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Tales Torraga

REPORTAGEM

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O que o Brasil tem a aprender com o "sócio-torcedor" de Argentina e Uruguai

Torcida do River Plate provoca Boca Juniors antes da semifinal da Libertadores - ALEJANDRO PAGNI / AFP
Torcida do River Plate provoca Boca Juniors antes da semifinal da Libertadores Imagem: ALEJANDRO PAGNI / AFP

Colunista do UOL

15/08/2021 04h00

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Tanto no Brasil como em outros países da América do Sul, os programas de "sócio-torcedor" representam parte importante da engenharia financeira dos clubes. De acordo com os balanços oficiais de 2014 a 2019, o faturamento das equipes da Série A do Campeonato Brasileiro com programas de sócios-torcedores cresceu 42% neste período. Em 2019, por exemplo, no Brasileirão, 51% dos pagantes foram aos estádios na condição de sócios de seu time.

Em países vizinhos como a Argentina, os números são até maiores. Até a pandemia chegar, os dois gigantes Boca Juniors e River Plate possuíam mais de 200 mil e 150 mil sócios, respectivamente, de acordo com dados divulgados pela AFA em 2019. Ao contrário dos brasileiros, os argentinos não oferecem tantas "ativações", o que gera constantes críticas nas redes sociais. Nos vizinhos, afinal, o que vale é "a paixão sem preço", mesmo que isso comprometa a renda familiar em uma economia cada vez mais combalida.

O famoso fanatismo argentino

"O torcedor argentino tem um sentimento de pertencimento muito forte e entende que estar atrelado a algo do clube pode fazê-lo mais forte e protagonista. No Brasil, no entanto, os fãs deram uma resposta positiva mesmo com 16 meses de estádios fechados, visto que a média da queda de associados ficou na casa dos 30 a 40%", afirma Renê Salviano, especialista em marketing esportivo.

"O fanatismo e a paixão do torcedor não se alteram, mesmo ele não conseguindo ir até o estádio. Acredito que os clubes tentaram manter essa ligação e buscaram diferentes formas de oferecer produtos e benefícios, mesmo cientes das dificuldades", complementa Marcelo Palaia, também especialista do segmento.

No Boca, existe até fila ser sócio. Todos podem se associar ao clube, mas não terão nenhuma vantagem relacionada a ingressos ou acessos aos jogos. Os novos contribuintes serão classificados como "sócios aderentes" e ficarão no aguardo até serem aprovados, enquanto os ativos podem usufruir das vantagens relacionadas a ingressos.

Reconhecendo o filão, o clube azul e ouro pretende até implantar um "plano eterno", em que o torcedor segue afiliado ao clube mesmo depois de morrer, "perpetuando o fã na eternidade do Boca".

"Os clubes precisaram se desdobrar neste período de portões fechados, abusar da criatividade, por isso é fundamental definir um planejamento estratégico, ter projetos maiores", acrescenta Bruno Maia, especialista em novas tecnologias e inovações do esporte.

Do outro lado, o River Plate reconhece que o programa de associados faz parte da história do clube. Os sócios do River, aliás, foram o principal motor da retomada do clube, que descendeu em 2011 e voltou à Primeira Divisão em 2012. No orçamento previsto para 2019/2020, a expectativa de faturamento com associados representava cerca de 30% dos ganhos anuais da equipe, sendo a maior fonte de renda ao lado da bilheteria.

O clube também trabalha com projetos como o "Tu lugar en el Monumental", uma "season ticket" para jogos dos torneios nacionais, praxe na Europa.

Entre os outros grandes do país, o Racing, por exemplo, se aproxima um pouco mais das propostas de clubes brasileiros com foco na divulgação e em ativações ao apostar no marketing para alavancar o programa de sócios.

Em 2018, o clube chamou a atenção com a campanha #NoHayExcusa que reunia ídolos como Lautaro Martínez, Lisandro López e Diego Milito no papel de torcedores comuns. Além disso, também é possível encontrar programas de férias para associados, similar ao de muitos times do Brasil.

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Torcedores de Boca Juniors e River Plate em frente ao Santiago Bernabeu
Imagem: Cezaro De Luca/picture alliance via Getty Images

No outro vizinho, o Uruguai, a característica mais marcante está nos planos de moradores do interior. No Peñarol, as categorias são divididas em sócios da região de Montevidéu e daqueles que moram no interior do Uruguai. Para aqueles que são mais ativos, o plano ideal é o "Activo" que dá direito a voto em eleições.

Já o Nacional possui dois tipos de programas: sócio do interior e sócio do exterior. Os sócios podem optar por pagar mensalmente, trimestralmente ou anualmente. O plano 'interior' é aquele para torcedores que moram em Montevidéu ou no interior do Uruguai. Eles são separados em três categorias: "Área Metropolitana", "Interior Sul" ou "Interior Norte".

No sócio do exterior, o grande "diferencial" é que em um jogo por mês em que o Nacional joga em casa num sábado ou domingo, o associado do exterior pode doar um ingresso, designado a seu critério, para alguém que esteja no Uruguai.

Vizinho do Uruguai e sempre de olho no que dá certo no futebol ao lado, o Internacional adota prática semelhante no que diz respeito a angariar adeptos de outras localidades. "Queremos ser mais intensos para tornar o Internacional como o clube mais digital do Brasil. Queremos estar mais próximos de todos os torcedores e sócios, estejam onde estiverem, gerando conteúdos e ações exclusivas para os mesmos", diz Jorge Avancini, vice-presidente de marketing do Colorado. "Entrar totalmente no digital como forma de monetizar e buscar novos recursos é necessário. O engajamento em torno de um serviço oferecido também precisa ser visto com prioridade."

Fidelidade vizinha

O Nacional perdeu quase 10% do número de sócios durante a quarentena, enquanto a taxa do Peñarol foi ainda menor: 4%. No River, em junho de 2020, apenas 7% dos sócios deixaram de pagar a mensalidade, e o Boca teve uma retração semelhante. O clube xeneize fez uma força-tarefa para captar sócios internacionais que poderiam entrar na categoria pelos valores de 5 ou 10 dólares. A campanha teve quase 2000 aderentes (e 20 mil dólares mensais).

Para o presidente do Fortaleza, Marcelo Paz, buscar o torcedor onde ele está faz sentido no futebol nacional: "Ficou muito claro o desejo da torcida em ajudar o Fortaleza, voltar a ser sócio ou se tornar sócio pela primeira vez, passava por um plano barato, um plano popular. Por isso optamos por desenvolver um plano mais acessível".

Clube que chega agora à Série A, o Cuiabá pretende explorar seu principal diferencial, a Arena Pantanal: "Ela pode ser um fator para atrairmos não apenas nossos fãs, mas também aqueles que apreciam o futebol e os turistas que visitam a região. Também temos algumas parcerias interessantes com o governo estadual, pretendemos aumentá-las para a volta do público aos estádios", afirmou Cristiano Dresch, vice-presidente do clube.