Da favela ao bar da moda, corintianos de todas as classes bebem, sofrem e gritam do mesmo jeito
Bruno Doro e Vinícius Segalla
Do UOL, em São Paulo
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Junior Lago/UOL
Corintianos comemoram gol na Favela da Paz, em Itaquera, na zona leste de São Paulo
Qual é a cara do torcedor corintiano? O "Time do Povo" é movido por uma nação de "maloqueiros sofredores", na definição criada e cantada pelos próprios, mas não é apenas nas favelas que explode a festa quando o Corinthians ganha um jogo, um campeonato ou o mundo.
A partida decisiva do Mundial de Clubes disputada neste domingo no Japão foi acompanhada por corintianos em todo país e em várias partes do mundo. Na cidade de São Paulo, bares, quadras, praças e casas de todas as classes sociais foram palco da mesma paixão. Uma multidão heterogênea que tem apenas uma característica em comum: o amor pelo Corinthians.
Para retratar esses contrastes, a reportagem do UOL Esporte acompanhou o jogo deste domingo em dois lugares muito diferentes. O primeiro, a Favela da Paz, no bairro de Itaquera, na zona leste de São Paulo, comunidade vizinha ao novo estádio do clube. O segundo é o Buddies, um pub de estilo norte-americano e cardápio sofisticado no bairro do Itaim, na zona sul da capital.
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Barracos no chão
A Favela da Paz é um lugar condenado. A comunidade, de 450 famílias, deve deixar de existir antes da Copa do Mundo de 2014, para dar lugar a um parque no entorno do Itaquerão. O estádio corintiano, que receberá a cerimônia e o jogo de abertura da Copa, fica a dez minutos a pé da favela.
As vielas são de terra e a maioria das casas são barracos de alvenaria, com blocos aparentes e pouco acabamento. O ponto central é a quadra. Na verdade, um vão de 40 por 20 metros, com piso de placas de concreto, sem traves, que serve também como estacionamento.
Castigado pelas chuvas, o local estava molhado na manhã deste domingo. Dois terços cobertos de poças d'água rasas. Crianças de pés descalços corriam por lá. A água não impediu que os torcedores se juntassem nas salas e lages dos barracos. Na frente da casa do David Martins, que colocou a TV para fora, foram uns 15, corintianos e anticorintianos.
Sucos, frutas e chopp
No Buddies, no Itaim, os sucos, as frutas, os canapés, os pães e os frios estavam dispostos no balcão central do bar, à disposição dos cerca de 60 corintianos que pagaram R$ 30 pelo buffet. Já o chopp não estava incluído, saía por R$ 8,50 a caneca. E saiu bem, mais de cem tinham sido vendidos até o fim do primeiro tempo.
Ao longo da partida, os torcedores foram trocando o suco pelo lúpulo, com exceção daqueles que já vinham na toada de festa desde a noite anterior. Era o caso da advogada Juliana Xavier, de 35 anos. Ela chegara ao pub depois de curtir a balada de sábado até amanhecer. No intervalo do jogo, se o Corinthians viesse a vencer, como venceu, seu plano era continuar festejando a tarde inteira. "E amanhã, vai dar para trabalhar?", perguntou a reportagem. "Tá louco? Amanhã é domingo!", confundiu a corintiana, de família de são-paulinos e sempre de olho em uma das oito TVs penduradas no teto.
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Rum com suco: o drinque escolhido pelos rapazes da Favela da Paz para acompanhar a final
Garoa, improviso e suco com rum
Na Favela da Paz, a solitária TV era fininha, de LCD, sintonizada no sinal digital da Band, para ouvir o craque Neto. Perdeu o sinal algumas vezes. Inclusive em lances de perigo. Mas não falhou na hora do gol e nem mesmo a partir dos 40 minutos, quando uma garoa forte começou a cair. O plano era levar o aparelho para dentro da casa de David e "só deixar corintiano entrar" em caso de chuva. Mas, com menos de dez minutos para o fim do Mundial, os amigos improvisaram: colocaram um casaco sobre a tela e ignoraram a água.
O encontro estava marcado desde quarta-feira, quando David teve de acompanhar o jogo do Corinthians contra o Al Ahly sozinho. Neste domingo, foi acordado às 6h pelos amigos corintianos que viraram a noite no "esquenta", mas não perdeu o bom humor. "É normal (acordar cedo) para quem tem que acordar às 5h30 para trabalhar".
Um dos que aproveitou a noite foi William Saraiva, de 28 anos. Ele desistiu de ir até a quadra da Gaviões da Fiel para ver o jogo ao lado dos amigos. "Isso aqui está vazio por isso. Choveu, o pessoal ficou em casa. E ainda teve a Gaviões. Tem muita gente por lá. Por isso que estamos tendo de aguentar tantos secadores".
Para acabar com a tensão, os corintianos (e antis) começaram cedo os trabalhos etílicos: entre 7h e 10h30, secaram duas garrafas de rum, três caixas de suco, de pêssego e laranja, e algumas caixinhas de água de coco. "Compramos ontem, para o jogo". Nada de comida, fato que os são-paulinos aproveitaram para tirar sarro. "Se fosse jogo do São Paulo, tinha churrasco. Mas como é do Corinthians..."
