Na Hungria, a consagração de dois gênios
O que se viu neste domingo na Hungria deve ficar registrado como a receita do grande prêmio ideal, um exemplo inquestionável de tudo que uma corrida de Fórmula 1 precisa ter. Ousadia, altíssimo nível de pilotagem, dois pilotos lutando de igual para igual e a genialidade de uma estratégia capaz de virar o jogo sem estragar o espetáculo.
O Grande Prêmio da Hungria foi espetacular desde as provas de classificação. Uma pole position um tanto inesperada de Max Verstappen, nem por isso menos brilhante. Já se esperava que a agilidade dos carros da Red Bull, soberbamente idealizados pelo consagrado projetista inglês Adrian Newey, compensasse a potência ainda inferior dos motores Honda quando comparados à desenvolvida pelos Mercedes e Ferrari. Ainda assim, pouquíssimos apostariam na supremacia de Verstappen, mesmo ele tendo obtido a primeira pole da carreira.
Na corrida, mais uma vez o motor Honda e a boa tração dos carros da Red Bull permitiram ao jovem holandês largar bem e vencer a arrancada rumo à Curva Um, trajeto longo o suficiente para a esperada reação dos Mercedes - que acabou não acontecendo. Ela veio, mas não o bastante para tirar Verstappen da liderança. Ao contrário, trabalhou contra Valtteri Bottas, que se viu assediado por seu companheiro de equipe e sofreu o primeiro esbarrão na roda dianteira direita ao mesmo tempo em que perdia o segundo lugar.
Ainda em consequência dessa trapalhada, ele foi superado metros depois pela Ferrari de Charles Leclerc, que aumentou o drama do finlandês ao submetê-lo a novo esbarrão na mesma roda, dessa vez danificando a asa da Mercedes e eliminando de vez qualquer chance de uma necessária recuperação de imagem para Bottas dentro de sua equipe.
Alheio a tudo que ocorria atrás de si, Verstappen mostrou a que vinha. Na segunda volta ele já tinha mais de dois segundos de vantagem sobre Hamilton, e dali iniciou-se o que seria uma das mais empolgantes batalhas entre os dois principais pilotos da atualidade, dois pilotos que já têm seus nomes garantidos na galeria dos super-heróis da Fórmula 1.
O peso de regras inadequadas
Obrigados - e limitados - pelas regras a largarem com os mesmíssimos pneus usados para garantir a passagem da segunda para a terceira fase da prova de classificação, Hamilton e Verstappen tinham em seus carros os pneus médios, todos com exatamente a mesma quilometragem - mais iguais impossível. E nessa condição, Hamilton deu os primeiros sinais de que podia se aproximar do adversário quando bem entendesse.
Foi o que fez a partir da 15ª volta, reduzindo a diferença que os separava em mais de um segundo. Isso levou a Red Bull a trazer seu piloto para os boxes na 25ª volta para a primeira troca de pneus. Mais tarde, ela se revelaria insuficiente, apesar de coerente com a projeção da Pirelli, fornecedora exclusiva de pneus para a Fórmula 1. A segunda ocorreu após ser superado, apenas para instalar pneus macios para conquistar o ponto dado ao autor da volta mais rápida.
Os engenheiros da Pirelli calculam, prova a prova, qual a estratégia mais rápida para se cobrir a distância integral de cada corrida. Para a Hungria, a mais eficiente seria largar com pneus macios e trocá-los pelos duros entre as voltas 25 e 30. A segunda mais eficiente seria largar com os pneus médios (opção tomada pela Mercedes, Red Bull e Ferrari desde a já citada segunda fase do treino de classificação para fazer um primeiro turno de corrida mais longo) e trocá-los pelos duros entre as voltas 30 e 34. Essa era a única possibilidade para quem tinha largado com os médios (caso da Mercedes, Red Bull e Ferrari) e pretendia fazer apenas uma troca.
O que passou despercebido pelo público, mas não pelas outras equipes, foi a precocidade da troca de Verstappen, cinco voltas mais cedo do previsto pelos engenheiros da Pirelli. Foi a senha para que, instalado na primeira posição, Hamilton aumentasse seu ritmo e passasse a girar mais de meio segundo mais rápido. Quando Max voltou à pista, sua distância para o líder era de quase 19 segundos.
Hamilton parou na 31ª volta e também colocou pneus duros, indicando que o plano era igual ao de Verstappen: seguir com esses mesmos pneus até a bandeirada final. Quando retomou seu ritmo de corrida, estava a menos de cinco segundos do holandês, mas com pneus seis voltas mais novos - o que se configurava como uma vantagem valiosa na luta direta que se antecipava entre os dois protagonistas desse grande prêmio.
