Calmaria e choro: brasileiro conta como foi ver final na torcida do Lanús
Caminhar pelo centro de Lanús no dia da final da Libertadores, da estação de trem até os arredores do estádio La Fortaleza, é como se meter no meio de uma população inteira vestida para a guerra. As ruas em grená, os cantos, os fogos, os ânimos, tudo anuncia que em poucas horas começa a batalha mais importante da vida dessas pessoas. E é coisa séria. Se o Lanús é ou não “o maior clube de bairro do mundo”, como eles se alcunham, não importa. O maior clube do mundo no bairro é o Lanús.
Durante toda a semana, naquelas esquinas, muito se falou sobre como os torcedores locais foram maltratados em Porto Alegre, no jogo de ida contra o Grêmio. Na boca do povo, “os brazucas” haviam recebido os ônibus que levavam seus familiares na base da pedrada. E os moradores agora se dividiam entre os que pregavam a vingança e os que exaltavam a nobreza de ganhar na cancha e dar exemplo fora dela. No meio dessa discussão, um jornalista brasileiro tentava se mover com naturalidade, disfarçando sempre o amarelo do sorriso.
Às vésperas da partida, em conversa com o assessor de imprensa do clube, tentei ser amistoso e demonstrar proximidade. “Não sou gremista, vou torcer pro Lanús. Meu time é o Vasco". “Vasco da Gama? Já jogamos com vocês”, respondeu ele, sem qualquer sinal de simpatia. “Vocês nos eliminaram na Sul-Americana de 2007 e na Libertadores de 2012... Bem, te odiamos duplamente agora“, sentenciou sem rodeios, como um bom portenho, arrancando gargalhadas dos funcionários que estavam ao lado. Ainda completou, enquanto uma gota de suor descia pela minha costeleta: “Além disso, nossa torcida tem amizade com a torcida do Flamengo”. Eu mantive o sorrisão plantado no rosto, certamente uma cara de bobo.
No dia do jogo, marquei com um amigo colombiano para irmos juntos. De manhã, Juan leu a matéria em que relato que o clima andava meio hostil pelas bandas de Lanús. Me mandou em seguida uma mensagem dizendo que eu estava louco de ir e que ele estava pensando em desistir. Eu disse que ficasse tranquilo, que havia feito bons contatos por lá. Mandei pra ele o vídeo dos rapazes da La 14, a barra brava do Lanús, que desde cedo estavam fazendo churrasco no clube e me mandavam atualizações. Um par de horas depois, Juan me mandou outra mensagem: por via das dúvidas, estava numa loja comprando sua camisa Granate, a camisa do Lanús. Eu, que já havia pego emprestado um casaco da mesma cor, ri. E me aprontei pra ir à estação.
Uma "guerra" em família
Buenos Aires é uma das vinte maiores cidades do mundo. São cerca de 13 milhões de pessoas em toda a região metropolitana. Dentro dos limites da capital vivem três milhões de habitantes, mas todo dia de semana a população praticamente dobra durante o horário comercial. São números impressionantes. Uma multidão de trabalhadores desembarca a cada manhã nos terminais de ônibus e estações de trem de Buenos Aires, vindos das cidades de classe baixa da região metropolitana. Uma dessas cidades se chama Lanús.
Às 17h de uma quarta-feira, a estação de Constitución pulsa incessantemente essa massa trabalhadora de volta para suas casas na zona sul da metrópole. Ontem, para além do ar carregado do cansaço cotidiano, havia um algo a mais no ambiente. No meio da multidão, alguns sorrisos, gritos de excitação: as camisas Granates se destacavam. Uma vinha vestida em um colombiano, que se juntou a mim. O dia estava quente e eu era o único de casaco em toda a estação.
Chegamos na praça, próxima ao estádio. As cervejas de litro, tomadas no gargalo, os cigarros, os choripans: tudo era consumido em velocidade anormal, todos ali na ansiedade do jogo. Os dois estrangeiros também pela expectativa de não serem eventualmente hostilizados.
A verdade, no entanto, é que, tirando umas pedras lançadas por uns rapazes mais exaltados às vans que passaram por ali com as cortinas fechadas (à boca miúda garantiram que eram dirigentes da Conmebol chegando para o jogo), o ambiente era muito bacana e familiar. A praça vestida de guerra estava no olhar de quem a mirava. Olhando pelo outro lado, estavam ali reunidas as pessoas daquele lugar: jovens, idosos, crianças, homens e mulheres. Todos juntos, ao redor do futebol, que a essa altura me parecia apenas um pretexto. Todos estavam ali por Lanús, o clube e o bairro. Era bonito de se ver.
Entre a arquibancada e a Conmebol
Entramos no estádio a tempo de conseguir um bom lugar. E que beleza de estádio. Excelente visão de jogo, proximidade com o gramado, pressão da torcida, boas tribunas com cadeiras, “conforto” para todos os gostos.
Com capacidade oficial pra 47 mil pessoas, o palco da final ainda teve sua capacidade aumentada porque os dirigentes sacrificaram de última hora um dos setores sociais, retirando as cadeiras e fazendo uma arquibancada popular em um dos lados do campo. Ou seja, um estádio de cerca de 50 mil pessoas, mais ou menos a capacidade que hoje em dia se impõe ao Maracanã em dias de clássico local, limitada pelas autoridades policiais. E é verdade também que, no Brasil, cartolas e empresários estão no momento empenhados em transformar arquibancadas em sociais cadeiradas, não o contrário.
