Após subornos e salários de R$ 20, Índio quer sua parte na saga corintiana do 1º Mundial

Adriano Wilkson

Do UOL, em São Paulo

  • Juca Varella/Folhapress

    Campeão mundial, Índio volta à fama pelo Corinthians e relembra causos da carreira

    Campeão mundial, Índio volta à fama pelo Corinthians e relembra causos da carreira

Em uma noite fria da primavera paulistana, temperatura mínima de 13º C, o jogador de futebol Índio está sentado nos fundos de um bar paupérrimo na zona leste de São Paulo. Veste camiseta de tecido frio e bermuda abaixo do joelho. Suas sandálias havaianas tocam o chão no ritmo do forró pé-de-serra que se ouve no ambiente.

Ele é o único neste lugar que parece não se importar com a temperatura baixa, e sua figura leve contrasta com os casacos, moletons e calças jeans dos amigos a seu redor.

Claramente, Índio não é dali. De repente, ele se levanta, quase derruba o banquinho onde estivera sentado e bate com força na mesa: "Agora você paga, perdedor!". Abre um sorriso que imediatamente vira gargalhada, enquanto se dirige ao balcão do bar e cobra seu pagamento.

Responsável direto pelo maior título da história do Corinthians, Índio rodou o mundo em times menores e agora, aos 33 anos, está radiante de felicidade porque acaba de ganhar R$ 97 na jogatina diária.

O baralho é sua grande diversão quando está em São Paulo, mas ele também se aventura na mesa de sinuca, onde se diz quase imbatível.

Felicidade mesmo, porém, ele vive quando viaja ao interior de Minas Gerais, aos arredores da cidade de Caldas, onde sua família pôs fim a uma migração de quase meio século e fundou a aldeia Xucuru Kariri, seis quilômetros sertão adentro.

CINQUENTA ANOS DE SOLIDÃO

A história dos Sátiro Xucuru, membros do ramo linguístico Tupi, está marcada por tragédias familiares e uma longa peregrinação entre Palmeira dos Índios-AL e Caldas-MG.

O pai do ex-lateral do Corinthians, Antonio José Sátiro do Nascimento, o cacique Zezinho, é o líder de cerca de cem índios que fizeram a travessia do sertão brasileiro, fugindo da miséria, violência, conflitos com fazendeiros e outros índios.

O jogador nasceu em 1979, quando os Sátiro Xucuru eram apenas um amontoado de casas de barro fincadas no solo seco do interior de Alagoas. O cacique Zezinho foi acusado de assassinar o filho de um chefe rival e teve que tirar dali a si e aos seus.

No meio das andanças da família, Índio começou a mostrar um talento além do natural para a bola: passava os dias jogando com os meninos da aldeia e das cidades por onde passavam.

Aos 12 anos, "entrava e metia gol em moleque de 20", razão pela qual "eles ficavam putos", segundo suas próprias palavras.

Curiosamente, seu debute no futebol de várzea, seu primeiro grande jogo, aconteceu em um "estádio" cujo nome se mistura à história do Corinthians.

Às margens do rio São Francisco, no município de Paulo Afonso-BA, o La Bombonera do Correão é um campo de terra, sem arquibancada ou alambrado, onde o lateral começou a dar seus primeiros chutes a sério.

Para ter o direito de jogar ali, todo mundo precisava pagar R$ 5. Índio não tinha dinheiro nem para comprar biscoito no mercadinho da cidade. Sem querer perder um dos mais promissores atletas da região, o técnico de um dos times começou a pagar para Índio jogar.

As coisas mudariam um pouco quando ele fosse descoberto por um olheiro do Vitória, de Salvador. Só um pouco, não muito.

"Eles me pagavam R$ 20 por mês na base. Imagina se isso é coisa que se pague a um jogador", reclama Índio sem se lembrar do nome de ninguém daquela época.

Mesmo ganhando pouco, ele sabia que o Vitória era oportunidade de sua vida. Quase morreu de saudade quando teve de cortar o cordão umbilical com a aldeia e ir para a cidade. Em pouco tempo viajaria para jogar em São Paulo, onde (ele ainda não sabia) seria contratado pelo Corinthians.

Foi então que ele descobriu que a prima com quem ele saía estava grávida e ele seria pai pela primeira vez. Tinha 12 anos.

RECOMEÇO
Índio divide seu tempo entre São Paulo e a aldeia. Quando encontrou a reportagem do UOL Esporte, ele atravessou a rua do bar onde jogava seu baralho e pediu para que a entrevista acontecesse no boteco da frente, cuja parede é dividida com a casa de sua ex-mulher.

Antes de Índio começar a falar, uma garotinha veio saltitando de dentro da casa, cabelo encaracolado castanho, olhos negros, rosto da cor de café-com-leite. Ela abraça Índio e pede para ele ir para dentro. Índio responde: "O papai já vai."

Ana Clara tem três anos e é a família paulista do jogador. Os pais da mãe de Ana Clara adotaram Índio e o abrigam toda vez que ele precisa vir à capital. Ao todo, o jogador tem sete filhos.

