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Tales Torraga

REPORTAGEM

Texto que relata acontecimentos, baseado em fatos e dados observados ou verificados diretamente pelo jornalista ou obtidos pelo acesso a fontes jornalísticas reconhecidas e confiáveis.

Para Silvio Lancellotti, 1994 merecia ser a Copa de Maradona, não do Brasil

Maradona comemora gol da Argentina contra a Grécia na Copa do Mundo de 1994 - Brian Snyder/Reuters
Maradona comemora gol da Argentina contra a Grécia na Copa do Mundo de 1994 Imagem: Brian Snyder/Reuters

Colunista do UOL

14/09/2022 08h29

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Primeiro comentarista brasileiro especializado em futebol internacional, Silvio Lancellotti morreu ontem (13), aos 78 anos, em São Paulo. O jornalista estava internado na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital São Paulo, localizado na capital paulista, após sofrer uma parada cardíaca.

Com oito copas no currículo, Lancellotti vivenciou a convulsão de Ronaldo Fenômeno na Copa de 1998, retratada em seu livro "Almanaque da Copa do Mundo", e construiu, nos anos 1980, uma amizade com Diego Armando Maradona. O jornalista, por exemplo, entrevistou o argentino no ônibus da seleção após derrota para a Alemanha na final.

Em seu blog no Portal R7, no dia seguinte à morte de Diego, em novembro de 2020, Lancellotti relatou desta maneira o convívio com Maradona:

"Conheci o Diego nos idos da década de 1980, ou em 1984, quando ele se transferiu do Barcelona ao Napoli e, graças a Luciano do Valle, eu passei a integrar um trio de vozes na narração do 'calcio' pela Band, com Giovanni Bruno e Sílvio Luiz, e pude testemunhar de que maneira Corrado Ferlaino montou o melhor elenco de Futebol no Sul da Itália em todos os tempos", escreveu Silvio.

"Depois, na Copa de 1990, na Bota, eu pude testemunhar de que maneira o Diego, já um campeão do mundo no México em 1986, estoicamente se recuperou de uma tenebrosa lesão de tornozelo. E enfim, na Copa de 1994, nos Estados Unidos, pude testemunhar a tramoia indecente, perversa, grotesca, que o tirou daquela competição."

Tal "tramoia" foi esmiuçada por Lancellotti em 28 de agosto de 1994 na "Folha de S.Paulo".

Em página dupla no "Folhão" de domingo, sua completa investigação trazia todo o êxtase e a agonia de Maradona naquele 1994. Foi a primeira vez que o leitor brasileiro teve contato com a intrincada trama que viraria livro tanto na Argentina quanto no Brasil.

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Matéria de Silvio Lancellotti na "Folha" em 1994 sobre a derrocada de Maradona
Imagem: Reprodução

'Me cortaram as pernas'

A Argentina arrasou a Grécia por 4 a 0 na primeira rodada da Copa de 1994, com um golaço de Maradona. No segundo jogo, a azul e branca alcançou uma vitória de virada por 2 a 1 sobre a Nigéria.

Veio então a efedrina. Esta era a substância proibida detectada na urina de Maradona no antidoping daquela partida.

O fisiculturista Daniel Cerrini, oficialmente integrado à delegação por ordem de Diego, foi questionado pelos próprios médicos argentinos e teve seu quarto vasculhado. Foram encontrados os comprimidos ministrados ao atleta como parte de seu tratamento nutricional - e que, de fato, continham efedrina em sua formulação.

Apesar de proibida pela Fifa, a substância não era vetada no mundo dos esportes americanos; estudos mostravam que seu uso não resultava em aumento sensível de desempenho ou rendimento. De qualquer forma, Cerrini seguia jurando inocência.

Em seguida, Roberto Peidró, médico da AFA, viajou a Los Angeles, onde a Fifa realizaria a contraprova obrigatória.

Ao ver o segundo frasco rotulado com uma etiqueta que indicava "efedrina", constatou um flagrante erro de procedimento - a violação do princípio do "duplo-cego", pelo qual a amostra deve ser testada sem que se tenha conhecimento prévio do que se procura.

