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Por que a Argentina jogou a Copa de 1982 mesmo sob a Guerra das Malvinas?
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No dia 2 de abril de 1982, há exatos 40 anos, começava a Guerra das Malvinas, entre Argentina e Reino Unido, pela soberania das ilhas do Atlântico Sul. O então ditador argentino Leopoldo Galtieri ordenava a invasão do arquipélago, sob domínio britânico desde 1833, numa última tentativa de recuperar o espírito nacionalista e salvar o regime militar vigente no país.
O saldo final foi desastroso para os argentinos. Os soldados enviados para as Malvinas não estavam preparados para uma guerra. No total, 903 pessoas morreram nos 45 dias de batalha — 649 argentinos, 255 britânicos e três civis.
Até hoje a pergunta persiste: por que a Argentina disputou a Copa do Mundo de 1982 mesmo com a guerra em andamento? A coluna reproduz agora alguns dos detalhes vividos pelo país vizinho naquele Mundial. Os trechos estão no livro Copa Loca - As inacreditáveis histórias da Argentina nos Mundiais, lançado pela editora Garoa Livros.
Loucura e tragédia
A loucura argentina na virada dos anos 1970 para os 1980 era capaz de provocar situações incrivelmente estranhas. Enquanto os campeões da Copa de 1978 juravam que não sabiam das atrocidades cometidas pela ditadura militar ao longo do torneio, o plantel que foi ao Mundial de 1982 saiu de Buenos Aires acreditando numa versão da Guerra das Malvinas e chegou à Europa conhecendo uma outra bem diferente.
Quem resume o ambiente dentro daquele elenco é o matador (da grande área) Mario Kempes, que fora o grande nome da conquista de quatro anos antes e chegaria ao Mundial da Espanha como uma das principais estrelas da competição.
"Os chefes ficaram em Buenos Aires e mandaram às Malvinas os soldados bem novinhos. Foi um crime. Isso doeu muito na concentração", contou o atacante em março de 2018, em entrevista ao jornal "Pagina 12". "Fomos nos inteirando sobre a guerra no caminho. Quando saímos do país, estávamos ganhando. Quando chegamos à Espanha, encontramos a realidade. 'O que sabem na Argentina?', a gente se perguntava. Até que explodiu tudo. Era uma mentira, uma farsa."
A descoberta da manipulação dos fatos apresentados à população chocou e entristeceu o elenco todo, mas os jogadores se viram de mãos atadas. Havia alguma forma de desmascarar os generais? Era possível desistir de disputar aquela Copa? "Não! O que a gente poderia fazer, se éramos apenas jogadores de futebol?", disse Mario Kempes. "A única coisa que poderíamos oferecer ao povo eram alguns minutos de alegria, nada mais."
Nem isso a seleção conseguiria. A Argentina estreou no Mundial de 1982 no dia 13 de junho, perdendo para a Bélgica por 1 a 0 no Camp Nou, em Barcelona. Exatamente no dia seguinte, os garotos-soldados se rendiam nas Malvinas, congelando de frio, sem ter o que comer, abandonados por seus covardes chefes militares.
Mãos atadas
Mantido no cargo depois do triunfo em 1978, César Luis Menotti concorda com Kempes sobre a impossibilidade de qualquer mudança repentina de direção antes da Copa. O técnico também confirma que o impacto do conflito nas Malvinas sobre o grupo foi pesadíssimo. "Não passou pela nossa cabeça deixar de jogar, mas era um clima muito fodido", contou ele à El Gráfico
em 2014. "Os jogadores conversavam com seus parentes. Na Argentina diziam que íamos ganhando a guerra por 4 a 0, e na Espanha soubemos que era um massacre contra nós. Víamos as imagens que iam para a Inglaterra e mostravam cada coisa...Havia muita bronca, mas jamais pensamos em não jogar."
É mesmo chocante que a bola tenha continuado a rolar normalmente para os argentinos durante a Guerra das Malvinas. As mortes se acumulavam nas ilhas do Atlântico Sul e a seleção se preparava como se nada estivesse acontecendo.
Em 14 de abril de 1982, por exemplo, enquanto o ditador Leopoldo Fortunato Galtieri conversava com o presidente americano Ronald Reagan sobre a possibilidade de uma solução pacífica para o conflito, a azul e branca jogava um amistoso no Monumental de Núñez com a União Soviética, empatando por 1 a 1.
Duas semanas depois, em 28 de abril, a Argentina enfrentava um combinado local em San Juan e ganhava por 9 a 1, com quatro gols de Maradona. O jogo aconteceu apenas três dias antes do início das hostilidades com os ingleses. As duas tramas seguiam em paralelo, e ambas acabariam muito mal.
