Capítulo 8: posição dos pés de Senna já mostravam que acidente era grave
Em 1953, o italiano Giuseppe Farina perdeu o controle da sua Ferrari 500 na 30ª volta do GP da Argentina, em Buenos Aires, e matou nove espectadores. Em Monza, em 1961, o alemão Wolfgang von Trips acabou provocando outra tragédia.
Ele estabelecera a pole position com sua Ferrari 156. De repente, antes da curva Parabólica, na primeira volta do GP da Itália, a Ferrari tomou a direção das arquibancadas. Von Trips, que podia ser campeão do mundo naquela prova, morreu. Outros 13 torcedores também perderam suas vidas. E, nas 24 Horas de Le Mans de 1955, a Mercedes do francês Pierre Levegh voou na direção das arquibancadas e matou 84 pessoas.
Quem gosta de automobilismo sabe que esporte a motor sempre envolve riscos. Na nossa credencial permanente, distribuída pela FIA, está escrito exatamente isso. Mais: se acontecer algo conosco no autódromo, a responsabilidade não é da entidade.
A largada do GP de San Marino ainda não fora dada e já havia um morto na história: Roland Ratzenberger, no sábado. Recapitulando: nove em 1953 na Argentina, 14 na Itália em 1961 e 84 em Le Mans, em 1955. A grande diferença é que meu conhecimento daquelas provas resumia-se à literatura específica. Em Ímola, 1994, eu vivia as tragédias pessoalmente. Uma morte, portanto, tinha um peso enorme. E o piloto em questão não era um completo desconhecido.
Como escrevi no capítulo anterior, Jirki Jarvilehto não disputara as duas primeiras etapas da temporada por ter se acidentado, com gravidade, na curva Stowe, em Silverstone, na pré-temporada. Ele era o companheiro de Michael Schumacher na Benetton. No sábado, no fim da tarde, conversei com ele.
Ratzenberger já tinha morrido. "Eu tive muita sorte". Disse Jarvilehto. Ele sofreu fratura de duas vértebras cervicais e, por milagre, a lesão óssea não se estendeu até a medula nervosa, que corre por dentro das cervicais. Se isso tivesse ocorrido, estaria paralítico.
Ele abaixou a cabeça, lançou os cabelos louros para a frente, e expôs a região posterior do pescoço, para que eu pudesse ver a cicatriz da cirurgia a que foi submetido. Era um corte impressionantemente longo e largo. Eu tinha bagagem: sou ex-estudante do curso de Medicina Veterinária da USP e também fotografei algumas cirurgias humanas, como transplantes de rins. Mesmo assim, me impressionei com a enorme cicatriz no pescoço do piloto.
Um novo impacto poderia matá-lo facilmente. E o fim de semana vinha cheio de prenúncios sinistros. Esse era apenas mais um dado que gostaria de registrar para explicar o que vem adiante.
Já na largada quase outra tragédia
14 horas: Roland Bruynseraede autoriza a largada da corrida. O público é excelente, como de hábito na Itália. Jyrki Jarvilehto, quinto no grid, não larga. O motor Ford da sua Benetton morreu. Uma parte do pelotão consegue desviar, mas sua posição é na frente no grid.
O português Pedro Lamy, com uma Lotus, acerta em cheio a traseira da Benetton, parada na pista. Uma roda da Lotus voa na direção da arquibancada e atinge vários torcedores. Com carros e detritos para todo lado no asfalto, o diretor de prova ordena a entrada do safety car na pista.
Senna lidera a corrida, seguido por Michael Schumacher. Da sala de imprensa, onde estava, temia pela vida de Jarvilehto e das pessoas que receberam o impacto da roda da Lotus de Lamy. Dá para compreender como todos que estavam no autódromo viam seus temores crescerem a cada instante? Estávamos sensibilizados com os acidentes da pré-temporada, envolvendo o próprio finlandês e Jean Alesi. E, desde a sexta-feira, os problemas se sucediam sem parar.
De novo, conversávamos entre nós, jornalistas, que John Barnard, projetista da Ferrari, estava com a razão: retiraram a eletrônica embarcada e não reduziram a potência, deixando os carros inguiáveis.
