros esportes. Futebol, handebol, etc. Porque os bons treinadores, de forma geral, são parecidos nas coisas importantes. Cada um em seu esporte. Mas depende muito do interesse de cada treinador em aprender. E o mesmo vale para o jogador.

E vai voltar ao Brasil?

Não sei. Se não morrer antes, sim (risos). Não sou tão jovem, mas o Brasil é muito longe da Califórnia. Mas, mesmo estando longe, Léo é um bom amigo e se for para ajudá-lo, faço um esforço para vir outra vez. Mas se voltar, eu gostaria de ver que a semana que passei aqui não foi uma perda de tempo. Na minha idade, não gosto de perder tempo. Se venho, e o programa seguir crescendo... Sou apaixonado pelo tênis, e ficaria muito feliz de voltar.

O senhor já treinou muita gente famosa, como Chang, Courier, Sampras e Federer, obviamente, e muitos outros. Se pudesse construir um tenista perfeito para treinar, como seria esse atleta?

Eu não tenho ela aqui, mas outro dia tirei uma foto de algo que Rafa [Nadal] disse há alguns dias. Ele falou: "Não vou treinar por treinar. Vou treinar para aprender algo a cada dia." E Rafa ganhou 22 slams. Esta é a atitude que eu busco em um jogador. Porque no dia que você perde isso, quando você não tem interesse em aprender, é um dia perdido. Esse dia não volta, já se foi. Possivelmente, há outros jogadores, onde quer que seja, na China, na Rússia ou na Espanha, que aproveitou este dia. É o que falamos sobre trabalhos diários. É o mais importante.

E qual é o tenista mais difícil de treinar?

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Obviamente, crianças são crianças e vão fazer coisas de criança. Vão fazer coisas boas e vão fazer coisas que não são boas. E um por exemplo, não trabalharia com alguém que eu não visse que tem algo que mostra que ele ou ela quer jogar. Porque há crianças que querem jogar, mas podem ter problemas em casa, podem ter problemas de ansiedade... É trabalho do treinador tentar solucionar esses problemas. Mas tenho que ver que há interesse, ainda que isso esteja escondido. Se está escondido, eu tento mostrar isso, mas se não vejo nada, não há o que fazer.

De todos seus trabalhos individuais com tenistas, tem um preferido?

São diferentes. Por exemplo, acho que o bom treinador é aquele que tira o melhor do jogador. E o melhor do jogador, às vezes, é ser número 5 do mundo. Ou 150 do mundo. Depende do talento do jogador. É assim que eu meço os treinadores. Porque há treinadores ótimos que nunca trabalharam com gente top 10 ou 20 porque nunca lhes chegou um jogador com essa habilidade, mas não deixam de ser bons treinadores. Então, para mim... Os jogadores são diferentes. Federer trabalhava de um jeito diferente do de Courier. Ou Chang ou Sampras. Cada um é diferente. Nosso trabalho é tentar ver como maximizar a personalidade e a habilidade do jogador para que chegue o mais longe possível. E todos são diferente. Quando você tenta tratar todo mundo igual, você tem problemas.

Mas não tem um que que lhe dá mais orgulho por alcançar algo?

Bom, sim, em maneiras diferentes. Por exemplo, uma das melhores lembranças que tenho como treinador foi quando Chang foi campeão em Paris (Roland Garros) aos 17 anos. Nunca havia jogado no saibro e começamos a trabalhar um ano antes. Então... Quem pensava que ele ia ganhar em Paris? Ninguém, certo? Mostra a personalidade dele. É um tremendo competidor! Com Courier, por exemplo, foi uma experiência... É o melhor trabalhador com quem já estive. Nunca era suficiente. Todo o dia, eu precisava tirá-lo da quadra. Com Federer, por exemplo, era um talento incrível que facilitava muito o meu trabalho. Em diferentes formas, aprendi algo com todos com quem trabalhei. Com Sampras, era uma mentalidade vencedora 100%, mas um jogador muito peculiar. Era diferente de trabalhar com Courier ou Chang. De todos, aprendi alguma coisa e tentei aprender para utilizar com gente mais jovem.

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Com Sampras, foi o senhor que lhe sugeriu trocar a raquete por um modelo de cabeça maior, não? [Sampras sempre se recusou a trocar o modelo de raquete enquanto competia, mas mais tarde, depois de aposentado, admitiu arrepender-se por não ter feito a troca. Afirmou que usar uma raquete com cabeça maior teria lhe dado alguns anos a mais no alto nível. Algo que Federer fez com sucesso]

Bom, ele, depois de jogar, disse que deveria ter trocado porque obviamente a tecnologia muda para melhor. O que acontece é que os bons jogadores, quando uma coisa funciona bem, não é fácil mudar algo. Se algo não funciona, é mais fácil de mudar, entende? Mas obviamente acho que Federer trocou por uma raquete maior...