O pré-jogo, aliás, foi para mim um embate simbólico entre uma cultura torcedora latino-americana e novos rumos que se pretendem impor no continente. A entrada na arquibancada da banda da La 14, a torcida do Lanús, foi algo bonito de se testemunhar, por exemplo. Ao mesmo tempo, no gramado, a Conmebol armou um evento que tinha referências evidentes em uma tradição de finais de futebol americano ou de Champions League. Talvez um pequeno anúncio dos planos de instituir uma final única em campo nas próximas edições da Libertadores, tal como fazem os países ao norte.
Sendo assim ou não, o fato é que a torcida não se interessou muito por aquele cenário: um cantor popular de Reggaeton se apresentando em playback ao lado de dançarinas vestidas com roupas curtas de lantejoulas douradas. Tudo ao redor de uma estrutura também dourada que pretendia ser elegante, mas que lembrava um abre-alas de escola de samba de terceiro grupo.
O estádio ficou grená, com um setor em azul celeste e ornamentos em dourado e negro no gramado. Uma beleza. A torcida do Lanús cantou por sobre o áudio da Conmebol. O contraste entre o espetáculo do público que ia chegando e o espetáculo dos cartolas era interessante e bastante engraçado. Eu estava ali mais interessado em ver a banda da La 14 e os times em campo. Quando os times entraram no gramado, as arquibancadas explodiram ao mesmo tempo que um hino da Conmebol tocando alto. Havia
Grêmio tomou a Fortaleza; Lanús chorou
Quando a bola rolou, quem eventualmente estava ali pra observar o Lanús terminou ficando vesgo: o Grêmio roubou completamente a cena. Time e torcida. Renato Gaúcho armou sua equipe pra cima dos donos da casa, sufocou o Lanús desde o primeiro minuto de jogo, lhes retirou toda a confiança e arrastou em uma tsunami pra vitória os cinco mil gremistas enlouquecidos que dominaram a Fortaleza. Grohe pegou mais uma, Geromel cortou todas, Artur limpou o meio de campo, Luan tirou onda. E os brasileiros cantaram como nunca, refletiram na bancada a enorme superioridade no gramado. O Grêmio engoliu o Lanús.
Ao nosso lado, um grupo que parecia uma família foi um poético retrato de tudo aquilo que acho que vi na final. Assim que chegamos, Fabrício, um simpaticíssimo garoto de dez anos, enrolado na bandeira do time, puxou papo. Apresentou seu grupo, eram mais de dez pessoas, todos de Lanús.
O menino era pura animação: conversou, sorriu, cantou as músicas da torcida, pediu aplausos ao “brazuca que é hincha do Lanús”, fez piadas e análises táticas. “Hay que marearlos, hay que marearlos (temos que deixá-los tontos, temos que deixá-los tontos), e assim chegaremos ao gol”, disse, sério e convicto, confiante de que o jogo de toque de bola do técnico Jorge Almirón ia se impor.
Noventa minutos depois, Fabrício, o pibe, chorava copiosamente, mão no rosto. Se alguém o tentasse consolar, rechaçava com gritos pedindo que o deixassem sozinho. Ao seu lado, outro rapaz do grupo, ao redor dos 15 anos, também foi às lágrimas. Um terceiro me olhou e esboçou um sorriso. Era Nacho, de 22 anos.
Nascido ali no bairro, ele enfrentou 700 quilômetros e dez horas de ônibus vindo de Córdoba, onde mora há oito anos, só pra ver o jogo. Deixou no caminho boa parte das suas economias e a ausência em uma prova da faculdade. Puxei assunto, perguntei como ele se sentia. Ele respondeu de forma tranquila: “Olha, para mim, foi um feito o que fizemos. O clube tem mais de 100 anos de história e só recentemente conquistamos glórias importantes.” E completou: “As últimas gerações não puderam ver o clube campeão. Meu avô ainda deu sorte, alcançou ver o time ser campeão argentino em 2007 e morreu naquele mesmo ano. Nós somos privilegiados, vimos Lanús na final de uma competição máxima”.
Foi Nacho quem me explicou que o grupo não era exatamente uma família de sangue. Que seus pais eram amigos dos pais dos outros jovens, que eram vizinhos, que todos cresceram juntos no bairro e que hoje se tratam como primos, tios, que se consideram familiares. Insisti: mas não dava tristeza a derrota? “Olha, eu não vivo mais o dia-a-dia do clube como meus primos, que vêm sempre à cancha. Mas sou antes de tudo um torcedor, fiz muitos sacrifícios para estar aqui, sabendo que poderíamos perder. Mas esse é o papel do hincha, alentar a equipe na vitória e na derrota”.
Juan e eu nos inquietamos com a hora, tínhamos que correr para pegar o último trem de volta à capital. Já meio que se despedindo, fiz uma pergunta final: valeu a pena vir? "Faz muito tempo que eu estou em Córdoba. Eu agora vou para casa aqui perto, com minha família. Muito além do que passou dentro de campo, sim, valeu a pena, claro".
Nos despedimos com sorrisos e um abraço. Os gremistas continuavam cantando forte e já deviam estar se preparando para tomar as ruas de Buenos Aires noite adentro. Saí do estádio com uma convicção: o Lanús é gigante.
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