Peregrinação ao túmulo forma a nova "família Senna"
Às oito da manhã, o caminho para o Cemitério do Morumby, na zona Sul de São Paulo, é tranquilo. Ayrton Senna morreu no Dia do Trabalho, data em que boa parte do mundo para. Há vinte anos, esse detalhe tem ajudado os fãs a ter o tempo necessário para a peregrinação anual ao túmulo.
O UOL Esporte passou quase cinco horas por ali nesta manhã e, embora o número de visitantes não tenha sido tão grande quanto em Ímola - em São Paulo, a aglomeração não passava de cem pessoas por vez -, o que ficou claro é que a morte de Senna criou condições para que os fãs formassem uma nova família.
Entre uma homenagem e outra, ouvia-se comentários sobre tudo o que se relacionava a Ayrton: "Não, o Bruno não tem aquela 'coisa' do tio, não está no sangue, o Ayrton é único", dizia uma senhora ao lado do túmulo (quase que pisando nele) de Flávio Lalli, pai de Bruno Senna, morto em 1996 em um acidente de moto. Próximo a ela, um ex-funcionário do banco Nacional contava a um amigo feito ali sobre o quanto parecia que Ayrton já sabia que a morte estava próxima: "Eu o vi na casa da família alguns dias antes do acidente, ele já estava sentindo. Pelo jeito que ele reclamava da instabilidade do carro, parecia que ele sabia que algo ia acontecer".
Daí em diante, foi se revelando cada vez mais a família que a peregrinação ao túmulo criou. Desde Celsom e Socorro, que acordam às 4h todo 1º de maio para comprar flores frescas no Ceasa, até o rapaz italiano que finalmente conseguiu vir ao Brasil para pagar a promessa feita no dia da morte do ídolo: a de visitar o túmulo e depositar sobre ele uma lembrança que guarda consigo desde pequeno. Havia ali no meio ferraristas, famílias com crianças e cachorros, gente que já passou dos 90, muitos japoneses. Em comum, a devoção a Ayrton Senna e um desejo latente, quase incontrolável, de contar suas histórias sobre o tricampeão.
O presidente
Celsom Gomes Pereira é sempre um dos primeiros a chegar ao cemitério. Em vez de uma caravana de fãs, o que ele traz na van cinza são os retratos de Ayrton Senna e a TV que sempre mostra um vídeo sobre o tricampeonato: "É a forma que encontramos de manter a memória viva porque, com o tempo, as pessoas se esquecem e isso não pode acontecer". A amiga Socorro Galdino passa por ele e o chama de presidente, ao que ele responde: "Presidente nada. Mas aqui só tem louco. Olha aí, é um louco atrás do outro!", diz sobre os companheiros de idolatria. Debaixo da camiseta com a foto de Senna, Celsom guarda suas maiores homenagens ao ídolo: o S de Senna tatuado no peito e a imagem do piloto de capacete no ombro.
A anfitriã
"Ele me acordou às quatro da manhã para comprar estas flores", diz Socorro Galdino, recifense de 56 anos que vem todo ano visitar o túmulo e os amigos que fez ali. As flores são mini-crisântemos amarelos: "É para formar o 'verde e amarelo' com a grama", explica. Vir para São Paulo não é nem de longe a maior loucura de Socorro. Todo ano, ela adesiva o carro com fotos de Senna num estilo diferente. Foram R$ 1.300,00 gastos desta vez. Se Celsom é o presidente da turma, Socorro é aquela anfitriã que recebe todos com sorriso no rosto. A amiga alemã Mechthild Henner, de 53 anos, foi feita ali diante do túmulo logo após a morte de Senna: "Ela aprendeu a falar português só para falar comigo", gaba-se Socorro.
Mãe postiça do cover de Senna
Nesta família, Maria Solange é a mãezona. Ela mora perto do cemitério e tomou para si a responsabilidade de manter limpa a placa sobre o túmulo. Solange tem ainda outra função muito importante: é ela quem dá abrigo para Antonio Paulo Batista, o Seninha, quando ele vem do Sul para São Paulo. "Ele vem e sempre fica até o Dia das Mães, já que a mãe dele é falecida", conta Solange. Um rapaz vestido com camisa da Ferrari se aproxima e diz que acabou de conhecer "o único cara que realmente tem Senna no coração". Ele falava de Celsom. Prontamente, Solange responde: "Ah, mas não é só ele, não!". E foi assim que ela tomou coragem para posar para a foto que você vê aí embaixo.
