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Tales Torraga

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Como a tatuagem de Maradona salvou dois jornalistas na guerra da Ucrânia

Torcedor argentino mostra tatuagem em homenagem a Diego Maradona - Ueslei Marcelino
Torcedor argentino mostra tatuagem em homenagem a Diego Maradona Imagem: Ueslei Marcelino

Colunista do UOL

08/03/2022 08h48

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Diego Armando Maradona morreu em 25 de novembro de 2020, mas sua magia entre os fanáticos argentinos é cada vez maior. É neste clima que Buenos Aires amanhece nesta terça-feira (8) com o relato do jornalista chileno Daniel Matamala, da CNN de seu país (trabalha também para a TV Chilevisión). Daniel chegou à Ucrânia no último domingo (6) para cobrir o conflito com a Rússia e encontrou, como era de se esperar, muita tensão e um pesado questionamento das autoridades locais

Em determinado momento, a situação ganhou uma reviravolta com duas palavras: Maradona e Messi. O relato na conta de Instagram de Daniel é este:

"Em um controle na estrada, policiais revisaram nossos documentos, câmeras e telefones, e nos levaram até uma delegacia. As primeiras perguntas foram tensas. O país está em guerra e há óbvia suspeita quanto a espiões e sabotadores."

"Um dos policiais viu os passaportes dos meus colegas argentinos e disse duas palavras que entendemos: Messi e Maradona. Aí tudo mudou."

"Nosso grande cinegrafista mostrou que tem uma tatuagem de Diego Maradona na panturrilha. Com isso, graças ao futebol, conseguimos sair dessa situação e chegar aonde precisávamos, sem inconvenientes."

"Nos deixaram livres e devolveram nosso equipamento. A 'Mão de Deus' nos resgatou. Inclusive em situações bélicas, de guerra, também há momentos para algo mais leve."

O cinegrafista tatuado "maradoniano" que trabalha na CNN do Chile se chama Juan Zamudio — e é argentino.

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Jornalista chileno Daniel Matamala
Imagem: Reprodução TV

Pesada rivalidade

O relato de Daniel ganha ainda mais força por uma questão local pouco conhecida no Brasil. A rivalidade entre chilenos e argentinos (não só no futebol) é a mais pesada do continente, na opinião da coluna.

Conversar em Buenos Aires sobre qualquer embate Argentina x Chile exige ouvido e estômago para lidar com os sérios insultos portenhos destinados aos chilenos. E a razão disso é a Guerra das Malvinas, ocorrida em 1982. A Argentina vivia sob uma ditadura militar, estabelecida por um golpe de Estado em 1976.

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Postagem de jornalista chileno revelando 'ajuda' da tatuagem de Maradona
Imagem: Reprodução Instagram

O regime já estava desgastado, especialmente pela crise econômica a que arrastara o país. Nesse sentido, o ataque às ilhas foi uma forma de estimular o nacionalismo dos argentinos, angariando simpatias ao governo do general Leopoldo Galtieri e canalizando os descontentamentos para um inimigo externo, no caso os ingleses.

O Chile, sob a ditadura de Augusto Pinochet, colaborou com os esforços de guerra britânicos, por causa de uma disputa territorial que alimentara com os argentinos, em 1978. Tal atitude gera até hoje comentários raivosos de argentinos contra chilenos chamando-os de "traidores" e incitando músicas de ódio. E ambas as torcidas tinham o costume de vaiar com fúria o hino contrário. No cume da ignorância coletiva, a família de Lionel Messi foi agredida no Estádio Nacional de Santiago na decisão da Copa América de 2015, vencida pelos chilenos em casa.

A coluna publicou em 2021 um extenso texto destrinchando esta rixa - o post pode ser lido na íntegra aqui.

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Montagem com as duas 'Mãos de Deus' de Maradona em Copas
Imagem: Reprodução web

'Mão de Deus' (justamente) contra os soviéticos

Outro tema que merece ser ampliado é a "Mão de Deus" de Maradona. O seu gol de mão contra a Inglaterra na Copa do Mundo de 1986 não é o único lance "manualmente divino" comemorado pelos argentinos.

Na Copa seguinte, disputada em 1990 na Itália, Maradona e a Argentina enfrentaram a forte União Soviética, que vinha do ouro olímpico em Seul, em 1988. Era jogo de vida ou morte em plena segunda rodada da fase de grupos (argentinos e soviéticos perderam na estreia).

O jogo foi no Estádio San Paolo, em Nápoles, onde a Argentina se sentia em casa graças à paixão do público local por Maradona. E ele soube usar seu magnetismo como ninguém. Catimbou, atraiu faltas, controlou o ritmo e colocou pressão sobre o árbitro sueco Erik Fredriksson.

Logo aos 11 minutos, com os argentinos passando sufoco, o goleiro Pumpido se chocou com o volante Olarticoechea e quebrou a perna. Em seu lugar entrou Goycochea. Enquanto ele ainda se acomodava sob as traves, a União Soviética tinha um escanteio a seu favor. Um dos oponentes cabeceou e Goycochea não alcançou. Mas Maradona, em cima da linha, como um verdadeiro goleiro, esticou a mão direita para impedir o gol soviético.

Caso tivesse sido flagrado (hoje com o VAR certamente), Maradona teria levado o cartão vermelho, deixando a Argentina com dez e desfalcando o time na partida seguinte, contra a Romênia. Seria muito provavelmente um caminho sem volta para a azul e branca naquela Copa.

Com Maradona impune, deu Argentina ante os soviéticos, 2 a 0, gols de Troglio e Burruchaga, valendo a vaga nas oitavas de final para vencer o Brasil por 1 a 0 em outra genialidade histórica de Diego. Foi neste clássico que ocorreu a infame "água batizada" dada pelos argentinos ao lateral brasileiro Branco.