Primeiros movimentos
Ela logo se fez notar. Em três voltas, o inglês colocou sua Mercedes a menos de um segundo da Red Bull do líder - mas a capacidade de tirar o máximo das circunstâncias por parte de Verstappen se fez valer. A cada vez que Hamilton usava o sistema DRS - que abre a asa traseira para que o carro ganhe velocidade nas retas -, Verstappen encontrava um retardatário à frente que lhe proporcionava a mesma abertura.
Explica-se: pelas regras, o DRS só pode ser usado por um piloto se houver um carro à frente, (mesmo que seja um retardatário) mas no máximo a um segundo. Toda vez que Hamilton abria sua asa, Verstappen fazia o mesmo e conseguia passar pelo bem vindo retardatário sem desperdiçar um único décimo de segundo. Essa pilotagem perfeita lhe permitiu se manter à frente até a 38ª volta. Foi então que o duelo mano a mano atingiu seu melhor momento.
Na 38ª volta, Hamilton tentou a passagem clássica de Hungaroring: abriu sua asa na reta principal e se aproximou do holandês, reabriu na reta curta que leva à Dois, uma curva para a esquerda onde se realizam quase todas ultrapassagens naquele circuito. Como fazem todos, tomou a trajetória externa para, na saída, se posicionar por dentro para a curva Três, para a direita.
Max, então, reagiu deixando seu carro escorregar para a direita na saída da Dois, eliminando a brecha onde Hamilton planejava se colocar. Ao ver que ali não conseguiria se impor, Hamilton tentou surpreender o adversário na volta seguinte. De novo muito próximo do Red Bull, ele se colocou mais uma vez por fora na entrada da curva Quatro, também à esquerda mas em velocidade muito mais alta do que a da curva Dois.
Hamilton até chegou a tomar a ponta por talvez menos de um segundo, mas ao ver a reação decidida de Verstappen de não ceder um milímetro de pista, o inglês foi forçado a sair da pista e devolver a liderança momentânea. Naquelas duas voltas, acontecia, enfim, a luta que todos ansiavam por ver desde a chegada de Verstappen à F1 como um novo gênio, disposto a tudo para bater todo e qualquer adversário, mesmo que seja um pentacampeão comparável, justa ou injustamente, a ídolos como Senna, Clark e Fangio.
A abertura das hostilidades
Essa batalha, na verdade, começara de forma verbal já na chegada à Hungria, quando Verstappen disparou para a imprensa sua declaração de guerra. "Conheço pelo menos cinco ou seis pilotos que também teriam chegado ao pentacampeonato ou até ao hexa se tivessem sempre um carro superior, como Hamilton sempre teve. Ele é bom, mas é normal". Ciente de que as declarações para os jornalistas são parte importante do arsenal de um pretendente ao campeonato, Verstappen, na verdade, pedia armas iguais neste duelo.
Acostumado a essas pressões, Hamilton rebateu de voleio. "Sim, seria ótimo tê-lo como meu companheiro na Mercedes. É mais saboroso vencer os adversários em condições de igualdade. Tomara que estejamos juntos em 2020".
Imune às emoções e cioso de devolver à Mercedes a imagem de eficiência e perfeição abalada pela tragicômica parada de Hamilton nos boxes da Alemanha, no domingo anterior, o estrategista-chefe James Vowles decidiu que era hora de mudar a estratégia original de uma só parada.
Seguindo os aplicativos que movem seus supercomputadores, originados daqueles dedicados ao mercado financeiro e capazes de avaliar em segundos milhões de variáveis, os engenheiros que trabalham na sede da equipe, em Brackley (Inglaterra), concluíram que, mesmo perdendo cerca de 20 segundos, se impunha uma nova parada para trocar os pneus duros (já desgastados pelas freadas no limite e pela saída de pista poucas voltas antes) pelo último jogo zero quilômetro de médios, cuja vantagem de tempo por volta fora avaliado pela Pirelli em cinco décimos de segundo.
Foi uma decisão corajosa, mas inevitável. Naquele momento, Hamilton não conseguia reduzir a desvantagem, sempre superior a um segundo. Verstappen guiava de acordo com a necessidade. Quando a Mercedes melhorava o ritmo, o mesmo fazia a Red Bull. Já não havia tempo para esperar, a bandeirada se aproximava volta a volta.
O duelo mano a mano
Ao entrar nos boxes, ainda cético quanto ao acerto da mudança de planos, Hamilton estava 1s023 atrás do líder. Ao retornar, a diferença passara para 19s231, mas ainda restavam 21 voltas. A questão passava a ser quanto ele podia melhorar e quanto Verstappen perderia com o desgaste crescente de pneus.
