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Tales Torraga

Gago, 34, vira técnico na Argentina. Por que brasileiros não fazem o mesmo?

Fernando Gago é apresentado como técnico do Aldosivi, da Argentina - Divulgação Aldosivi
Fernando Gago é apresentado como técnico do Aldosivi, da Argentina Imagem: Divulgação Aldosivi

Colunista do UOL

24/01/2021 08h09Atualizada em 24/01/2021 10h56

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Fernando Gago tem 34 anos e um currículo de peso como jogador. Volante de classe de Boca, Real, Roma, Vélez, Valencia e dez anos de seleção argentina, pendurou as chuteiras no mês passado depois de intermináveis lesões. Na última quinta (21), foi apresentado como técnico do Aldosivi, clube fundado em 1913 na cidade de Mar del Plata e integrante assíduo da Série A do país.

A precocidade de Gago é chamativa (Thiago Silva, por exemplo, tem 36 anos). É raro encontrar um técnico sub-35 brilhante como jogador. O último argentino a abraçar a prancheta tão jovem assim foi justamente o badalado Marcelo Gallardo, aos 35 (e também muitas lesões), em 2011, no Nacional do Uruguai.

A apresentação de Gago como técnico causa reflexão também pela ausência de exemplos brasileiros com sua trajetória.

Como os argentinos costumam brincar, o Brasil "pode ser a terra dos jogadores, mas a Argentina é o país dos técnicos de futebol". De fato, o interesse do país vizinho em seguir a carreira é incomparavelmente maior. E sem falar no gosto por aventuras. Gago, por exemplo, deixou para trás a vida de luxo vivida em Roma, Madri e Buenos Aires sem pensar duas vezes antes de enfrentar o calor de janeiro na modesta sede do Aldosivi.

Hernán Crespo, campeão da Sul-Americana ontem com o Defensa y Justicia, é outro bom exemplo. Depois de tanta badalação em Milão, Londres e Núñez, hoje seu lugar no mundo é Florencio Varela, subúrbio de Buenos Aires. Não se vê, nos grandes ex-jogadores brasileiros, tamanha aptidão para treinar um time e encarar imprensa e torcida neste futebol "minuto a minuto" das redes sociais.

O volume de treinadores argentinos é de fato enorme, e o país acaba de ultrapassar a marca de 15 mil técnicos licenciados. Na última Libertadores, os argentinos comandaram 14 dos 32 clubes da fase de grupos. Levantamento do Centro Internacional de Estudos do Futebol, na Suíça, revelou há um ano que a Argentina era o país com mais treinadores em todo o mundo - 68 técnicos ativos, em 22 ligas. O Brasil? Só 16 (23,5% da Argentina).

A elite hoje dá um panorama preciso da eficiência do alcance vizinho. Na Europa, impossível não mencionar o trio Mauricio Pochettino (no PSG), Marcelo Bielsa (Leeds United) e Diego Simeone (Atlético de Madri). No Brasil, Jorge Sampaoli e, até outro dia, Eduardo Coudet. E também as seleções. Cinco técnicos argentinos dirigiram times na última Copa do Mundo, na Rússia - Sampaoli na própria Argentina, Ricardo Gareca no Peru, Héctor Cúper no Egito, José Pekerman na Colômbia e Juan Antonio Pizzi na Arábia Saudita.

A formação argentina é concorrida e tradicional: o curso para ser técnico existe desde 1963, e o diploma é exigido desde 1994. Quem estudou qualquer assunto no país sabe da tradicional paixão argentina por conhecimento, gerando boas escolas e professores obsessivos, de tão exigentes que são.

No futebol não é diferente. Os três anos de cursos são transcorridos sem dramas e com interesse cada vez maior, pois as aulas se desdobram a temas cotidianos como psicologia e neurociência. Lucas Pratto, Loco Abreu e Andrés D'Alessandro, para ficar só em três exemplos bem conhecidos no Brasil, já encararam a dose de aulas e estão aptos a ser técnicos. Basta ter interesse: qualquer candidato, inclusive do Brasil, pode estudar à distância no campus virtual da ATFA (Associação de Técnicos do Futebol Argentino).

A mescla da tradição do ensino e interesse dos alunos impede qualquer "furada de fila". Mesmo estrelas nos campos suam nos campus, e é engraçado perceber que os dois volantes da Argentina na Copa do Mundo do Brasil de 2014, Gago e Mascherano, já iniciaram suas carreiras de técnico. Javier hoje trabalha na seleção, desenvolvendo a metodologia da categoria de base.

Outra brincadeira bastante repetida na Argentina é o "aluno comer o livro como o jogador come a bola", ilustrando a raça necessária para lidar com a alta dose de estudos. Em cenários assim, o QI ("Quem Indica") não existe - quem quer ver um argentino bravo é falar disso, por brincadeira que seja. O portenho em especial se vê não raramente como um referente mundial de intelecto, e é difícil tirar-lhe a razão, principalmente quando o papo se encaminha para os cinco prêmios Nobel conquistados pelo país entre 1936 e 1984 (e todos com larga atuação na mesma universidade, a UBA, de Buenos Aires).

Uma das explicações para este aspecto é o investimento em educação nas décadas passadas. A dimensão do país, claro, contribui. A população argentina hoje é de cerca de 45 milhões (e 211 milhões de brasileiros). A prioridade na educação ficou para trás, como mostram as datas dos prêmios Nobel, mas a base é forte e exigente, integral e multicultural. Quem encara com afinco os estudos em Buenos Aires termina com uma bagagem rica e uma formação que muitas vezes que não deixa nada a desejar à europeia.

Voltando aos técnicos, já caducou usar o idioma como desculpa (o que responder a quem insiste nisso em pleno 2021?). Pochettino está na França, Bielsa há anos é referência na Inglaterra, Schelotto e Almeyda andaram muito bem nos Estados Unidos. Relacionar o espanhol ao sucesso está obsoleto.

E a primeira atitude para o Brasil ter semelhante capacidade é reconhecer a eficiência do que é feito. Nem precisa ir longe.

Logo ali na fronteira está um exemplo dos melhores.