Nós esperávamos por outras más notícias. E ela veio mais cedo do que supúnhamos.
Os carros passavam a minha frente. Da janela da sala de imprensa à pista não havia mais de 20 metros. O safety car liderava o corso, com Senna em primeiro e Michael Schumacher em segundo. O safety car, naquela época, era um veículo de série, sem maiores preparações.
A velocidade com que percorria o circuito pouco tinha a ver com o mínimo exigido pelos carros de F1 para manter a temperatura dos pneus e dos freios num valor mínimo aceitável para quando a corrida fosse reiniciada. Hoje, o safety car é um Mercedes SLS AMG, com motor de 591 cavalos, superpreparado para o que a F1 exige. E sempre conduzido pelo mesmo piloto, o alemão Bernd Maylander.
Relargada
No fim da quinta volta do GP de San Marino, o safety car deixou a pista e a corrida foi reiniciada. Vi a traseira da Williams de Senna raspando o asfalto com violência poucas vezes vista. Lançava fagulhas do contato dos discos de metal da prancha sob o assoalho com o solo. Compreendi que a baixa velocidade do safety car fez com que a pressão dos pneus da Williams caísse perigosamente.
Senna passou por onde me encontrava, pouco depois da linha de chegada, local da sala de imprensa, abrindo a volta depois da saída do safety car, com Michael Schumacher sempre bem próximo.
Eu o vi passar e, quando saiu do meu campo de visão, voltei-me para o aparelho de TV a minha frente, quando já estaria contornando a Tamburello, a primeira curva. A imagem que surgiu já mostrou a Williams seguindo reto pela tangente da velocíssima curva, contornada com o acelerador no curso máximo, em sexta marcha, a pouco menos de 300 km/h.
Lembro de ter visto a hora no terminal de computador que nos repassa uma série de informações das atividades de pista. 14 horas e 17 minutos, sexta volta do GP de San Marino, a primeira desde a relargada da prova. Estou redigindo quase tudo de memória. Pode ser que tenha sido na segunda volta depois de o safety car deixar a pista.
Curiosamente, ao entender que Senna iria colidir no muro, a primeira coisa que me veio à mente foi que aquela seria outra etapa sem marcar pontos. Repare que a noção de um Senna imortal estava incrustada também em mim. Eu tinha consciência de que ele iria se chocar em alta velocidade, mas em nenhum instante imaginei que pudesse se ferir. Ao menos, não gravemente.
A imagem seguinte que nos foi oferecida pela TV italiana era já a da Williams desacelerando depois do impacto no muro. Epa! Pensei. Bateu forte mesmo. Enquanto o carro ainda se arrastava no cimento branco da área de escape da Tamburello, eu tentava identificar o estado do cockpit, verificar se o santantônio estava inteiro. Enfim, qualquer dado que me permitisse formar uma ideia da gravidade do acidente.
Quando a Williams parou, com Senna inerte dentro, e ele deu aquela pequena mexida na cabeça, imaginei que não se tratava de um acidente fatal. Ao contrário, não sei se por desejar que ele estivesse bem, naqueles segundos tinha a impressão de que Senna teria se ferido sem maior gravidade.
Mas, ao rever o acidente, logo em seguida, pude compreender que o elevado ângulo de impacto da Williams no muro e a distância percorrida desde o choque até a imobilização sugeriam ter havido uma desaceleração violenta, maior perigo nos acidentes. Identifiquei ao mesmo tempo, porém, bons sinais. O cockpit parecia inteiro, bem como o santantônio atrás e acima da cabeça do piloto.
A dura verdade emerge
Tudo começou a mudar quando vi o pessoal do regaste e os médicos abrirem um lençol branco a fim de impedir a obtenção de mais imagens do atendimento ao piloto. Isso sempre é um indicativo de sérios ferimentos.
O quadro se complicou ainda mais ao ver sangue no chão. Não estava certo se vinha de uma hemorragia ou de traqueostomia, para permitir que Senna respirasse melhor. Mais: os pés de Senna, deitado no chão, estavam por demais abertos. Se eles fossem os ponteiros de um relógio, formavam quase o horário 15 para as 3 horas. Tinha a certeza de que ele estava inconsciente.
