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Tales Torraga

REPORTAGEM

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A história de 'Argentina', filha que Pelé prometeu em 1978 e jamais teve

Recorte do "Clarín" com Pelé declarando que chamaria filha de Argentina - Reprodução
Recorte do "Clarín" com Pelé declarando que chamaria filha de Argentina Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

15/10/2022 04h00

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O ano era 1978, e a Argentina recebia a sua controversa Copa do Mundo. Aquele Mundial é lembrado até hoje pelo Brasil "campeão moral" e pela taça dos anfitriões sob violenta ditadura militar. Mas o resgate permite outro olhar: foi a primeira Copa do Mundo de Pelé como atleta aposentado.

O rei do futebol parou de jogar em 1º de outubro de 1977, pelo Cosmos (EUA), e sua aparição na Copa do Mundo da Argentina marcou a estreia como sumidade também nos negócios.

Pelé estava com 37 anos, e fazia propaganda de diversas marcas, sempre perto de João Havelange, presidente da Fifa e velho conhecido dos tempos de CBD (Confederação Brasileira de Desportos).

Uma das "ações de marketing" de Pelé naquela Copa de 1978 foi assinar colunas no maior jornal da Argentina, o "Clarín".

Para criar bom ambiente no país, Pelé disse em entrevista ao próprio "Clarín" que daria o nome de Argentina à sua segunda filha, que nasceria durante a Copa.

"O melhor que poderia acontecer é minha filha nascer durante a Copa", contou o Rei. "Sempre fui grato por tudo que a Argentina me deu na época de jogador, e estou deslumbrado pelas atenções e demonstrações de afeto que recebo a cada momento nessa estadia."

"Por isso, como homenagem a este país e à excelente Copa que estão fazendo, minha filha vai se chamar Argentina."

"Vou [aos EUA] por uns dias para conhecê-la, e espero estar de volta para ver os jogos da segunda fase. De todo jeito, não vou perder nenhum jogo, porque vou assistir pelo circuito fechado em Nova York. Agora, sinto uma imensa alegria. Esta Copa terá um duplo sentido de alegria. Me sinto profundamente feliz."

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Após cirurgia para retirada de tumor, filha de Pelé anuncia volta pra casa do ex-jogador
Imagem: Instagram

De Argentina a Jennifer

Pelé foi para Nova York. Como prometeu, voltou à América do Sul para acompanhar o fim da Copa e comemorar o título da Argentina comandada pelo amigo César Luis Menotti, antigo companheiro no Santos.

Em entrevista publicada pelo jornal "La Voz", na cobertura do Brasil x Argentina da segunda fase daquele Mundial, ele comunicou sua mudança de planos com relação ao nome da filha:

"Lamento desiludir os argentinos que esperavam que minha segunda filha se chamasse Argentina. Ela se chama Jennifer. Mas não foi decidido por nós. Nem por mim e nem pela minha esposa. Quem decidiu foi nossa filha maior, Kely".

Kely, hoje com 54 anos, é quem costuma postar as novidades de saúde do pai. Na Copa de 1978, quando ela decidiu, segundo Pelé, o nome da irmã, tinha só 11.

Pelé tem seis filhos reconhecidos: Edinho, Kely, Jennifer, Celeste, Joshua e Flávia Cristina Kurtz, assumida em 2002, quando ela estava com 34 anos.

Em 1963, aos 23, Pelé teve um rápido relacionamento com Anísia Machado, nascendo sua filha Sandra, que ele não reconhecia. Após exame de DNA, em 1996, ela conseguiu ter o nome do pai. Sandra morreu em 2006; Anísia, em 2014.

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Pelé posa com a camisa do Boca em 1981
Imagem: Reprodução El Gráfico

Proposta do Boca

Poucos no Brasil sabem, mas Pelé esteve na mira do Boca Juniors para sair da aposentadoria e jogar pelo clube em 1978, ano daquela Copa do Mundo.

Os torcedores do Boca mais veteranos vão além: repetem sempre que faltou pouco para "o maior jogador do mundo vestir a maior camisa do mundo".

De fato, o clube xeneize fez duas propostas ao rei do futebol. A primeira em 1968. Conhecendo a boa relação de Pelé com o volante e capitão Rattín, o presidente Alberto Jacinto Armando (que hoje batiza a Bombonera) pediu para seu atleta levar o Rei para jantar nas tradicionais cantinas do bairro de La Boca para ele "se sentir em casa e conhecer a paixão argentina".

Os outros brasileiros que jogavam (ou jogaram) no Boca, como Orlando e Paulo Valentim, também foram acionados na tentativa de convencer Pelé, que detalhou o encontro à revista El Gráfico em 1999: "O presidente virou um grande amigo meu, foi uma ótima experiência. Fiquei pensando como seria receber o apoio daquela imensa massa gritando meu nome. Alguns dos meus melhores momentos como jogador e como homem foram vividos na Bombonera e no bairro de La Boca".

Então por que houve a recusa?

"Pelé já estava tão integrado com o Santos que não havia mesmo nada que a gente pudesse fazer", contou Luis Bortnik, lendário braço-direito do presidente do Boca, em uma entrevista publicada no jornal "Olé" também em 1999.

A fixação do Boca por Pelé gerou até um segundo convite quando o Rei tinha já abandonado os gramados. Foi este de 1978, antes da Copa do Mundo da Argentina. "Sim, logo quando saiu do Cosmos [outubro de 1977], uma das primeiras coisas que fizemos foi telefonar e conferir suas intenções", seguiu o dirigente xeneize em outra entrevista publicada pelo "Olé" na decisão da Libertadores-2003, conquistada pelo Boca justamente contra o Santos.

O assédio do Boca ante Pelé contou até com dois amigos argentinos que defenderam o Santos ao seu lado: o zagueiro Ramos Delgado e o atacante César Luis Menotti, técnico da seleção argentina em 1978.

"Ele tinha 37 anos, mas você acha que não jogaria bem? Que nada, seria importante igual. Nunca vi um jogador ter os movimentos dele. Levitava no ar, parecia um puma", contou o técnico à coluna em um encontro no microcentro portenho em 2016.

Pelé preferiu não estender as súplicas xeneizes. Naquele 1978, seguiu vivendo nos Estados Unidos (onde fez propagandas do Atari) e viajando o mundo (onde vestiu a camisa do Fluminense em uma ação de marketing na Nigéria).

E, claro, lucrando com a Copa do Mundo da "sua" Argentina.