Aos 33 anos, também é avô, tem três netos. O mais novo havia nascido na véspera da entrevista, e Índio contava as horas para voltar à aldeia e conhecê-lo.

"A gente não resiste, é muita mulher. Mas agora eu estou sossegado, parei a produção [de filhos]. Amo muito os que eu tenho", ele diz.

O problema era que ele não podia ficar muito tempo na aldeia curtindo seu novo netinho. Na semana seguinte, precisaria se apresentar ao Grêmio Osasco, clube cujo diretor de futebol é o ex-volante Vampeta, com quem Índio jogou nos tempo dourados.

Vampeta, aliás, é o amigo, a fada madrinha e a grande inspiração de Índio. "Me roubaram muito nessa vida. No Corinthians, eu ganhava R$ 1.500 de salário, e todo mundo ganhava muito mais. Aí me venderam por R$ 300 mil e me deram só R$ 40 mil. O Vampeta me ajudou a ficar mais esperto para essas coisas."

Diz Índio que Vampeta deu o dinheiro para ele comprar sua primeira casa. Ele tinha acabado de chegar a São Paulo e não tinha onde cair morto.

Vampeta tirou do bolso o que para Índio parecia uma fortuna, e ele conseguiu comprar uma casinha para seus pais em Minas (na época, a família vivia em um terreno alugado e ainda procurava um lugar definitivo para ficar).

Toda vez que a figura do irreverente volante aparece no discurso de Índio, seus olhos brilham em um sentimento de gratidão indisfarçável. Quando o UOL Esporte pediu para ele descrever o amigo em uma palavra, bateu no peito com a mão fechada e disse: "É meu irmão."

Mas há indícios de que Índio já era bem esperto mesmo antes dos toques de Vampeta. Quando chegou de Salvador, apenas mais um matuto tentando ganhar a vida na cidade grande, Índio juntou dinheiro para comprar um carro. Em seu possante, dirigia pelas ruas de São Paulo mesmo sem carta de motorista.

Paulo Giandalia/Folhapress
É meu irmão

Índio, batendo no peito e definindo a relação que tem com Vampeta

Não existem estatísticas confiáveis a respeito, mas é muito provável que a esmagadora maioria de fiscais de trânsito da capital sejam corintianos roxos.

Isso porque, Índio explica, toda vez que era parado em uma blitz e tinha os documentos solicitados, dobrava os policiais presenteando-os com uma camisa usada do Corinthians.

Com o tempo, ele aprendeu que deveria levar sempre uma camisa de seu time no porta-malas para uma eventual necessidade. O hábito do suborno conviveu com ele durante três longos anos em que dirigiu pela cidade sem habilitação.

Até o dia em que surgiu do outro lado do vidro um guarda são-paulino. "Aquele cara queria me ferrar. A minha sorte é que eu tinha acabado de trocar uma camisa do São Paulo com o Serginho, o lateral, e entreguei ao homem. Foi por pouco."

A BEBIDA E A CAPOEIRA

Era madrugada de um fim de semana desses últimos quando Gil, irmão da ex-mulher de Índio, ouviu um barulho estranho vindo do quarto ao lado. Ele foi checar. Lá dentro, viu o jogador lutando capoeira contra a própria sombra (e, aparentemente, levando uma surra da sombra).

Índio estava bêbado, se mantinha com muito esforço sobre as próprias pernas e brincava consigo mesmo. "Ele começou a bater os dentes", conta Gil. "Se começasse a ranger, juro que jogaria um osso", brinca o ex-cunhado para arrancar uma gargalhada de Índio.

O jogador não nega o gosto pela bebida. De Belém do Pará, onde ele jogou em 2010 sem deixar saudade, saiu com a fama de jogador-problema. Dois dirigentes do Clube do Remo disseram ao UOL Esporte que o lateral não se dedicava aos treinos e se perdeu na vida noturna paraense.

"Pessoalmente, era um cara muito gente boa, mas era o típico jogador em fim de carreira. Não queria mais nada e gostava mais de ir a bares da cidade do que de treinar", afirma Abelardo Sampaio, um dos responsáveis por levá-lo ao Remo.

O jogador nega a fama de baladeiro. Diz que saiu na noite apenas uma vez e apresenta outra explicação para seu rendimento pífio nos campos da cidade.

Para se justificar, ele empina o corpo à frente, fecha o semblante e leva a mão ao tornozelo, dois dedos acima do chão.

"Eu tinha rompido o tendão, e eles queriam que eu jogasse de qualquer jeito. Era eu que sentia a dor. Eles me forçavam a entrar em campo, eu me negava. Tive que vir para São Paulo fazer um exame, e ficou provado o rompimento do tendão. Eu podia processar o Remo, mas deixei quieto."

"AGORA EU QUERO A MINHA PARTE"
Índio voltou a ser famoso. Depois de conquistar o mundo no Maracanã, ele se prepara para fazer parte de uma série de eventos para relembrar o feito às vésperas da segunda participação corintiana em um Mundial de Clubes.