Tensão, anchova negra e chorizo
Os corintianos no Itaim não tinham churrasco brasileiro, mas o cardápio do Buddies oferecia bife de chorizo e outros cortes de carne argentinos, além de anchova negra e iguarias do mar para quem julgasse o buffet de café da manhã insuficiente.
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Até o meio do segundo tempo, porém, o produto mais consumido no pub era o cigarro. "Fumei seis cigarros só no primeiro tempo. Se o Tite não colocar o Romarinho ou o Ramirez, eu morro de câncer no pulmão até o fim desse jogo!", previu o médico oncologista Camilo Tajule, 37 anos, que não quis tirar foto antes do fim do jogo porque podia dar azar.
Já o headhunter Allan Simon, de 31 anos, não se importava em tirar foto. Quando o Corinthians marcou o seu gol, ele chorou e posou para a foto. "É lindo, a maior emoção que eu já senti. O Corinthians está provando tudo que achavam que ele tinha que provar, está jogando para ganhar".
Bombinhas, branquinhas e incertezas
Em Itaquera, o único luxo eram as bombinhas. A cada dois ou três minutos, uma era estourada. As explosões eram fortes, incomodavam os moradores das casas na lateral da quadra. Eles saíam à janela, com cara de poucos amigos. Mas as bombinhas continuavam. E foram uns dos poucos artigos comprados durante todo o jogo.
No início do segundo tempo, Bahia, um dos são-paulinos, foi até uma comunidade vizinha e voltou com duas caixas. E ainda trouxe um morteiro. Os dois primeiros, comprados por R$ 8, eram de David, o dono da TV.
Outro que foi buscar um agrado durante a partida foi Roberto Joaquim da Silva, o Macumba. Desempregado, ele vive sozinho em um barraco "caindo aos pedaços, sem banheiro, que só serve para dormir mesmo".
Ele chegou à quadra na metade do primeiro tempo, saiu pouco antes do intervalo e voltou quando a etapa final já tinha começado. O sumiço tinha explicação: ele fora buscar uma garrafinha de 500 ml de cachaça, estoque particular, que bebericava a cada lance de perigo. "Falaram que não tinha nada para beber, fui buscar a minha branquinha".
Já José Justino chegou à quadra no início do segundo tempo. Ficou o tempo todo em pé, bebericou um pouco de rum e de cachaça. Com o antebraço esquerdo amputado após um acidente, vive "do que Deus manda". "Moro há 24 anos na comunidade. Estava assistindo em casa, sozinho mesmo. Mas é triste. Resolvi vir ver com essa rapaziada. Eles parecem encrenca, mas são todos gente boa. Vi cada um deles nascendo, menino barrigudo correndo descalço na terra".
Mesmo sem renda, estava pronto, há alguns meses, para trocar de casa. Mas desistiu. A incerteza da comunidade fez com que ele resolvesse ficar onde está. "Ninguém sabe o que vai acontecer, se isso vai pro chão ou não. Eu estou esperando". A Prefeitura de São Paulo já informou oficialmente que os moradores da Favela da Paz serão removidos do local, mas nada foi conversado ainda com a comunidade, que está unindo esforços para tentar evitar a desapropriação ou, o que a maioria espera, receber uma compensação pela expulsão de suas casas.
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Para empresário Marco Antonio Francisco, a final contra o Chelsea foi o melhor jogo do Corinthians desde a final do Campeonato Paulista de 1982
Festa, gritos e lágrimas
Ao fim do jogo, no Buddies, a emoção tomou conta de todos. Muitos choraram, outros gritaram de joelhos, outros ainda pularam descontrolados, quebrando copos e garrafas. A imagem do êxtase.
Passaram-se cerca de cinco minutos de comemoração catártica até que alguém se dispusesse a falar com a reportagem. Foi o empresário Marco Antonio Oliveira Francisco, de 34 anos. "É simplesmente o melhor jogo da minha vida! Igual à final de 82 (Campeonato Paulista de 1982, vencido pelo Corinthians sobre o São Paulo), que foi o primeiro título do Timão que eu comemorei", contou ele, enaltecendo o fato de o Corinthians ter dominado a partida na maior parte do tempo. "Fomos superiores, simplesmente merecemos."
E o herói da partida e do título, quem foi? "Bom, o Tite deu um nó tático! O Cássio salvou a pátria! O Sheik também apareceu nas horas certas na Libertadores. E o Romarinho, o Danilo e o Paulinho...", enumerava o empresário, até ser interrompido pela reportagem. "Não consigo eleger poucos. Vai Corinthians!"
Se no Itaim foram quebrados copos, na Favela da Paz os corintianos não ficaram atrás. Quando o juiz apitou e os jogadores do Corinthians passaram a comemorar, os torcedores ergueram os braços cerimoniosamente. A cena silenciosa durou pouco. As bombinhas voltaram a explodir e dar o som da festa, cada vez mais próximas das pessoas, a um intervalo cada vez menor, mas sem machucar ninguém.
Um dos corintianos, eufórico, derrubou um dos bancos que servia de arquibancada. E ainda arrancou a porta de um armário, que estava servindo como sofá, e passou a bater no móvel, sem conter a alegria que o fato de se considerar campeão do mundo representava. Quando todos se acalmaram, restou pensar em como cenas como aquelas poderão acabar nos próximos dois anos, como diz William: "Sou corintiano, sou campeão mundial. Mas o Corinthians, com o estádio, pode tirar a minha casa. É difícil lidar com esses dois sentimentos".