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Top 300 do tênis diz que ganharia mais no McDonald's. Mas Méqui tem público

O brasileiro Karue Sell, de 30 anos, acaba de se tornar o número 300 do ranking mundial - melhor posição de sua carreira - e, pouco depois de alcançar a marca, foi ao Twitter para escrever, em inglês que "Hoje, entrei no top 300 pela primeira vez. Ainda assim, estaria fazendo mais dinheiro trabalhando no McDonald's (emoji de risos). Estou ok por causa de meu trabalho online, mas sinto por meus colegas. O nível é tão alto agora até os 400 (do ranking), vão ver um Challenger. O tênis cresceu além do convencional top 100".

Antes de ir adiante, aviso logo que o post não é um ataque a Sell. Longe disso. Trata-se de um atleta talentoso e inteligente, que fez faculdade nos EUA, trabalhou na equipe de Naomi Osaka durante o auge da japonesa e tem um canal de sucesso no YouTube. Agora, em uma espécie de segunda tentativa no circuito profissional, obtém seu melhor ranking e deve continuar subindo. E a prova de sua inteligência é justamente esse tweet, usando uma marca gigante para fazer uma comparação interessante que chamou atenção e levantou mais uma vez o velho debate sobre o prize money dos tenistas mais distantes da elite.

É um argumento válido, sobretudo porque Sell ganhou até agora, em 2024, US$ 25.636 em premiações no circuito. Descontando impostos, gastos com transporte, hospedagem, etc., sobra muito menos. Sem plano de saúde, vale-refeição nem nada do tipo (embora alguns torneios deem hotel e alimentação). O salário médio anual de um funcionário do McDonald's nos Estados Unidos, onde Sell mora, é de US$ 26 mil (segundo o site Zippia, levando em conta que os valores dependem da localização).

Até aí, tudo bem. A comparação de Sell faz sentido. O problema é o mercado. O Méqui tem. O tênis, não. Não, pelo menos, no tipo de torneios que Sell joga. Repito: não é uma crítica ao brasileiro nem ao circuito. É uma característica (ruim, claro) da modalidade. Basta visitar um Challenger para ver que há ótimos atletas e tênis de alto nível. Dito isto, ninguém até hoje - nem ATP nem WTA nem ITF - conseguiu tornar essa espécie de segunda divisão (tudo abaixo dos ATPs e WTAs 250) atraente o bastante para ser rentável aos atletas.

É fácil de ilustrar. Esta semana, Sell jogou um Challenger 100 em Antofagasta, no Chile. Em um certo momento de sua partida de primeira rodada, contra o argentino Tomas Farjat (#477), havia três pessoas na beira da quadra. Três. Não tem a ver com o brasileiro. A organização poderia ter colocado qualquer outra partida naquela quadra, e o público não seria muito diferente. Na segunda rodada, Sell enfrentou o holandês Jesper de Jong (#128), bem mais conhecido. Quando abri o stream da partida, não havia mais do que 15 pessoas na beira da quadra.

Nesta quinta-feira, na mesma quadra de Sell x De Jong, o gaúcho Orlando Luz (#413) e o paulista Gustavo Heide (#156) jogavam para menos de dez pessoas. Ao mesmo tempo, na Quadra Central, o campineiro Matheus Pucinelli (#341) enfrentava o argentino Andrea Collarini (#230). Pelo ângulo da câmera da transmissão, não dava para ver ninguém na arquibancada lateral (havia, porém, cerca de uma dúzia de pessoas no fundo de quadra oposto à câmera).

Jogos de bom nível, ótimos atletas, mas público quase inexistente. Não é um problema específico de Antofagasta. Também nsta semana, no Challenger 100 de Bangkok, o top 10 Arthur Cazaux (#92) enfrentou Ilia Simakin (#428) diante de menos de 20 pessoas. O cenário era o mesmo para o jogo entre o ex-top 30 Christopher Eubanks (#114), em seu país, diante do compatriota Andres Martin (#449) no Challenger 75 de Charleston. Torneios que provavelmente terão bom público, com alguns milhares de pessoas, mas apenas nas finais. Durante a semana, ficam às moscas. E se não há público, não há dinheiro. É o que dita o mercado.

Uma solução não é tão simples assim. É óbvio que existe dinheiro no tênis, mas a maior parte do bolo está nos slams, que são organizados por quatro federações nacionais (Austrália, França, Reino Unido e EUA). ATP, WTA e ITF não têm tanto dinheiro assim. Torneios de nível 250 e 500 não lucram tanto (quando lucram). Entre algumas (interessantes) sugestões, Sell fala em premiações subsidiadas como "salários garantidos para rankings diferentes". A ATP já faz isso. Este ano, a entidade anunciou que cobrirá a diferença quando atletas não atingirem certos níveis de premiação - US$ 200 mil para top 100, US$ 100 mil para #101 a #175 e US$ 50 mil para #176 a #250. Não é uma solução definitiva, mas é algo. Ajuda, sobretudo, em casos de lesão, quando um atleta é obrigado a se afastar dos torneios e fica sem premiação.