O médico alertou os advogados da AFA, que, com isso, poderiam contestar juridicamente o resultado e dar uma sobrevida a Diego, mantendo-o na Copa até que se resolvesse o caso, algumas semanas depois. Mas Julio Grondona preferiu jogar o craque aos leões: sem querer ouvir argumentos contrários, decidiu retirar Maradona da concentração. Dessa forma, a Argentina escapava de qualquer tipo de punição da Fifa e poderia seguir normalmente no Mundial.

"Me cortaron las piernas", afirmou o craque, já isolado em um quarto de hotel em Dallas, evidentemente arrasado. "Juro por minhas filhas que não me droguei para jogar, porque quando treino como treinei, não preciso de nada para jogar. Estava inteirinho", lamentava.

"Agora nos roubaram o sonho. E acho que me tiraram do futebol definitivamente. Tenho os braços caídos e a alma destroçada. Quero que fique claro a todos os argentinos que não corri pela droga, corri pela camisa."

A ausência do ídolo foi dilacerante. "Em nível nacional, o futebol não nos entregou um luto coletivo superior ao dia em que conhecemos a efedrina. A atmosfera de tragédia superou qualquer derrota nos Mundiais passados. As eliminações anteriores motivavam uma reação clássica: os xingamentos aos jogadores e técnicos."

"A Copa de 1994 produziu a solidariedade com o totem em desgraça e massificou um estado de depressão", escreveram Andrés Burgo e Alejandro Wall no livro "El último Maradona - cuando a Diego le cortaron las piernas", que disseca o episódio com impressionante riqueza de detalhes.

Diante de tudo isso, não surpreende que o restante da participação argentina no torneio tenha virado uma mera nota de rodapé do drama de Maradona. Desde então, inúmeras teorias da conspiração tentaram explicar o fatídico exame positivo de Diego. Uma delas diz que João Havelange traiu Diego ao descumprir um acordo de bastidores para isentá-lo de testes em sua urina.

O suposto pacto entre o chefão da Fifa e Maradona teria sido combinado por ocasião da repescagem contra a Austrália, no fim de 1993, quando a Argentina estava a ponto de ficar fora do Mundial —algo que representaria um prejuízo significativo à entidade e aos seus patrocinadores.

O craque teria sido chamado às pressas de volta à seleção com a garantia de que não precisaria passar por nenhum tipo de teste antidoping. Com isso, evidentemente, insinua-se que Diego estaria sob efeito de substâncias ilegais desde essa época.

(De concreto, apenas o fato de que realmente não foram realizados exames antidoping nas duas partidas entre Argentina e Austrália - uma prática altamente incomum nas competições organizadas pela Fifa e que permanece inexplicada até os dias de hoje.)

Em maio de 2011, o próprio Maradona tratou de colocar mais lenha na fogueira ao dizer que, nos dois jogos da repescagem, a AFA forneceu aos atletas argentinos um "café veloz". "Grondona nos disse que não haveria controle antidoping. Colocavam algo no café e com isso você corria mais. Tenés que ser muy boludo si te hacen diez controles y el partido que se juega la clasificación no hay control."

(Celso de Campos Júnior, Giancarlo Lepiani e eu publicamos em 2018 o livro "Copa Loca - As inacreditáveis histórias da Argentina nos Mundiais", cujo trecho reproduzimos acima. A obra de 216 páginas segue à venda no site da editora, a Garoa Livros.)

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Diego Maradona comemora conquista da Copa do Mundo 1986, no México
Imagem: © Gary Hershorn / Reuters/Folhapress

Sem desfecho

Nas suas memórias sobre a amizade com Maradona publicadas no Portal R7, Lancellotti encerra assim a sua análise daquele 1994:

"Remanesce um resumo da ópera: a distração de um idiota absoluto, o tal Cerrini, arruinou um trabalho maravilhoso, e coletivo, da nova transformação do Diego. A Argentina, sem dúvida, ostentava a melhor seleção da Copa dos EUA. Na integralidade, completa e livre de abalos, bem mais provável que fosse a Argentina, não a Itália, a rival do Brasil naquela decisão horrorosa, a única final da antologia do futebol que ficou no 0 a 0 no tempo normal e na prorrogação".

"Sim, eu sei, na vida não existe o 'se', ou o 'talvez', ou o 'provável'. Mas, talvez, se levantasse aquela Copa, me parece muito, muitíssimo provável, que Diego Armando Maradona... É, sinto, este texto vai ficar sem o seu desfecho."