Era a hora do que Hamilton chama de "hammer time", a hora do martelo. O que se viu foi, na verdade, a hora da perfeição. Girando imediatamente um, até dois segundos mais rápido a cada volta, a Mercedes número 44 estava em seu melhor momento: velocíssima, ágil e sob o comando de um piloto perfeito, imune aos erros, colocando o carro sempre na posição correta em uma pista de curvas encadeadas que não concedem perdão a um só milímetro errado.
Na frente, um Verstappen igualmente em momento de glória, mas sem as mesmas armas. Ao contrário, a cada volta a piora dos pneus se fazia sentir, obrigando-o a recorrer ao limite de sua imensurável habilidade para retardar ao máximo o ataque inexorável de um Hamilton a quem ele desafiara antes de se iniciarem as hostilidades. Se necessário, voltaria a usar toda a extensão da pista para tirar dele todas as brechas.
Uma derrota consagradora
Não deu. A quatro voltas da bandeirada, Hamilton reduziu a desvantagem de 1s024 para 0s382 de um só golpe. Na seguinte, entrou na reta dos boxes embutido na traseira da Red Bull, que dessa vez não tinha nenhum retardatário a quem recorrer. A asa traseira da Mercedes se abriu e a passagem foi irresistível. Vitória da Mercedes, vitória de Hamilton, vitória dos estrategistas chefiados por James Vowles.
Vitória também de um Max Verstappen perfeito, primoroso. Na volta seguinte à perda da ponta, ele instalou em seu carro pneus macios e estabeleceu o novo recorde de volta, 1min17s103, bem mais rápido do que fora Hamilton, que havia registrado 1min18s528 em sua perseguição ao holandês. Ambos bem mais rápidos que todos os outros pilotos, naquele momento reduzidos a figurantes, nenhum capaz de girar abaixo de 1min19s3 - também bem melhores do que Michael Schumacher, que em 2004 havia estabelecido o recorde que durou até domingo com 1min19s071.
Registre-se que, poucas horas antes, o herdeiro Mick Schumacher havia vencido sua primeira corrida na F2, um ótimo resultado para um estreante. Nessa mesma corrida o brasileiro Sérgio Sette Câmara voltou ao pódio com um terceiro lugar que o colocou em terceiro no campeonato - ele precisa terminar o ano entre os quatro primeiros para conquistar, com a superlicença, o direito de competir na F1.
Mas isso são outros quinhentos. O que fica desse fim de semana na Hungria é a certeza de que a F1 tem pela frente dias de brilho e glória com a luta entre dois pilotos de gerações diferentes e genialidade semelhante. Sim, claro que, pelo menos por enquanto, a maior potência do motor Mercedes favorece Hamilton - ao mesmo tempo, ela instiga Verstappen e a Honda a tirarem o máximo de si nessa reação tão bem vinda quanto surpreendente.
Férias, trabalho e preocupações
A F1 volta no primeiro dia de setembro na catedral de Spa-Francorchamps, onde o clima costuma pregar peças do tipo metade da pista sob sol e a outra metade sob chuva. Uma pista com trechos de altíssima velocidade que podem dar à Ferrari a chance para ressurgir da obscuridade da Hungria. No ano passado, Vettel conquistou de forma solar sua última vitória na F1. No último domingo, ele subiu ao pódio humilhado pela diferença de um minuto para o vencedor Hamilton, um homem contra quem lutou ombro a ombro até a corrida de Spa do ano passado.
A F1 entra agora nas férias mais trabalhosas que se pode pensar. A Ferrari deve se recuperar, a Red Bull deve evoluir, a Mercedes deve se manter. Trabalho duro também para a Williams, que viveu neste fim de semana seu melhor momento dos últimos dois anos, graças à nova estrela George Russell e ao trabalho por trás dos bastidores de Patrick Head, que neste retorno às origens está recriando o ambiente vencedor que marcou sua vida na equipe de que foi um dos pilares.
Vai ser também um período de conversações intensas entre chefes de equipes e pilotos. E de muita preocupação para Valtteri Bottas e Pierre Gasly, ameaçadíssimos na Mercedes e na Red Bull. Eles têm em comum o drama de serem comparados aos companheiros de equipe, os gênios Lewis Hamilton e Max Verstappen. O que podem esperar seus eventuais substitutos? Pergunte-se a Daniel Ricciardo, que preferiu embarcar no futuro duvidoso da equipe Renault a se ver eternamente submetido à amarga comparação com Verstappen.
A F1 vive, sim, mas deve esse momento de intenso brilho a Hamilton e Verstappen.
Esse e outros assuntos são temas do meu canal no YouTube e do podcast Rádio Paddock, feitos por mim e pelo Cássio Politi e publicado a partir das 11 horas das quartas-feiras no Spotify e demais agregadores.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.