Sell também argumenta que sem um sindicato, os jogadores não têm voz. Está certo, mas aí reside outro velho problema do tênis: parte dos atletas não se sente representada pela ATP, que, em tese, é uma associação de jogadores. Enquanto isso, a PTPA, entidade paralela encabeçada por Novak Djokovic desde 2020, não conseguiu nada de relevante até agora. Embora questione a ATP aqui e ali e exerça um papel importante, não tem poder de fato (ou, se tem, não demonstrou) para provocar mudanças significativas. Para que algo acontecesse nesse sentido, os jogadores precisaram ser mais unidos, mas poucas modalidades têm egos tão inflados quanto o tênis. É difícil imaginar tanta gente unida, pensando no bem comum. Nem o grande boicote de Wimbledon em 1973, que contou com 81 jogadores e provocou uma mudança grande no cenário da época, foi unânime. Nada parecido aconteceu nos últimos 50 anos no tênis masculino, e não é por acaso.

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Outra parte desse problema é o que fazer se essa união acontecer. Boicote? Protesto? Pedindo o quê? De quem? Até quando? É obviamente péssimo para uma modalidade ter apenas cerca de 250 simplistas por ranking (ATP+WTA) conseguindo viver da profissão, mas repito: não há solução simples. Aumentar a premiação mínima dos torneios? Possivelmente quebraria o esporte em algumas partes do mundo. Subsidiar mais e garantir "salários mínimos" a mais gente? Se sim, qual o ponto de corte? Até o #350 do ranking? Até o #500? E será que ATP e, sobretudo, WTA têm recursos para isso? Tenho minhas dúvidas.

O grande ponto aqui é que o tênis jamais conseguiu tornar financeiramente atraente o bastante essa espécie de segunda divisão que é o mundo abaixo dos 250. Por quê? Dá para enumerar uma lista que deixaria confuso qualquer atendente de drive-through do McDonald's.

A começar pelo fato de que Challengers e torneios ainda menores competem contra os ATPs e WTAs (inclusive 1000 e slams). Acontecem ao mesmo tempo, em horários semelhantes. Os fãs, evidentemente, preferem ver os mais bem ranqueados. Mais: quase sempre, um torneio pequeno tem mais estrangeiros do que jogadores nacionais, o que também dificulta na tarefa de vendê-lo ao público.

A partir (não só) disso, vem um efeito cascata. Torneios menores têm menos recursos; as transmissões são de qualidade inferior (menos câmeras, captação de áudio quase inexistente, ausência de narrador/comentarista e chamadas eletrônicas, etc.); nem sempre há bom sistema de transporte até o local dos jogos (é preciso dar graças a deus se um clube chique, mas distante do centro, oferece suas quadras); a maioria das partidas é durante o dia, em horário comercial (e isso pesa mais à medida em que o torneio é menor); e um punhado de outros motivos que, empilhados, se sobrepõem à qualidade dos atletas.

É bem diferente de modalidades como o basquete, que lota quadras pelo mundo em torneios nacionais e até regionais. Trata-se de um cenário radicalmente diferente. Tirando os cerca de 450 jogadores da NBA (a elite da elite, onde o salário mínimo anual é US$ 1,1 milhão), que já são muito bem remunerados, é perfeitamente possível imaginar que haja uns 10 mil atletas vivendo confortavelmente do basquete (obrigado ao grande Fábio Balassiano pela ajuda aqui). E muitos desses jogadores devem fazer refeições de vez em quando no McDonald's que, diferentemente do tênis-fora-da-elite, tem público sempre. Em qualquer país, cidade e horário.

Coisas que eu acho que acho:

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- Não que seja relevante pra discussão, mas se alguém ficou curioso: o #300 do mundo ao fim do ano passado, considerando uma temporada completa, foi o tcheco Michael Vrbensky. Ele faturou US$ 30 mil (brutos!) em 2023.

- Obviamente, com o câmbio atual, Karue Sell ganharia mais como #300 do mundo do que trabalhando em um McDonald's no Brasil. Ele mora nos EUA.

- Se não ficou claro o bastante nos primeiros parágrafos, repito: nada contra Karue Sell e seu tweet. A ideia aqui era apenas dar sequência à discussão e colocar na mesa alguns dos dilemas que o tênis enfrenta e não consegue superar há algum tempo.

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** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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