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Tales Torraga

REPORTAGEM

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Como o desconhecido Scaloni virou o melhor técnico da história da Argentina

Lionel Scaloni, técnico da Argentina, abraça Messi após vitória sobre a Holanda - Carl Recine/Reuters
Lionel Scaloni, técnico da Argentina, abraça Messi após vitória sobre a Holanda Imagem: Carl Recine/Reuters

Colunista do UOL

17/06/2023 09h32

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Os números impressionam. Até aqui, o técnico Lionel Scaloni comandou a seleção argentina em exatos 60 jogos, incluindo o firme 2 a 0 na Austrália anteontem (15) em Pequim.

Seu currículo mostra 41 vitórias, 14 empates e 5 derrotas, com 129 gols marcados e só 34 sofridos.

É chamativo: 4 das suas 5 derrotas aconteceram nos primeiros 14 jogos de trabalho, e a Argentina tem hoje um impressionante retrospecto de sair perdedora uma única vez em 46 partidas (foi batida apenas pela Arábia Saudita na estreia da Copa do Mundo).

Nos números, nenhum dos históricos técnicos da seleção argentina chega perto do aproveitamento de pontos de Scaloni.

Enquanto o atual treinador ganhador 76,1% dos pontos disputados, quem mais se aproxima é Marcelo "El Loco" Bielsa, com 72,9% (85 jogos entre 1998 e 2004, com 56 vitórias, 18 empates e 11 derrotas).

César Luis Menotti, campeão mundial em 1978, tem 61,5% (78 jogos, 42 vitórias, 18 empates e 18 derrotas). Carlos Bilardo, comandante de Diego Maradona na Copa de 1986, conquistou 47,1% (77 jogos, 27 vitórias, 28 empates e 22 derrotas).

Falar de Scaloni é falar do atual campeão da Copa do Mundo e da Copa América, também atual líder do ranking da Fifa e melhor técnico do mundo de 2022, segundo a premiação da entidade.

E é falar também do treinador com melhor aproveitamento da história da seleção argentina, badalada pela classe universal de seus profissionais ao redor do gramado.

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Jorge Sampaoli conversa com o auxiliar Sebastián Beccacece durante treino da seleção da Argentina
Imagem: Marcelo Endelli/Getty Images

Aluno de Sampaoli

O ano era 2018.

Eliminada pela França ainda nas oitavas de final da Copa do Mundo da Rússia, a seleção argentina parecia à beira do colapso.
O então técnico Jorge Sampaoli rompera relações com o assistente Sebastián Beccacece ainda durante a Copa.

Depois do Mundial, vieram as demissões.

Primeiro, a de Beccacece, que pediu para sair, e depois a de Sampaoli, dispensado pela AFA (Associação Argentina de Futebol), mesmo com contrato até a Copa do Mundo de 2022.

Para se livrar dele, a associação desembolsou o equivalente a R$ 7,75 milhões. E o escolhido para seu lugar foi um interino desconhecido até para os argentinos.

Lionel Scaloni, então com 40 anos, era um dos assistentes de Sampaoli e aceitou o cargo, mesmo com forte rejeição no país, que tradicionalmente preza pela continuidade ou dissolução total nas comissões técnicas.

É raro demais que alguém siga quando os demais saem.

Scaloni não se abalou e fortaleceu suas "costas quentes".

Foi rodeado de assistentes com grande vivência na seleção argentina, como os históricos ex-jogadores Pablo Aimar, Walter Samuel e Roberto Ayala.

Balançou depois de perder para o Brasil e ser eliminado na Copa América de 2019, mas contou com um bom arranque nas Eliminatórias de 2020 para seguir no cargo, porque a imprensa argentina aproveitou cada deslize para clamar por "medalhões" do talhe de Diego Simeone, Ricardo Gareca e Marcelo Gallardo.

A AFA, bem discretamente, estudou a troca por alguém mais gabaritado, mas Scaloni recebeu um voto de confiança e não desperdiçou.

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Lionel Scaloni, técnico da Argentina na conquista da Copa do Mundo 2022
Imagem: REUTERS/Hannah Mckay

Nunca antes na história

Revertendo a pressão, Scaloni emplacou uma série invicta que chegou a 36 jogos (a maior da história da Argentina), foi campeão da Copa América de 2021, batendo o Brasil em pleno Maracanã, e levantou o primeiro título mundial argentino em 36 anos, conquistando também, ufa!, a histórica, épica e surreal Copa do Mundo do Qatar.

(Como se precisasse de algo mais, somou, ainda, o troféu da Finalíssima Uefa-Conmebol, contra a Itália, campeã da Eurocopa, em Wembley, em junho.)

Criaram até um apelido para sua seleção, a "Scaloneta", transporte coletivo semelhante a uma van.

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Scaloni se emocionou bastante com o elenco da Argentina
Imagem: GettyImages

Por que ele?

Uma das perguntas mais repetidas por quem não acompanha a seleção argentina em detalhes é a escolha por Scaloni, um novato desconhecido, enquanto os treinadores do país são destaque no mundo todo.

Para citar só três exemplos, Diego Simeone, Marcelo "Loco" Bielsa e Mauricio Pochettino marcam presença constante nas grandes ligas europeias, sem falar dos expoentes na América do Sul, como Gallardo (no River Plate), Gareca (no Peru), José Pékerman (na Colômbia) e tantos outros.

O primeiro motivo que fez a AFA apostar em Scaloni foi o financeiro.

Técnico em formação, em sua primeira experiência como treinador principal, ele custou pouco aos cofres da entidade.

Ao renovar seu contrato, em 2020, seu salário por temporada era estimado em US$ 500 mil, segundo o jornal francês "L'Equipe". Tite, por exemplo, recebia na seleção brasileira US$ 3,9 milhões por ano (R$ 20,46 milhões), de acordo com a publicação.

O contrato de Scaloni foi renovado no começo de 2023, agora valendo até a Copa de 2026.

O jornal "Clarín" estimou que seu novo compromisso lhe destina US$ 2,6 milhões por temporada, ainda distante do citado valor de Tite e do técnico com maior salário da Copa, o alemão Hansi Flick, com US$ 6,6 milhões.

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Scaloni comemora título na Copa: "Acima de tudo que podíamos imaginar"
Imagem: GettyImages

Ganhou o grupo

O bom ambiente gerado por Scaloni também foi determinante ao apostar em sua continuidade.

Muito próximo aos jogadores —era atleta, por exemplo, na primeira Copa disputada por Lionel Messi, em 2006 —, Scaloni é considerado como um treinador extremamente aplicado em todas as facetas do seu ofício.

Tem capacidade para armar equipes, fazer alterações de uma partida para outra, mexer com competência durante o próprio jogo e conseguir fazer tudo sem ferir o complicado ego dos jogadores argentinos, tradicionalmente traídos pelos nervos na seleção que se caracteriza pela paixão e pelas explosões emocionais.

Chamado de "Égua" em sua época de jogador —dava coices como um combativo lateral direito—, Scaloni mostrou que evoluiu e não precisa dar patadas para ser respeitado.

E isso em um dos cargos mais penosos do futebol mundial, aquele que, para muitos, esgotou Alejandro Sabella e Edgardo "Patón" Bauza, que depois da seleção passaram a conviver com graves problemas de saúde.

Quem não teve problemas foi Messi. A sua melhor Copa de todos os tempos foi sinal do bom ambiente da seleção e da coesão que existe ao seu redor.

Foi sob o comando de Scaloni que Messi, um dos maiores gênios da história do futebol, alcançou seu melhor rendimento no principal evento do planeta. E isso diz muito.