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Voltar à escola resgatou minha autoestima após 19 anos de futebol

Tinga, ex-jogador, é empresário e palestrante em Porto Alegre - Divulgação
Tinga, ex-jogador, é empresário e palestrante em Porto Alegre Imagem: Divulgação

09/07/2020 04h00

Eu tinha 38 anos quando encerrei a carreira em 2015. Deixei pra trás 19 anos no futebol, dois títulos da Libertadores, dois da Copa do Brasil e dois do Campeonato Brasileiro. Aposentado, eu ainda teria um grande desafio pela frente: os dois anos que passei em Porto Alegre, estudando no supletivo EJA (Educação de Jovens e Adultos).

Como a maioria dos jogadores de futebol do Brasil, eu parei de estudar muito cedo e fui apenas até a 5ª série do Ensino Fundamental, antes de o esporte virar o principal objetivo da minha vida.

No futebol é quase impossível estudar, ainda mais na minha época, quando não havia estudo à distância. Mesmo os clubes que exigem dos atletas da base presença na escola dificultam o aproveitamento desses estudantes. Os atletas-alunos têm viagens para competir e precisam treinar de manhã e de tarde, o que restringe ou mesmo impede um bom desempenho na sala de aula.

Eu senti a falta de estudo em alguns momentos da vida. Ao todo, eu passei por sete clubes e morei em quatro países, e às vezes senti dificuldade em entender as entrelinhas de um contrato ou me expressar em certos ambientes.

Enquanto jogador, eu também era empresário: tinha participações em negócios em Gramado e tocava uma agência de turismo. Depois de encerrar a carreira, passei a entender que precisava buscar alternativas e desafios.

Precisei de coragem para voltar ao banco da escola, e essa decisão representou pra mim uma mistura de sentimentos: ao mesmo tempo que eu me sentia feliz de estar ali, eu tive alguns constrangimentos.

Tinga - Divulgação - Divulgação
Imagem: Divulgação

Em Porto Alegre, sou muito respeitado pelas duas torcidas da cidade, porque joguei e fui campeão tanto pelo Grêmio, quanto pelo Internacional.

Lembro que no caminho de 50 metros entre o meu carro e a escola, no centro da cidade, e as pessoas me paravam e diziam não acreditar que era eu mesmo que estava ali. Elas me pediam para voltar a jogar e faziam cara de perplexidade ao descobrirem que eu estava ali para aprender.

Para meus colegas de turma, era como se um ET tivesse pousado sua espaçonave no centro da sala do supletivo.

Uma coisa me marcou muito nessa época: o prazer que os professores sentiam quando eu fazia um exercício e eles tinham a certeza de que eu estava aprendendo algo novo. É um prazer puro, genuíno, o mesmo de um jogador na estreia ou na final de um campeonato, de alguém que ama a sua profissão. Passei a respeitar muito mais os professores do país.

Mas depois de dois anos lidando com assuntos que não via há mais de duas décadas, eu aprendi que a educação brasileira precisa mudar bastante. Voltei à escola achando que ia ter aulas com temas mais próximos da realidade de um cidadão comum, como a organização do Estado brasileiro (o papel de um senador e de um deputado, por exemplo), ou a forma como os impostos são cobrados e devem ser pagos, ou sobre o que significa o PIB, ou a diferença entre pessoa física e pessoa jurídica.

Em vez disso, acabei tendo que assistir aulas sobre coisas muito distantes do meu dia a dia. Terminei o primeiro e o segundo ano do Ensino Médio, mas não quis começar o terceiro. Mesmo assim, ter voltado pra escola mudou minha vida pra melhor.

Um jogador de futebol campeão tende a achar que é um herói, que todos os seus problemas vão se resolver ganhando campeonatos. Sua carreira e seu vocabulário acabam se limitando à bolha do esporte - às táticas, aos treinos, às entrevistas repetitivas à imprensa.

Ao sentar naquela cadeira, eu descobri a importância de parar e ouvir o que um professor tem a dizer e, quem sabe, expandir um pouco o universo possível. Furar a bolha. Depois dali, me senti muito mais preparado para fazer outros cursos, aprender outras coisas.

Fiz cursos de gestão de pessoas, gestão esportiva, empreendedorismo, línguas. Recuperei a autoestima depois de 19 anos de futebol.

Tinga bus - Divulgação - Divulgação
Tinga, ex-jogador, entrega refeições a moradores de rua em Porto Alegre
Imagem: Divulgação

A experiência me ajudou, um tempo depois, a começar um dos projetos de que eu mais me orgulho. Desde o começo de 2020, eu e um grupo de amigos resolvemos levar um ônibus para alguns pontos de Porto Alegre. Esse ônibus tem uma cozinha. A ideia é permitir às pessoas pelo menos uma refeição digna, e gratuita, por dia.

O principal público-alvo são moradores de rua, que geralmente fazem suas refeições no chão. Com esse ônibus, eles conseguem se sentar, apoiar o prato em uma mesa e comer dignamente.

Antes do início das medidas de restrição pelo novo coronavírus, nós distribuímos 100 refeições diárias. Agora nosso ônibus não pode mais reunir as pessoas, mas continuamos distribuindo alimentos. Com a crise econômica, o desemprego e a fome, entregamos 200 marmitas diárias.

Mas esse ônibus tem um diferencial: uma biblioteca acoplada. Enquanto as pessoas esperam o prato ficar pronto, podem pegar um livro, ler ali mesmo ou levar embora. Eu sei a importância que a leitura e o conhecimento podem ter na vida de uma pessoa. Espero que um dia o estudo e o conhecimento abram as janelas da vida de alguém, como abriram as minhas.

Acredito que esse pode ser um pequeno e necessário passo para construirmos um país melhor: oferecer aos mais carentes dignidade, carinho, um prato de comida e livros. Muitos livros.