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ReportagemEsporte

Karuê Sell, parte I: da faculdade nos EUA aos títulos com Naomi Osaka

Quando veio ao Brasil em abril, para jogar um torneio em Porto Alegre, o evento divulgava sua presença anunciando a vinda de um "youtuber de sucesso". O nome de Karuê Sell era tão secundário quanto o circunflexo que se perdeu na jornada tenística. O catarinense foi um dos melhores juvenis brasileiros de sua geração, mas só os fãs de tênis mais hardcore seguiram sua jornada.

Se não trilhou um caminho tradicional, Karuê somou experiências tão interessantes quanto relevantes e hoje, aos 30 anos e tentando uma espécie de segunda carreira no circuito profissional (seu ranking atual, #262, é o melhor de sua carreira), tem muito a contar. Desde sua experiência na UCLA, faculdade que defendeu de 2012 a 2016, até o trabalho no YouTube, que tornou-se uma profissão e paga as contas, incluindo uma vitoriosa passagem pela equipe de Naomi Osaka, que venceu dois slams na época.

Karuê e eu conversamos durante o Challenger de Campinas, e a primeira parte segue abaixo. Falamos desde sua passagem pelo college até os títulos com Osaka. Na segunda parte, conversamos especificamente sobre seu sucesso no YouTube, a matemática financeira para sobreviver no circuito Challenger aos 30 anos, mentoria com Andre Agassi e Andy Roddick, e as principais diferenças entre competir nos EUA e na América do Sul.

O quanto mudou na tua vida ir pra uma faculdade, jogar por uma faculdade? Eu lembro que você foi um dos principais juvenis brasileiros da sua época. Lembro de ter visto você jogar um quali no Sauípe, quando você fez um post dizendo que saiu feliz, fez um jogo bom e tal...

Eu lembro quem foi. Foi contra um espanhol, canhoto, não lembro o nome dele. Acho que foi 7/6 e 6/4. Lembro de ter jogado super bem. Mas a parte da faculdade foi assim: eu acho que na época eu sabia que eu não tinha o nível ou a maturidade para jogar profissional. Talvez não que eu era mais maduro em pensamento, mas tipo... era uma sensação assim... Eu joguei alguns Futures, sabe? Perdi umas primeiras rodadas, umas segundas rodadas, e eu sabia que se eu continuasse naquela ali, treinando - eu estava treinando em Itajaí fazia muito tempo, fazia uns oito anos já - precisava de uma mudança, precisava de algo diferente. E a faculdade sempre foi algo que a gente pensou. Que eu, minha família... Não era uma coisa nova. E aí o Patrício [Arnold, técnico da ADK, em Itajaí]... Na época, chegou um momento em que ele falou: "Tem que ter uma coisa nova no tênis para você". E, para mim, foi a melhor decisão possível. Acabei num lugar muito bom, né? Na UCLA com um time muito bom, com um coach com quem eu me dava bem. Às vezes, é um pouco de sorte, né? Às vezes você pode acabar num lugar em que o coach também não é um cara com quem você vai ter um bom relacionamento. Foram quatro anos muito bons, aprendendo. Eu não estava pensando muito em profissional. Estava só jogando college e, no verão, eu dava uma trabalhada, fazia uns camps lá e tal. Então foram quatro anos assim, em que você vai melhorando, você vai treinando, vai amadurecendo, mas cabeça está em outras coisas, né? Tendo que estudar e essas coisas.

Você contemporâneo do Marcos Giron (atual #48 do mundo), não foi?

Fui. Eu tive o Giron... Mackenzie McDonald (ex 37º do ranking), Maxime Cressy (ex-31º), Clay Thompson (foi #408). Dennis Novikov foi 120 (#119). Então a gente tinha um time bem forte ali. Em 2-3 dos quatro anos, a gente tinha times bem fortes.

Depois disso, você teve uma primeira carreira, digamos assim, no circuito. Eu lembro que você teve um problema em que você não podia sair do Estados Unidos por causa de visto, né? Você saía, mas não podia voltar.

