GP da Áustria deu a receita; o difícil vai ser repetir os ingredientes
Magnífico, o Grande Prêmio da Áustria revelou a receita de uma corrida de Fórmula 1 perfeita: elimine-se a Mercedes de Lewis Hamilton com uma troca de uma peça da carenagem na 30ª volta que o transforme em mero figurante; em seguida, submeta-se o motor da Mercedes de Valtteri Bottas a temperaturas que o obrigue a desacelerar até 600 metros antes de cada curva.
Adicione-se uma asa dianteira nova à Red Bull combinada com a maior agressividade do novo motor Honda e acrescentem-se porções a gosto de genialidade a Max Verstappen. Cubra-se a mistura com camadas superpostas de holandeses apaixonados, todos trajando o alaranjado da bandeira com que o príncipe William de Orange liderou a guerra da independência contra a Espanha. Mexa-se bem, leve-se ao forno por uma hora e 22 minutos e pronto. Para ser devidamente degustada, a rara iguaria deve ser servida extremamente quente, a ponto de queimar os dedos. A mesa deve ser disposta, de forma imprescindível, no sopé de verdes colinas, a mais de 600 metros de altitude.
Com essa alquimia, nunca se terá domingos monótonos. Mas, muita atenção, tais ingredientes são absolutamente indispensáveis. Sem eles, em sua plenitude, as Mercedes jamais sucumbirão à inigualável superioridade aerodinâmica dos carros desenhados por Adrian Newey e à inquestionável capacidade de Verstappen. Como ocorreu na Áustria, onde exigências extremas de refrigeração impuseram às máquinas alemãs se deformar até não serem mais reconhecíveis.
Também nem sempre se terá à disposição comissários esportivos com bom senso para ouvir os envolvidos em situações críticas nem com a calma necessária para tomarem decisões plausíveis. Isso tudo só ocorre uma vez por ano, lá pelos lados da acalorada Spielberg.
Não, infelizmente, nem sempre a Fórmula 1 terá um domingo como esse da Áustria. Tão bom que deixou a esperança de que, enfim, a Ferrari tenha se reencontrado - ainda que, também infelizmente, tenha cometido erros que custaram a vitória a Charles Leclerc e o terceiro - ou até o segundo - lugar a Sebastian Vettel.
UMA PISTA À MODA ANTIGA
Com áreas de escape à moda antiga e sobre zebras pintadas de amarelo para ressaltar os riscos que representam, ambas prontas para punir severamente erros que nas pistas ditas modernas não passam de pecadilhos, o circuito hoje denominado Red Bull Ring foi o palco da redenção de um ano em que a Fórmula 1 esteve sempre abaixo da expectativa.
O espetáculo começou a tomar forma nos treinos da sexta-feira. A Mercedes foi batida pela maior altitude, que impactou seus carros com sérias dificuldades. O ar rarefeito exigia a abertura de maiores tomadas de ar, verdadeiros rombos nas formas perfeitas, justas e compactas que lhe proporcionam, em outras pistas, pressão aerodinâmica hegemônica.
Também fez falta aos motores alemães a potência costumeira, principalmente nesta pista, onde a aceleração condiciona os resultados. Subidas e descidas, curvas curtas e relativamente lentas precedendo retas longas, um percurso de menos de 4.500 metros coberto em pouco mais de um minuto formavam um cenário mais afeito aos carros da Ferrari que os da Mercedes. Da Red Bull ainda nem se cogitava.
Havia ainda enorme preocupação com os turbocompressores, obrigados a trabalhar acima das 100.000 rotações por minuto habituais em outras pistas para superar a escassez do ar. Para isso, a Honda contava com a introdução de palhetas de cristal e formas que aumentam tanto a durabilidade quanto o desempenho do turbo. Uma inovação inspirada nas turbinas do HF120, o jato leve e eficiente fabricado pela gigantesca montadora japonesa.
Como indicavam os treinos livres, a Ferrari triunfou na prova de classificação. Mesmo em segundo, Hamilton ficou a mais de 250 milésimos da principal Ferrari; a outra, de Sebastian Vettel, deixou de ser ameaça quando a ruptura de uma linha de ar comprimido impediu o tetracampeão alemão de participar da fase decisiva, o Q3, relegando-o ao 10º lugar.
AS REGRAS, COMO SEMPRE CONFUSAS
Ou nono, já que as muitas punições expuseram mais uma vez o lado caricato das regras. Hamilton, por exemplo, foi punido com perda de três posições no grid por bloquear uma volta voadora de Kimi Raikkonnen. Assim, cairia para quinto, mas Kevin Magnussen, que havia obtido um inesperadíssimo quinto tempo no Q3, perdeu cinco posições por trocar a caixa de câmbio antes do limite mínimo de por cinco corridas. Por isso, caiu para 10º, promovendo Hamilton para quarto.
Ora, se a punição de Magnussen era anterior à de Hamilton, e o dinamarquês caiu para 10º, todos que estavam atrás do dinamarquês deveriam ganhar uma posição. Só então se aplicaria a perda de três lugares a Hamilton, que largaria em quinto - em quarto ficaria Lando Norris, autor do sexto tempo no Q3, que se beneficiaria das duas punições. Mas não foi assim que as coisas se desenrolaram.