Em 5 de maio, um dia depois de saber que os aviões argentinos haviam afundado o contratorpedeiro HMS Sheffield, a Argentina vencia a Bulgária por 2 a 1 no estádio do Vélez. Dois dias depois, o cartolão Julio Grondona anunciava oficialmente que a Argentina disputaria a Copa mesmo com a guerra em curso. "A seleção vai se apresentar, a não ser que a Junta Militar decida o contrário. Apenas no caso de uma piora considerável da situação vamos contemplar uma renúncia."
Por via das dúvidas, a Fifa já acionava as federações de Portugal, Suécia e Romênia para enfileirar possíveis substitutos. Mas convenhamos: não seria nada fácil preencher a lacuna deixada pela campeã vigente.
Circo e pão
A exemplo do selecionado, o campeonato nacional também seguia como tudo estivesse na mais perfeita ordem. O ambiente no país naquele confuso período é tema de uma das melhores composições da banda argentina Callejeros, No volvieron más ("Não voltaram mais"): Circo y pan como siempre fue acá / Nos prendimos a jugar un Mundial / Y después nadie supo saltar / Por los sueños que se hundieron allá / Oh, y no volvieron más / Oh, y no volvieron...
Circo e pão à espera de um Mundial.
Em 12 de maio, enquanto os aviões ingleses atacavam com fúria nas Malvinas, a Argentina vencia a Romênia por 1 a 0 em Rosário. Nesse mesmo dia, mais 3.000 soldados deixaram a Grã-Bretanha em direção à zona de combate.
O último jogo da seleção na Argentina antes do embarque para a Espanha foi em 19 de maio, contra o Benfica, vitória por 1 a 0 no Monumental. A partida ficou em segundo plano, pois o papa João Paulo II estava em Buenos Aires convocando seus sacerdotes para celebrar uma missa pela paz no arquipélago.
A primeira página do "Clarín" de 13 de junho de 1982 foi das mais emblemáticas. Narrava a passagem do pontífice pelo país: "Dois milhões de argentinos oraram com o papa, que pediu para que Argentina e Grã-Bretanha encontrem uma solução pacífica". Logo abaixo, outro título: "Argentina inaugura o Mundial".
Os onze titulares de Menotti estrearam e perderam para a Bélgica no próprio 13 de junho, e no dia seguinte o general Benjamín Menéndez reconheceu a derrota nas Malvinas. A rendição colocava ponto final em um atroz e inútil conflito responsável pela morte de 649 soldados argentinos.
No bizarro mundo paralelo da Copa, entretanto, não havia tempo para luto.
Em 18 de junho, um dia depois da queda do ditador Leopoldo Galtieri, a Argentina entrava em campo pela segunda vez no certame, batendo a Hungria por 4 a 1. No dia 23, já com Reynaldo Bignone como novo presidente designado pela junta militar, a seleção superou El Salvador por 2 a 0 e avançou para a fase seguinte.
Desgraçada ironia: a equipe azul e branca, que tentava seguir adiante enquanto o país chorava seus soldados caídos, disputaria um triangular com Itália e Brasil, imediatamente classificado pelos jornais do mundo todo como o "grupo da morte".
Dor também em campo
A participação da Argentina nessa fase, que dava uma vaga na semifinal, acabou sendo um desastre. A defesa do título conquistado em 1978 terminaria de maneira dolorosa. Em 29 de junho, a equipe de Menotti perdeu para a Itália, 2 a 1, no Estádio Sarriá, em Barcelona. Quatro dias depois, caiu diante do Brasil, 3 a 1, sendo eliminada. O mesmo aconteceu com a Inglaterra, que venceu os três jogos da primeira fase mas empatou com Alemanha e Espanha em seu triangular, ficando de fora das semis. O encontro com os ingleses nos campos da Espanha, algo em que muitos argentinos sonhavam como uma absurda chance de revanche pelas Malvinas, só aconteceria quatro anos depois, no México.
Se a Argentina jamais cogitou ficar em casa por causa da guerra, a Inglaterra chegou a avaliar seriamente essa possibilidade. Em 2014, o Arquivo Nacional do Reino Unido liberou o acesso a documentos oficiais mostrando que parte do governo não queria a participação inglesa na Copa de 1982. Por outro lado, a primeira-ministra Margaret Thatcher e a Football Association achavam que o English Team deveria participar normalmente do Mundial.