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Isso. Eu terminei a faculdade em 2016. Eu não pensei, não voltei a jogar. Eu passei um ano na Pepperdine, como treinador, mas jogando, e estava jogando bem porque no meu último ano de faculdade eu estava jogando muito bem. Aí joguei uns torneios ali, joguei Calabasas, que é onde eu morava... Passei, cheguei nas quartas de final, mas assim.... Sem estar tentando jogar, né? Aí eu terminei aquele ano de coach, e eu não me sentia preparado para começar a trabalhar ou para aquela carreira. Não gostei muito daquela carreira. E pensei: "Ah, vou tentar jogar de novo". E nessa transição que eu comecei a jogar, eu apliquei para um visto, só que o visto demorou um ano para sair. E quando você faz a aplicação, você está nos Estados Unidos. Se sair, eles tiram a aplicação. Então eu tive que ficar nos Estados Unidos. Então praticamente o tempo inteiro que eu joguei, eu só podia jogar nos Estados Unidos, né? Ficava meio difícil, mas ainda acabei tendo um rankingzinho legal para não ter jogado tanto tempo. Mas infelizmente era aquela coisa meio que um pé dentro, um pé fora. Tipo joga duas semanas, tem que dar umas aulas ou tem que achar um jeito de fazer uma grana para jogar as próximas semanas. Nunca foi assim 100% dentro jogando, né? Infelizmente, é a realidade de muita gente.

Como é que você se sustentava lá nessa época? Eu lembro que você teve uma época que você fazia foto.

É, mas isso nunca me pagou, infelizmente. Mas foi bom para aprender para os negócios do YouTube depois. Mas eu dava umas aulas, sempre achava alguém, alguma coisa para fazer. Meus pais me ajudavam ainda um pouco naquela época, quando eu estava jogando. Tinha um lugar, em uma academiazinha perto de casa, onde eu trabalhava. Eu treinava lá e dava umas aulas no final do dia, e isso ajudava a pagar o próximo cartão de crédito, né? Mas assim... também não não estava trabalhando muito. Era aquela coisa: cada fatura de cartão tinha que achar um jeito de pagar.

E nessa época você tava indo com o flow das coisas, você tinha alguma meta grande?

Não. Tava indo bem com o flow, estava querendo ver se tipo.... se o ranking fosse subindo, se apareceria alguma oportunidade e tal, mas infelizmente nada meio que apareceu. Eu me machuquei, não foi nada feio, mas foi num momento que não consegui defender uns pontos, aí eu caí para 500, 500 e pouco [no ranking]. Aí em 2019 a ATP e a ITF fizeram aquele transition tour. Lembra daquilo? Aí praticamente tive que começar do zero quando eu voltei em 2019. Nesse tempo em que eu tava estava parado, dava umas aulas, eu comecei a dar bastante aula. Aí eu pensei "pô, tem que tem que ganhar muito jogo para ganhar o mesmo que eu tava ganhando dando aula e vivendo uma vida normal." Vivendo uma vida que agora podia sair com meus amigos e jantar e não ter que me preocupar que eu gastei 30 dólares, sabe? Porque antes não tinha como. E você começa a viver uma vida normal, que você não tem que pensar na próxima viagem. E eu gostei disso, tinha 25 anos, meio que estava um pouco cansado de tênis e aí, quando veio o transition tour, meio que me empurrou para fora assim. "Eu não vou fazer isso aqui. Eu jogo uns torneios de grana para me divertir" e aí eu vou começar essa carreira de coach e ver o que que vai acontecer com isso, aonde vai levar. Eu sempre fui meio assim, eu vou meio de feeling mesmo, de "eu acho que é a decisão certa". Meus amigos até fazem piada, que abre uma porta aqui, aí abre outra porta aqui, e eu vou entrando pelas portas. Mas é sempre meio de feeling. Se eu acho que vai ser um algo bom pra minha carreira ou pro meu currículo, ou só a experiência, eu vou fazendo. E aí eu meio comecei a fazer isso...

É muito louco como a vida faz isso e, às vezes, a coisa funciona, né?

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Exato!

É muito uma visão minha das das coisas, mas se você bota, sei lá, coração, bota a cabeça naquilo ou você entra, nem que vá 100%, mas às vezes você bota a energia certa no negócio... Tipo... aquela porta ali, de repente vai fechar quando estiver abrindo outra.