Certo ou errado, havia naquele grid a mais jovem primeira fila da história da F1. Em primeiro, pela segunda vez na vida, o monegasco Charles Leclerc, nascido no dia 16 de outubro de 1997. A seu lado, pela sexta vez na segunda posição mas ainda sem a aguardada primeira pole da carreira, Max Verstappen, nascido 16 dias antes, no dia 16 de setembro, ambos com 21 anos.
O contraste maior estava na terceira fila, uma atrás da ocupada por Bottas e Hamilton: com 19 anos, Norris era o quinto; com 39, o piloto mais velho do grid, o finlandês Kimi Raikkonen.
Uma largada perfeita deu a certeza de que só mesmo um fato imprevisível tiraria a vitória de Leclerc. Verstappen caíra para sétimo, vítima de um mapeamento excessivamente agressiva da embreagem. Bottas passou para segundo e Norris tomou o terceiro lugar de Hamilton, um feito breve mas consagrador.
Pouco atrás, um Kimi rejuvenescido, Vettel, Verstappen, seu companheiro Pierre Gasly, que não contava com a asa dianteira nova, Antonio Giovinazzi, que ressaltou a evolução dos Alfa Romeo ao obter o oitavo lugar no grid, e Magnussen.
Deles, apenas as Mercedes e o Red Bull de Verstappen não estavam com pneus macios. Por isso, causou surpresa a parada prematura de Bottas para trocar os pneus médios com que largara, mais duradouros. Ele parou na 21ª volta, antes dos pilotos que largaram com os macios.
AÇÕES E REAÇÕES, NEM SEMPRE ACERTADAS
A Ferrari reagiu imediatamente, chamando Vettel para trocar seus macios pelos duros, como fizera o finlandês. Uma medida que, mais tarde, se verificaria precipitada, já que os pneus do alemão ainda estavam em ótimo estado. Para agravar a situação, a troca de Vettel durou lentíssimos 6s1, a de Bottas 3s5, também não muito rápida, mas ainda aceitável. Na volta seguinte, a Ferrari chamou Leclerc para a troca, apesar de, a exemplo de Vettel, ele manter um ritmo melhor que o de Bottas com os pneus recém-trocados.
O diretor da Ferrari, Mattia Binotto, esclareceria mais tarde que o objetivo da troca de Leclerc era marcar Bottas. A de Vettel, porém, ficou sem explicação; até aquele momento, o alemão era em média quatro décimos por volta mais rápido que as duas Mercedes. Uma vantagem jogada fora pela inadequação tática e pela lerdeza da troca, segundo Binotto causada por falha da rede interna de comunicação da escuderia vermelha. Os mecânicos teriam se surpreendido com a entrada de Vettel.
Foi em cima desses erros que Verstappen construiu sua ascensão. Mesmo andando muito rápido, e com um pneu dianteiro deformado por um bloqueio de freios nas voltas iniciais, ele só entrou para a troca na 31ª volta, nove a mais do que Leclerc. Ambos adotaram pneus duros, mas enquanto os do holandês eram zero quilômetro, os do monegasco já tinham duas voltas nos treinos. Essas 11 voltas seriam um fator a mais no resultado final.
Ao voltar à pista, Verstappen estava 13 segundos atrás de Leclerc, e como tinha Vettel e Bottas entre ele e o líder, ainda não era visto como ameaça real. Na 50ª volta, porém, o quadro ganhou mais nitidez: o holandês passou por Vettel, que foi imediatamente chamado aos boxes para colocar pneus macios e tentar superar Bottas, cujas dificuldades já eram aparentes.
Após corrigir uma perda momentânea de potência causada por uma falha no sensor do escapamento, Verstappen não enfrentou resistência para tomar o segundo lugar de Bottas. Era a 56ª volta, e Leclerc, cinco segundos à frente, girava de quatro a cinco décimos mais lento que o Red Bull. Premido pelo avanço de Verstappen, Leclerc acionou todos os recursos de sua Ferrari e na 58ª volta fez seu melhor tempo, 1min07s994. De nada adiantou, o holandês havia marcado 1min07s766 no mesmíssimo momento.
Três voltas mais tarde, ele marcaria a melhor volta da corrida, 1min07s475. Leclerc já não conseguia rodar abaixo de 1min08s, e a cinco voltas do final, o Red Bull entrou na zona de abertura da asa traseira, que reduz a resistência do ar e permite ganhos de quase 10 quilômetros por hora na velocidade máxima. A diferença entre eles era inferior a um segundo.
Na 68ª volta, a primeira tentativa. Os dois carros percorreram a curva Três lado a lado e, na saída, o motor Ferrari manteve Leclerc em primeiro. Na passagem seguinte, Verstappen freou ainda mais tarde e Leclerc se manteve por fora. Na tangência, o Red Bull estava à frente, mas Leclerc se colocou ao lado do adversário, na linha externa. Os dois tocaram as rodas dianteiras e a Ferrari saiu da pista, perdendo velocidade e, junto, o primeiro lugar.