No dia da estreia alvinegra no torneio, Índio dará uma volta olímpica no Pacaembu junto com seus ex-companheiros de equipe. Assim como o UOL Esporte, alguns veículos de imprensa foram procurá-lo para ele contar como está a sua vida.

Quatro dias depois da nossa entrevista, uma equipe de TV iria até a aldeia gravar imagens da família do lateral. Ele estava pensando em cobrar pela entrevista. Seu argumento é que todo mundo do futebol cobra para dar entrevistas. Por que com ele seria diferente?

"Eu sei que isso é um negócio. Eles vão ganhar dinheiro comigo, agora eu quero a minha parte. Amanhã mesmo eu vou ligar lá para a Record e dizer que eles vão ter que me ajudar de alguma forma, dar umas cestas básicas lá para aldeia, qualquer coisa."

Quando Índio falou isso, eu comecei a temer que ele fosse cobrar também a mim. Afinal, ele estava me dando uma entrevista. Por que comigo seria diferente?

"Com você eu estou falando na boa, não tem problema, você já veio aqui", disse ele. "Mas quando algum jogador vai na TV, na rádio, eles sempre têm de pagar alguma coisa, tem que ser assim."

A voz dele começa a ficar mais alta e atinge o nível máximo quando ele lembra, indignado, que escreveram um livro sobre a sua vida sem sua autorização. "O cara escreveu sobre mim e nem pediu permissão nem nada. Não sei o nome do livro, mas quando souber vou processar. Tá errado isso. As pessoas querem ganhar em cima de você. É um absurdo."

Caio Guatelli/Folhapress
Aquele cara queria me ferrar. A minha sorte é que eu tinha acabado de trocar uma camisa do São Paulo com o Serginho, o lateral, e entreguei ao homem

Explica o lateral, relembrando o dia em que foi parado por um guarda são-paulino

BEM x MAL
Quando se pergunta a Índio como está a vida dele, ele responde que está muito boa, que ele está feliz, bem de vida e que quer dar prosseguimento à carreira depois que seu tendão do calcanhar sarou.

Diz que tem uma fazenda administrada pelo filho mais velho (que nasceu quando o pai era uma criança de 12 anos), que tem cabeças de gado, as quais lhe rendem vultosos dividendos mensais. Mas quando se faz a mesma pergunta ao pai de Índio, o cacique Zezinho, a resposta é rigorosamente oposta.

"Meu filho não está bem não", decreta o cacique por telefone. "Perdeu tudo que tinha, não tem mais nada. É analfabeto e está tentando voltar a jogar. O Vampeta é que anda ajudando ele, mas não sei se consegue. Você que é repórter podia ajudar meu filho, né?"

Eu perguntei a Índio se ele não se arrependia de ter estudado apenas até a sexta série, se não pretendia voltar à escola um dia. "A gente está sempre estudando", respondeu-me.

E lembrou-se da tia Denise, a professora particular contratada por Vanderlei Luxemburgo para lhe ensinar o alfabeto. Ele admite que a falta de instrução foi a grande responsável por impedir sua carreira de decolar. Lembra que não lia contratos, deixava tudo na mão de empresários e era passado para trás. Hoje, diz não ter agentes e afirma negociar seus próprios contratos.

CONHEÇA O ÍNDIO

Nome: José Sátiro do Nascimento
Idade: 33 anos
Local de nasc.: Palmeira dos Índios (AL)
Tribo: Sátiro Xukuru
Passagem pelo Corinthians: 1998-2000
Principais títulos:
Campeonato Brasileiro (1998 e 1999)
Mundial de Clubes (2000)
Por onde anda: Gerente de restaurante

É PRECISO SORTE
No mês passado, engajou-se fortemente na campanha de seu irmão para vereador de Caldas. Também fez toda a aldeia votar no candidato a prefeito escolhido pela família, que acabou se elegendo.

Índio revelou que a experiência o fez cogitar a vida na política depois que pendurar a chuteira. "Me convidaram para sair candidato nessa eleição agora, aqui em São Paulo. Mas fiquei com medo, tem que ter muito voto, ter muita moral. O Vampeta não conseguiu, o Marcelinho não conseguiu. O Tiririca conseguiu. Acho que tem que ter sorte para entrar", opina.

Índio diz não se lembrar do nome do partido que o convidou a se candidatar. "É o mesmo do Marcelinho." Ele também disse não se lembrar do partido do homem para o qual fez campanha em sua cidade. "Sei que o número é o 14."

"Mas deixei isso [política] para lá. Agora eu quero jogar bola. Quem sabe depois."

Índio tem orgulho da carreira e dos títulos que ganhou pelo Corinthians. Ele é visto com admiração pelos amigos que o acompanham na mesa de bar, o vendedor de botijão de gás, o dono de boteco, o desempregado, mas todos o tratam de igual para igual.

É só com a bola nos pés, porém, que Índio se sente totalmente à vontade. Ao cair da noite, ele se despede e diz que precisa dormir cedo porque pegará estrada no dia seguinte.

A temperatura está mais baixa agora. Índio se rende. "Vou vestir um casacão. Agora esfriou."

Veja fotos de ídolos do passado
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