Exato! É o que aconteceu com a Naomi. Eu tava trabalhando coach, nem pensando. Eu tinha vários clientes, estava tranquilo assim. Aí, no final de 2019, eu comecei a receber umas ligações. "Está mudando uma mulher da WTA que vai precisar de um hitting partner [rebatedor]. Ninguém queria me falar quem era. "Que que você tá fazendo?" Falei: "Olha, eu tenho minhas aulas, mas também não tô..." Eu sempre gosto de ser dono do meu tempo, né? Então não tava trabalhando para ninguém full time, nada. Falei: "Olha, quando ela, mudar me avisa." E aí apareceu que foi a Naomi, a gente fez o tryout, e eles gostaram. Duas semanas depois, foi "Estamos indo para a Austrália, vamos?" Falei: "Vamos". Então é aquela coisa, tipo, vai aparecendo, e se eu vou fazendo o trabalho que eu tô fazendo bem e o que aparecer.... Tem muita coisa que eu disse não também. Não senti que era coisa certa ou que não era a trajetória certa. Pô, a parte de college, eu sempre achei que seria uma carreira legal, college coach, né? Mas eu vi que é muita muita burocracia. Como quase trabalhar numa empresa. Eu falei "isso não é para mim." Então fui testando coisas, né? Porque eu era novo ainda, 25, 26 anos, sem família, sem nada. Vai testando ver o que que dá certo.

Quem foi que te procurou para trabalhar com a Naomi?

O agente dela começou a perguntar para a galera ali em Los Angeles, coaches em Los Angeles, e acabou.

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Ela morava lá, né?

Não, ela morava na Flórida. Ela estava se mudando para Los Angeles. E aí por isso que estavam procurando em Los Angeles. Aí acho o agente dela perguntou para várias pessoas, meu nome apareceu várias vezes. Eles me ligaram e aí, o coach na época, o Wim [Fissette], estava entrando com ela no mesmo momento, assim, estava uma mudança grande no time. E aí eu entrei junto e aí fomos.

Você ficou quanto tempo com ela?

Um ano e meio, quase dois, on and off, assim, porque teve Covid. A gente começou no início de 2020, fomos pra Austrália, aí fomos para Indian Wells, aí parou tudo [pela pandemia]. Aí voltamos só no US Open que ela acabou ganhando. E aí o Australian Open eu não fui, mas a gente treinou juntos até o Australian Open que ela ganhou. E aí depois disso, que ela foi pra Europa e meio que começou a não jogar muito mais, teve os problemas dela, aí eu falei: "Eu preciso de trabalho, né? Vocês não estão mais jogando e eu preciso trabalhar". Então eu meio que fui saindo devagarzinho porque eu não estava com um contrato mensal. Eu ganhava quando eu trabalhava, e ela não estava mais jogando, e eu tive (risos) que achar outra coisa para fazer.

O que se aprende mais em um período assim com ela?

Eu acho é interessante você ver de perto assim alguém ganhar o nível mais alto do tênis, né? Tipo, aguentar a pressão de ter que ganhar esses torneios ou de estar em uma posição para ganhar esses torneios. Eu acho que cada pessoa tem o seu o seu jeito de treinar. A gente acha que tem uma fórmula, e não tem. Ela, meu, as duas semanas que a gente jogou, que ela ganhou o US Open... Eu aquecia ela, ela jogava, ganhava, e no outro dia nem jogava tênis. Só fazia um físico para manter o o corpo. No outro dia, jogava mais uns 15 minutos comigo e ganhava o jogo. No outro dia, não jogava. Então as pessoas acham: "Ah, nossa, ela deve estar na quadra três horas por dia ali". Eu tive que bater depois, eu falava com o coach "preciso bater com alguém porque eu tô perdendo o meu ritmo porque a gente está jogando 15 minutos a cada dois dias". Então você vai aprendendo que cada pessoa tem um processo, e se eles acreditam no processo deles, geralmente eles têm bastante sucesso. E acho que muitas vezes quando a gente está jogando, você tá no tour, você é coach, você vê uma pessoa fazendo isso, uma pessoa fazendo aquilo, você não sabe qual é o seu processo e acaba pensando demais, né? Então é meio que isso. Você vai aprendendo coisas técnicas, coisas assim, mas cada pessoa - de novo - joga do seu jeito, então é mais interessante ver alguém conquistando o maior título possível - de perto.

