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Tales Torraga

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Fervor visto ontem na Argentina ensina Brasil a voltar a ser o que foi

Festa da seleção argentina em Santiago del Estero - Reprodução Twitter Tatografias
Festa da seleção argentina em Santiago del Estero Imagem: Reprodução Twitter Tatografias

Colunista do UOL

29/03/2023 07h47

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Foi uma loucura jamais vista, mesmo na Argentina que se gaba, com enorme cota de razão, de ser o povo mais apaixonado por futebol em todo o mundo.

A seleção tricampeã colocou na noite de ontem (28) o ponto final na sua jornada.

O amistoso de Lionel Messi e companhia na província de Santiago del Estero, vitória básica por 7 a 0 contra a seleção de Curaçao, gerou uma comoção inédita mesmo a quem está acostumado com todo o fervor do povo argentino (e nem dá para falar "fervor pelo futebol", porque quem conhece os argentinos conhece também seu fervor por absolutamente tudo).

Trabalhando com o futebol do país vizinho desde 2010, a coluna pode cravar tranquilamente que o ambiente de ontem no Estádio Madre de Ciudades não se compara com absolutamente nada no que diz respeito ao amor do público argentino pela seleção durante uma partida.

(Precisamos colocar a chegada da seleção a Buenos Aires em dezembro, depois da Copa, em uma prateleira eternamente separada, convenhamos, pelos cinco milhões de torcedores na rua sem nenhum jogo em disputa.)

Em Santiago del Estero ontem não houve uma recepção, mas sim uma verdadeira procissão quase religiosa, com o povo desbordando paixão ao elenco em cada um dos lugares.

O estádio, com seus 30 mil assentos tomados, foi mais que um "caldeirão de Libertadores", como comprovaram Dibu Martínez e Messi, extremamente ovacionados e emocionados.

"Se os Rolling Stones e os Beatles armassem uma turnê juntos não seriam tão amados assim", narrou, preciso, Leonardo Gentili na Rádio La Red, a líder do esporte em Buenos Aires.

Os vídeos estão aí, as fotos também, a quem quiser tiram suas dúvidas. O ônibus da seleção seguiu com velocidade humana, em meio à multidão que lotou as ruas e avenidas e gerou uma festa que, quem viu, jamais vai esquecer.

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Messi se emociona com festa argentina em Santiago del Estero
Imagem: Reprodução Twitter Tatografias

Descalços com o povo

Chamou demais a atenção na Argentina que o amistoso de despedida da "Scaloneta" tenha sido em Santiago del Estero, a 942 quilômetros de Buenos Aires, e não em lugares mais abastados como Mendoza, Córdoba ou Rosário.

Os índices de pobreza de Santiago del Estero estão entre os maiores de toda a Argentina. Números oficiais do governo federal aferem que 49% a 53% dos 1,05 milhão de habitantes da província vivem abaixo da linha de pobreza, segundo o censo de 2022.

A resposta, cortante, por parte da AFA (Associação de Futebol Argentino), foi exatamente esta, a de oferecer a possibilidade de o povo se misturar com a glória atual da seleção.

É esta a lição que fica ao Brasil para reconstruir sua imagem e refazer seu laço com o público.

Engana-se quem pensa que este amor à seleção argentina é incondicional e que os argentinos são tão apaixonados quanto fieis.

O nível de adoração é sim imenso, mas de rejeição também. Cansamos de ver o Monumental de Núñez às moscas na época do "quadrado mágico", com Messi, Di María, Agüero e Higuaín.

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Emoção de Messi com festa argentina em Santiago del Estero
Imagem: Reprodução Twitter Tatografias

A própria seleção de Scaloni, quando engrenou nas Eliminatórias pós-pandemia, também jogou em estádios apáticos e vazios.

A sequência de títulos conta demais, claro, mas a identificação vista ontem foi gerada também com doses totais de garra e entrega.

O argentino hoje tem a sensação de que, dentro de campo, os profissionais de elite carregam a alma do torcedor.

O Brasil também recorreu a isso, ali por 1993. Apostou em "operários" como Mauro Silva e Dunga para equilibrar um time ameaçado de não ir àquela Copa, que enfim ganhou, em 1994. nos Estados Unidos.

No Recife, ganhando por 6 a 0 da Bolívia (que havia batido o Brasil por 2 a 0 em La Paz), entrando todos de mãos dadas, o Brasil criou uma mística, pela ligação popular e pela união que o grupo demonstrou até o fim da era Zagallo, na Copa de 1998.

Não é difícil encontrar exemplos, nem na atualidade argentina e nem na história da seleção brasileira.

Complicado mesmo é botá-los em prática. E nem é preciso esperar algo das federações e confederações.

Na Argentina, um torcedor comprou a casa que era de Diego Maradona e a transformou em ponto de encontro de torcida e loucura na Copa do Mundo do ano passado.

Fica a dica a quem se animar neste futebol brasileiro de cofres cada vez mais cheios e de corações cada vez mais vazios.