A única possibilidade de boicote ficou reservada para o caso de disputa direta com os argentinos. "Peço que não sejam praticados esportes de contato com representantes da Argentina", escreveu Neil MacFarlane, ministro do Esporte, num memorando interno do governo britânico. "A perda de vidas britânicas no Sheffield e nos caças Sea Harriers abatidos na guerra teve forte impacto em alguns jogadores. Eles sentem repulsa diante da possibilidade de disputar o mesmo torneio que a Argentina em tempos como estes."
Em outro documento, o possível boicote era analisado como um sinal de fraqueza. "Se isso ocorresse, nenhum outro país nos seguiria nessa retirada da Copa. A Argentina enxergaria a saída britânica não como uma pressão sobre eles, mas sim como uma oportunidade para fazer propaganda: o Reino Unido, não a Argentina, seria o país que ficaria isolado", opinou Robert Armstrong, integrante do gabinete de Thatcher, em correspondência enviada à chefe de governo.
O risco de um impasse diplomático não se limitava à chance de um Argentina x Inglaterra: as outras seleções britânicas daquele Mundial, Irlanda do Norte e Escócia, também esperavam não se deparar com os portenhos. A interrogação sobre o que poderia ocorrer caso os países beligerantes fossem colocados frente a frente nos cruzamentos da Copa jamais será dissipada. O fato de a Fifa proibir qualquer interferência dos governos nas decisões das federações nacionais tornaria a situação ainda mais confusa.
Entre os participantes da campanha, há quem afirme com todas as letras que a Argentina deveria ter ficado em casa. Jorge Olguín, lateral-direito e titular da zaga ao lado de Daniel Passarella em todos os cinco jogos da seleção no certame, diz que não resta dúvida sobre a influência negativa do conflito sobre o desempenho esportivo do time. "Me arrependo de ter jogado. Não deveríamos ter participado", disse Olguín em entrevista ao "Clarín" em 2012. "Não é que não tomamos consciência. Aquela era a nossa profissão. O futebol é sempre diferente. Mas em um caso assim..."
O defensor cita a morte do primo de Ardiles ao relembrar o clima ruim na concentração. "A tragédia nos tocou de perto. Não era o ambiente ideal para disputar uma Copa. Imagine que sua família está em Buenos Aires, seu país está em guerra e você está jogando um Mundial. Mas nunca usamos a guerra como desculpa, porque a imprensa estava esperando para nos matar."
E Maradona? Bem, sua primeira Copa do Mundo foi bastante diferente do que se esperava - e, no caso dele, a angústia provocada pela guerra não foi um fator determinante para a decepção sofrida nos campos espanhóis.
Diego tinha apenas 21 anos ao estrear no torneio. Apesar do vigor da juventude, foi justamente a parte física que o traiu. Em sua autobiografia, ele classifica como "nefasta" a preparação para aquela Copa. "Cheguei morto, sem forças. Me mandavam dar piques de 150 metros, sendo que eu já estava esgotado com o campeonato que havia disputado com o Boca."
Salto alto e voadora
Assim como Menotti, que reconheceria anos depois que seu time chegou à Espanha com certa soberba, Maradona também acha que a Argentina disputou a Copa de salto alto. "A gente se sentia campeão do mundo antes mesmo de jogar. Ficamos quatro meses treinando, mas foi tudo para o caralho. A concentração, em Alicante, era muito linda, espetacular, e isso acabou nos colocando numa situação de tranquilidade que nos atrapalhou."
Além do desgaste físico, Maradona reclama da expectativa depositada sobre ele em função de sua transferência para o Barcelona, fechada dias antes do Mundial ao custo de 8 milhões de dólares, um valor recorde para a época. O "Pibe de Oro" também foi vítima da violência dos adversários, em especial de seu mais implacável marcador. No primeiro jogo do triangular decisivo, o italiano Claudio Gentile acertou mais as panturrilhas do argentino do que a bola. Com Maradona submetido a uma sessão de tortura pelos pés do capanga da Juventus, a Azzurra, que vinha cambaleando no torneio, venceu e iniciou sua arrancada rumo ao título.
A tensão acumulada por Maradona durante o Mundial acabou sendo descarregada sobre quem não tinha nada a ver com a história. Em seu último lance na competição, ele acertou uma brutal voadora no estômago de Batista. A expulsão diante do Brasil marcava o momento em que a paciência de Diego tinha chegado ao limite. "Os brasileiros começaram a fazer graça no meio-campo. Eu quis acertar o Falcão, mas me enganei e acabei acertando o pobre Batista..."
Quatro anos depois, no México, com a Guerra das Malvinas como combustível, a história seria bem diferente.
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