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O YouTube veio antes, durante ou depois desse período?

O YouTube começou mais ou menos ali. Foi acho que em 2020. A gente começou, éramos eu e o Guilherme Hadlich, que foi jogador também, hoje mora nos Estados Unidos. A gente começou o MyTennisHQ.com, que era mais um blog. A gente estava mais focado nisso por uns seis meses, quando bateu o covid mesmo. E a gente começou a fazer isso bastante. E aí ele que me falou: "Você gosta de mexer com câmera, fazer vídeo, social media, por que você não começa YouTube?" E aí eu sempre gostei de YouTube. YouTube sempre foi a minha plataforma. Eu aprendia no YouTube, aprendi a mexer com câmera, microfone, editar. Tudo que eu aprendo, eu aprendo no YouTube. Não sou muito do Instagram, TikTok, essas coisas. Sempre gostei dos formatos mais longos. E aí eu comecei a fazer. "Ah, tem uma história interessante, talvez as pessoas vão gostar". Botava uns ralis batendo com a Naomi, dava umas aulas, fazia umas reviews de raquete, ia vendo o que ia trazendo gente para o canal e, de pouco em pouco, foi crescendo e, de repente, começou a crescer mais do que a gente esperava, né? E virou meio que quase meu trabalho full time na época, mas ainda tendo que dar bastante aula, essas coisas. Mas foi mais ou menos nessa época ali que começou tudo junto.

Você falou de um rali com a Naomi, e eu lembro de uma ocasião - se eu estiver errado pode me corrigir - mas você postou acho que foi um ponto que você ganhou e um dia depois você posta alguma coisa em seguida dizendo: "Não, gente, não é bem assim" porque acho que uma galera deve ter falado: "Você deve ganhar da Naomi direto". Porque tem muito essa, a diferença é muito grande.

Sim. Sim.

Ficou uma situação que interpretaram como se você tivesse...

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Eu acho que muita gente sempre faz a pergunta: "você ganharia dela?" E ganha. Homens vão ganhar. Tem essa diferença física. Não é em termos de... Eu acho que até as meninas batem mais forte na bola porque elas batem um pouco mais reto e enfiam a mão na bola o tempo inteiro. Homens têm um pouco mais de shape, um pouco mais de spin, então às vezes o jogo até um pouco mais devagar. A Naomi enfia a mão na bola! É difícil de empurrar ela para trás! A diferença de homem e mulher é movimento. Então é tipo sacar aberto, jogar a primeira bola para lá, elas mal e mal vão chegar. Se chegar, já vai chegar meio assim, e na próxima você já vai matar. O homem, não. Você saca aberto, você tá aqui para bater, a quadra tá aberta lá, o cara sai correndo que nem um louco, vai chegar lá, vai bater, e pronto: o ponto está neutro. Então a maior diferença - é, lógico, tem o saque - mas é movimento. Então você vê que as meninas - acho que elas já estão melhorando um pouco o movimento - acho que a Iga já se mexe muito bem, por isso que ela está ganhando tanto. E eu acho que esse vai ser o gap que elas estão fechando em termos de fisicamente melhorar o movimento. Então eu nunca nunca perdi set para ela nem nada, mas assim, em termos de bater na bola e precisão, essas coisas, ela é melhor. Ela ganha... Acertava os cones. Eu falava: "Nossa, mas como é que acerta tanto cone assim quando tá fazendo os drills e tal?" Quando ela estava jogando bem, era assim, era difícil, não era fácil de ganhar. Eu ganhava no movimento, ganhava assim, meio que na de fazer umas coisas que elas não não estão acostumadas. Dar uns drop shots, sacar e volear... Mas de bater na bola, elas batem muito bem, cara.

Continua na Parte II, a ser publicada

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