Relógio da vida
Quando o piloto mantém os dois pés na posição 10 para as 2 ou cinco para a uma, em geral é um bom sinal (ou menos ruim). Senna estava no estágio mais avançado do "relógio da vida", 15 para as 3.
Nesse instante, saí da sala de imprensa e fui até a saída de boxe, de onde poderia atingir, por fora, cerca de 300 metros adiante, o local do acidente na Tamburello. Mas os comissários haviam bloqueado a passagem. Permaneci lá uns cinco minutos, acompanhando tudo através das imagens de TV instaladas nos boxes da Minardi. Fiquei ali para ver se não me deixavam mesmo passar. Na Itália, nem tudo é "pão, pão, queijo, queijo".
Angelo Orsi, um velho amigo da família de Senna, fotógrafo da revista Autosprint, com quem converso regularmente, voltava do local da batida. "Ele está mal, mal, perdia muito sangue pela cabeça", foram suas primeiras palavras. Levei um susto. Pela primeira vez compreendi que o caso era mais grave do que pensava.
Ao cair em mim, corri para a sala de imprensa a fim de pegar meu computador, a bolsa e me dirigir, de novo, para o Hospital Maggiore de Bolonha, um velho conhecido. Eu já estivera lá na sexta-feira à noite, para visitar o Rubinho, no sábado, para ter mais notícias sobre Roland Ratzenberger, embora já soubesse que ele falecera. Agora, no domingo, repetiria os cerca de 50 quilômetros que separam o autódromo do hospital. Para algo inacreditável: descobrir se Senna iria sobreviver.
Eu estava revoltado. Depois de tantas desgraças, a próxima era previsível. Não sei se por inocência, comecei a achar que a corrida não deveria ser disputada. Alguma coisa estava errada e, quem sabe, Barnard estivesse certo demais. Já de posse das minhas coisas, caminhei rápido até o estacionamento da imprensa, ao lado da curva Rivazza.
Vocês querem matar mais um?
Na hora em que estava abrindo a porta do meu carro, ouvi o ronco ensurdecedor dos motores dos monopostos de F1 passando por ali, bem próximo de onde estava, ainda atrás do safety car. Seria dada uma nova largada, sem Rubens Barrichello, sem Roland Ratzenberger e sem Senna. Ainda hoje reflito sobre o meu comportamento naquele instante. Lembro de ter gritado para alguém, sei lá quem, pois estava realmente atingido com a sequência de tragédias: Vocês querem matar mais um?
Mas, apesar do meu protesto, lá no fundo ainda tinha elevadas esperanças de chegar no Hospital Maggiore e receber a notícia de que Senna estava sendo operado, seu estado era grave, mas não irreversível.
Logo depois de estacionar o carro, entrar no Hospital Maggiore e acessar o 11º andar, onde estava o Centro de Terapia Intensiva (CTI), levei um grande baque. Precisei sentar para me recompor.
O médico que atendera Senna no helicóptero que o transportou do autódromo para Bolonha tirou de mim qualquer esperança de vê-lo vivo novamente. Seu relato é impressionante. Todos os detalhes das longas e sofridas horas no hospital estarão no próximo capítulo.
Capítulo a capítulo
Leia os outros capítulos:
- A F1 mudou em 94, e a Williams de Senna não era mais a mesma
- Por que a Williams que matou Senna era "inguiável"?
- A trapaça da Benetton de Schumacher colocou pressão em Senna
- Williams machucava as mãos de Senna (e reparo foi fatal)
- Acidente de Rubinho faz Senna cair no choro em Ímola
- Na véspera da morte, gravação de Adriane Galisteu abala Senna
- 1º de maio de 1994, o pior dia na carreira de um jornalista
- Posição dos pés de Senna já mostravam que acidente era grave
- O acidente e a morte de Senna em detalhes que você nunca viu
- Como Galvão me ajudou a preservar detalhes do corpo de Senna
- Final: como foi voltar ao Brasil ao lado do caixão de Senna
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