"Ele me empurrou para fora", reclamou Leclerc. Mais tarde, diria que "dificilmente o resultado seria diferente, mas não é assim que se ultrapassa". "Se não for assim, não tem sentido correr na Fórmula 1, melhor ficar em casa", rebateu Verstappen. Depois de ouvir as duas partes, os comissários deram o veredito: incidente de corrida. Consideraram que ambos pilotos tinham se colocado espontaneamente nas posições que julgaram corretas, nada nem ninguém a reprovar.
UM DUELO PARA OS PRÓXIMOS ANOS
O mundo respirou aliviado. Salvava-se assim a primeira vitória da Honda desde 2006, quando Jenson Button venceu o GP do Japão. Salvava-se principalmente a primeira disputa direta de dois pilotos que, a partir daquelas voltas finais, se candidataram a uma rivalidade comparável à de Nelson Piquet e Nigel Mansell, à de Ayrton Senna e Alain Prost ou à de Gilles Villeneuve e René Arnoux no memorável GP da França de 1979, dentro e fora da pista de Dijon. Um duelo que pode resgatar a F1 do tédio que vinha marcando o ano.
Mesmo que, dificilmente, se consiga reunir no restante da temporada os mesmos fatores que fizeram deste Grande Prêmio um dos melhores dos últimos anos, o que se viu na pista austríaca mostrou ao mundo que a categoria tem sim salvação. Basta rever as regras e, acima de tudo, procedimentos quase nunca compatíveis com o espírito do automobilismo.
O resto, pode deixar por conta dos pilotos. Eles sabem o que estão fazendo.
Um destaque final para a evolução da McLaren. Lando Norris foi o sexto colocado, atrás apenas de um Red Bull, duas Ferraris e duas Mercedes, e já aparece na oitava colocação do campeonato. Seu companheiro Carlos Sainz largou na última fila, chegou em oitavo e é o sétimo no campeonato. Juntos, eles levaram a equipe à quarta colocação no mundial de construtores, 20 pontos à frente da Renault, que lhe fornece motores.
Por seu lado, a Mercedes teve seu pior dia desde... o GP da Áustria do ano passado, em que nem Hamilton nem Bottas chegaram ao fim da corrida. Desta vez, Bottas foi um terceiro esmaecido pela performance pobre que lhe permitiu fazer apenas a sétima volta mais rápida de toda a corrida. Hamilton fez a quinta, (a mais de meio segundo do recorde estabelecido por Verstappen) e ainda ficou fora do pódio pela primeira vez no ano.
A Ferrari tirou do mesmíssimo carro que decepcionou na França uma evolução que ainda não sabe a que atribuir. Ao calor que neutralizou a dificuldade no aquecimento dos pneus? À nova filosofia de acerto dos carros? À queda vertical da Mercedes? Respostas no próximo capítulo, daqui a duas semanas em Silverstone - onde, por sinal, a Ferrari esmagou a Mercedes em 2018...
Ressalte-se ainda que esta foi a sétima vez nas 1006 provas da Fórmula 1 que todos carros que largaram chegaram à bandeirada final. Se bem que, no GP dos Estados Unidos de 2005, apenas seis carros largaram em consequência dos problemas de pneus que os demais sofreram.
SETTE CÂMARA DIZ A QUE VEIO; PIQUET PONTUA EM UM DIA E RODA NO OUTRO
O fim de semana foi especialmente positivo para Sérgio Sette Câmara, o único brasileiro na F2 neste ano. Depois de bater na traseira de seu companheiro na equipe DAMS, o canadense Nicolas Latifi, e fazê-lo rodar, o piloto de Belo Horizonte se redimiu do erro com o terceiro lugar, com direito a dois pontos de bônus por fazer a volta mais rápida. A vitória ficou com o japonês Nobuharo Matsushita, seguido pelo italiano Luca Ghiotto.
Punido pela batida, Sérgio caiu para quinto e ocupou o quarto lugar no grid invertido da prova do domingo. De lá, ele saiu para a primeira vitória do ano, a segunda na sua história na F2, seguido por Ghiotto e pelo holandês Nick de Vries, novo líder do torneio. Agora, Sérgio ocupa o terceiro lugar no campeonato - se ele fechar o ano até o quarto, terá direito à Super Licença, condição sine qua non para ter acesso à F1.
Na F3, Pedro Piquet teve um fim de semana de altos e baixos. Na primeira corrida, largou em sétimo e chegou em sexto. Terceiro no grid da segunda, foi vítima do excesso de vontade e rodou ainda na primeira volta. Na recuperação que o levou ao 15º lugar na bandeirada, Pedro marcou a segunda melhor volta da prova, o que deixa um sabor agridoce: o doce ao confirmar que tem velocidade para chegar ao pódio com frequência; o amargo pela ótima chance desperdiçada. No fim de semana, Pedro caiu de quinto para sexto no campeonato.
Todos esses assuntos serão abordados por mim e pelo Cassio Politi na próxima edição do podcast Rádio Paddock. Ele pode ser acessado a partir das 11 horas de todas quartas-feiras no Spotify e em vários outros agregadores.
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