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Tales Torraga

REPORTAGEM

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Argentina 'cortou' cabeludos da Copa há 25 anos; como foi aquele escândalo

Redondo, Rodríguez e Batistuta em partida da Argentina em 1994 - Reprodução web
Redondo, Rodríguez e Batistuta em partida da Argentina em 1994 Imagem: Reprodução web

Colunista do UOL

29/05/2023 04h00

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Era o fim de maio de 1998. Há exatos 25 anos, a Argentina mergulhou em um falatório sem fim ao armar a lista para a Copa do Mundo que começaria dali a duas semanas, na França.

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Batistuta: “Não tinha prazer em jogar, sentia dever de dar o máximo pela torcida que pagava pelo espetáculo”
Imagem: Reprodução

Convocação pelo corte de cabelo

O técnico Daniel Passarella estava obcecado em construir uma seleção argentina à sua imagem e semelhança em 1995, e fez proibições ao uso de brincos e tiaras pelos jogadores.

Numa polêmica entrevista à revista "El Gráfico", avisou que jamais convocaria um atleta homossexual. Mas nenhum tema foi tão controverso quanto o veto ao cabelo comprido na equipe.

Tão tradicional no futebol argentino dos anos 1970 quanto as teias de papel higiênico que cobriam os gramados antes de cada partida, as cabeleiras não eram uma mera questão de estética.

Era uma forma de reagir ao poder militar, simbolizando a rebeldia frente ao brutal regime dos generais. Era também representativo da paixão pelo rock, gênero mais ouvido no país.

A geração que iria à Copa de 1998 cresceu com ídolos cabeludos e adorava imitá-los no visual. Ao mexer com esse tema, Passarella havia se enroscado —ainda mais depois de oferecer uma justificativa nada convincente para defender sua decisão:

"Os cabelos longos são perigosos porque os jogadores se distraem durante as partidas, já que ficam mexendo neles toda hora".

Em nome da oportunidade de defender as cores da Argentina, vários cabeludos acataram a imposição e amargaram uma visita indesejada ao barbeiro, como Juan Pablo Sorín, Eduardo Coudet, Ariel Ortega e até Gabriel Batistuta e sua juba quase leonina.

Dois dos maiores talentos argentinos da época, entretanto, não engoliram a ordem de Passarella: Fernando Redondo e Claudio Caniggia. Esse atrito transformou o assunto em debate nacional.

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Daniel Passarella dá entrevista como técnico do River Plate
Imagem: Divulgação River Plate

Corta ou não?

"E você? Cortaria ou não?"

Essa era a pergunta mais ouvida nas ruas de Buenos Aires. Até uma das figuras mais excêntricas da vida argentina nos anos 1990, o então presidente Carlos Saúl Menem, entrou na conversa, de acordo com o livro "Copa Loca" (editora Garoa Livros), que conta, em português, a participação da azul e branca nos Mundiais.

Ele mesmo portador de peculiares suíças grisalhas, Menem afirmou, ao comentar o impasse com Redondo: "A decisão de Passarella é tática. O cabelo é despiste".

Menem tinha certa razão. De fato, por mais que a proibição aos cabeludos tivesse marcado a era Passarella na seleção, é importante entender que aquela discussão fazia parte de um tema bem mais amplo.

O que o técnico esperava conseguir era disciplina e obediência absolutas.

Batistuta, afinal, continuou sendo o dono da camisa 9 com cabelos consideravelmente longos —uma aparada nas pontas para contemplar a vontade do chefe e pronto.

O próprio Caniggia acabaria sendo chamado, também com suas inconfundíveis madeixas, depois de se acertar com o comandante, que fez questão de insistir com o corte para levá-lo à Copa do Mundo.

Fernando Redondo foi exceção, o único a não se curvar aos caprichos de Passarella —que, além de cobrar um penteado mais conservador, queria fazê-lo jogar numa posição de que o volante não gostava.

Chegaram a conversar cara a cara, mas a situação só se complicou.

"Ele falou uma coisa para mim e disse outra ao se manifestar em público. Mentiu e depois afirmou que era eu o mentiroso. Passarella não me inspira confiança. É capaz de qualquer coisa."

Em fase exuberante no Real Madrid, Redondo, então no auge, com 28 anos, foi campeão da Europa pelo Real Madrid a poucas semanas da Copa, mas assistiu às partidas do Mundial no sofá de casa.

"Por culpa dele vou perder algo muito importante. Mas não me arrependo. Não foi fácil, mas estou tranquilo. Queria o Mundial, mas não assim, a qualquer preço."

Além do volante, Norberto Scoponi, que parecia levar uma samambaia à cabeça, também abriu mão da viagem à França.

À procura de um terceiro goleiro para sua lista de convocados, Passarella pediu ao assistente Américo Gallego que consultasse o arqueiro do Newell's Old Boys sobre a possibilidade de encarar a tesoura.

De novo, estava implícita a cobrança de um voto de obediência total ao treinador. O goleiro respondeu o seguinte a Gallego: "Só corto meu cabelo se você emagrecer 30 quilos".

No início do embargo às cabeleiras, Caniggia não apenas mantinha seus longos fios loiros como ainda provocava o técnico. O atacante atravessava um momento iluminado no Boca Juniors.

Atormentava as defesas, cansava de fazer gols e debochava: "Estou jogando mal, não? O cabelo me atrapalha. Estou cego". Caniggia nem sequer cogitava se submeter à tosa.

"Isso é um absurdo. Não posso concordar com exigências desse tipo. Sou como Sansão", dizia.

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Maradona e Caniggia
Imagem: Twitter/Caniggia

Tragédia

Mas uma tragédia pessoal que abateu Passarella viria a aproximar os dois, além de provocar uma trégua no permanente conflito entre o técnico e Maradona.

Companheiro de Caniggia no Boca, Diego já não tinha o cabelo farto do início de carreira, quando ganhou um de seus vários apelidos: "Pelusa", pela cabeleira.

Ainda assim, arrumou um jeito de alfinetar o desafeto: além de criticar repetidamente a ausência do amigo na seleção, tingiu uma faixa amarela no lado direito da cabeça como sinal de protesto.

Foi quando Passarella sofreu um dos maiores baques de sua vida: a perda do filho Sebastián, de 18 anos, morto ao ter sua caminhonete abalroada por um trem da linha Mitre, num cruzamento com os trilhos em Béccar, região metropolitana de Buenos Aires, em novembro de 1995.

Maradona removeu as mechas loiras e baixou o tom, e Caniggia decidiu prestar solidariedade ao técnico. Passados alguns meses do desastre, o atacante foi visitar Passarella em sua casa em Lomas de San Isidro.

Conversaram não apenas sobre futebol e seleção, mas também sobre a vida —a perda do filho havia levado Passarella a baixar um pouco a guarda.

A questão dos cabelos mal foi abordada. Caniggia, com o penteado de sempre, voltaria a ser convocado pouco depois e faria parte da equipe até semanas antes do Mundial, quando uma lesão o tirou do torneio.

A Argentina foi eliminada pela Holanda nas quartas de final da Copa de 1998. Ganhando, enfrentaria o Brasil de Zagallo e Ronaldo nas semifinais.

Passarella, depois da eliminação naquela Copa, chegou a treinar o Corinthians em 2005, mas ficou marcado mesmo por ter sido o presidente do River Plate quando o gigante portenho foi rebaixado, em 2011.