Mestre de cerimônias
Desde 1996, Seninha vem ao Cemitério do Morumby todo primeiro de maio. Vestido com um macacão vermelho com imagens de Senna costuradas, ele é o mestre de cerimônias das homenagens. Quando chega Antonio Paulo, de 52 anos, o clima muda. Ele sempre tem um script ensaiado e é o responsável por puxar o Pai Nosso várias vezes durante o dia. Neste ano, até comer banana em homenagem a Daniel Alves, ele comeu. "Os empresários de Capão da Canoa é que pagam minha passagem para vir para cá e é por isso que eu trago essa placa com o nome da cidade", diz ele, deixando claro que o discurso é a contrapartida para o apoio financeiro que recebe.
Famiglia
Ao fundo, o chefe de RH Atílio Bonfiglioli Neto assiste à perfomance de Seninha ao lado da mãe, de 86 anos, e da tia, de 94. Ele mesmo tem 57 e sempre traz ao menos a mãe para visitar o túmulo de Senna: "Ele é meu quinto filho e sempre será", diz dona Áurea. A tia Esperança abraça a irmã por trás para proteger-se o frio -- o dia não é dos mais bonitos e venta bastante no cemitério descampado (o Morumby não permite o exibicionismo das lápides exageradas; cada túmulo é identificado por uma placa de metal e só). "Nossa família é italiana e o domingo é um dia muito especial, mas nada foi igual após a morte do Senna", diz Atílio.
Pela primeira vez
Se no início da manhã só estavam presentes os que vêm quase todo ano, o passar das horas vai trazendo os novatos. O empresário Mauro Sereno tem 49 anos, é um grande fã de Fórmula 1, mas só 20 anos após a morte do seu maior ídolo, ele teve coragem de visitar o túmulo: "Não sei porque nunca vim, mas é realmente algo emocionante", diz ele, que já invadiu o paddock de Interlagos em um caminhão de entrega até ser expulso por um segurança. Antes de ir embora, Mauro participou de um dos Pai Nosso puxados por Antonio Paulo.
Direto da Zâmbia para pagar promessa
Também no grupo dos estreantes estava Marco Pezzoli. O italiano de 30 anos vive na Zâmbia, onde trabalha para uma ONG, e veio direto de lá para cumprir a promessa feita há 20 anos: a de visitar o túmulo de Ayrton e deixar ali uma camiseta com a imagem do piloto que ele carrega desde criança. Além da camiseta, Marco mostra no celular uma foto tirada com Senna: seu pai era fotógrafo e conseguiu levá-lo a Monza. Marco não tem memória daquele dia fora a fotografia, por isso, o dia de hoje é mais especial: "É inexplicável, o que estou sentindo".
Hermanas sennistas
Veio gente de longe e de um pouco mais perto também. Lucía Ferraro e Ana Belén Portnoi têm exatos 20 anos. Conheceram Ayrton quando assistiram ao filme "Senna", há cerca de dois anos, e tornaram-se fãs desde então: "O pessoal não liga muito para a Fórmula 1 na Argentina", lembram elas, quase como se quisessem reforçar o valor da sua dedicação por esta razão. O que as encantou? "A humildade, o fato de ser muito comprometido com seu país e essa coisa muito espiritual que ele tinha."
Me entrevista
Ele já estava rondando nossa reportagem há um bom tempo quando finalmente conseguiu uma brecha: "Coloca meu nome aí, eu sou muito, muito fã do Senna". É verdade que a técnica de aproximação usada por Valdir Teixeira de Oliveira, nascido em primeiro de maio de 1967, não costuma dar muito certo. Mas ele logo começou a mostrar os recortes de jornal, alguns coletados enquanto trabalhava como catador de papel, as fotos e cards das corridas de Senna. Valdir se aproximava de uma maneira pouco sutil de todos aqueles que ele sentia serem "os de sempre". O objetivo dele era claro e um só: conseguir entrar para a família.
Chiquinho Japonês
O último dos "de sempre" a chegar foi Yoshio Tokuyoshi, ou "Chiquinho Japonês". Rapidamente, espetou uma cruz com dizeres em japonês ao lado do túmulo, três paus com espigas de milho na ponta e pendurou na árvore que fica ali atrás um mural com várias fotos dele junto a Senna. É que Chiquinho arrendava, para plantar milho, batata e feijão, terras que depois foram compradas pela família de Ayrton para construir o sítio de Tatuí. "O milho verde é porque a gente diz que o milho é um campeão de vendas, então, as três espigas simbolizam o tricampeonato", diz. Chiquinho, mais um membro desta nova "família Senna", encerra a conversa com uma teoria bastante plausível sobre o porquê de tantos japoneses terem admiração por Ayrton Senna: "É que o japonês nunca deixa um serviço pela metade e assim era também o Ayrton. Ele ia até o fim em tudo o que começava".
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