E foi muito bom para ele.

E foi bom! Mas com Pete, quando a tecnologia veio, ele estava quase encerrando a carreira. Com Roger e essa gente mais jovem, a tecnologia chegou mais rápido.

Com Roger, foi você quem lhe convenceu a usar mais a curtinha com a direita, não? Como foi essa conversa?

Quando você trabalha com um jogador tão bom, não há muito a dizer porque ele sabe muito, então é preciso escolher com muito cuidado a informação que você vai passar porque se não estiver correta, não dá certo. Sobre a curtinha, quando lhe conheci, vi muitas partidas de saibro no computador e vi que ele nunca usava o drop shot. E perguntei: 'Roger, por que você nunca usa a curtinha?' E ele disse: 'Por que vou usar um drop shot se tenho uma direita incrível?' Então expliquei o porquê. O drop shot é um golpe incrivelmente ofensivo. E quando você tem a vantagem no ponto, se ataca sempre reto, o jogador defensivo não se preocupa nunca em jogar mais à frente. Então se é uma arma ofensiva e se você utilizá-la, dará outra dimensão ao ponto. Obviamente, como ele não é tonto e tem uma cabeça tenística ótima, no dia seguinte - não por que eu disse, mas porque ele entendeu - começou a usar a curtinha de direita.

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Até aquele conversa, ele não via o drop shot como um golpe ofensivo?

Imagino [que não via]. Não sei. Porque para muita gente, como o drop shot é o golpe mais lento que existe, os jovens muitas vezes pensam que é um golpe de nada. Mas é um dos golpes mais ofensivos que existem. E como digo: dependendo da posição em que você está na quadra, se eu te dou uma bola para que você seja ofensivo e tomo uma posição defensiva, eu só me preocupo com dois golpes (paralela e cruzada). Mas se você tem um drop shot, minha posição tem que mudar, e muda também a filosofia do ponto.

Que lembrança mais marcante você tem com Federer?

Com ele, a melhor lembrança que tenho é do quão bem ele tratava as pessoas. Há muita gente, jogadores famosos de todos os esportes, que tratam as pessoas bem quando há mais gente em volta. Gente que está olhando. Roger - e Rafa é igual - eles são boas pessoas. Eles tratam com respeito os boleiros, o senhor que cuida das quadras, todo mundo. E isso, para mim, é importante. Para mim, o respeito e a educação são importantes. E outra coisa: o que me surpreendeu é o quão rápido ele "esquecia" de quando perdia. Não arrastava uma derrota por dois meses. A partida acabava e, se ele perdia, "amanhã é outro dia."

Eu li que quando ele perdeu a final de Roland Garros/2008 [Nadal derrotou Federer por 6/1, 6/3 e 6/0]...

Nada! Três horas depois, eu estava morto, e ele parecia que havia ganhado. E isso é incrível! E mostra um pouco... Ele é sempre assim. Sempre tem uma mentalidade muito boa. Em geral, os jogadores muito, muito bons, tem boa memória e má memória. As coisas que não vão ajudar eles esquecem imediatamente.

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E não é que não sentia a derrota, certo?

Não. Mas uma vez que você perdeu, você perdeu. É preciso pensar se você fez algo bem ou mal, mas depois disso, não há mais o que fazer.

Para terminar: o que o senhor acha da regra atual de coaching, com os técnicos liberados para falar na beira da quadra?

Acho que está ok porque é possível mudar partidas. O que tenho certeza é que seja o tempo todo. Que o jogador possa falar o tempo inteiro. Eu preferiria, por exemplo, se houvesse duas vezes no set em que o treinador pudesse descer por dois minutos e falar com o jogador.

Mais ou menos como era na WTA?

Como era com as mulheres. Eu preferia assim porque o tênis é um esporte individual, e o jogador tem que resolver problemas. Não sei. Parece-me um pouco estranho que haja diálogo continuamente. Mas acho que é bom para o esporte.

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Quando o técnico fala onde o outro vai sacar, onde o jogador tem que mandar a primeira bola... As transmissões de TV mostraram muito Carlos Alcaraz e Juan Carlos Ferrero com esse tipo de diálogo.

Há culturas em que isso se enfatiza mais. No tênis espanhol e sul-americano, talvez isso seja mais comum, mas realmente estou convencido de que Rafael Nadal, Roger Federer ou Novak Djokovic seriam igualmente bons [com essa regra] porque encontrariam as respostas.

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