Vencedor da promoção do "Papo Reto": Da Arte do reencontro com Neto

Danilo Cajazeira

Especial para o UOL Esporte

  • Divulgação/Arquivo Pessoal

    Vencedor da promoção "Papo Reto" se reencontra com Neto no Japão

    Vencedor da promoção "Papo Reto" se reencontra com Neto no Japão

Sendo meu pai carioca, tricolor das Laranjeiras, seria natural que fosse eu igualmente das três cores que traduzem tradição. Porém, sendo seu Cleber também um militante comunista, da Convergência Socialista, é compreensível que, ao mudar para São Paulo, tenha se afeiçoado por aquele time preto e branco mesmo de onde se levantavam vozes democráticas que compensavam a falta de uma terceira cor. Daí que, ao atingir este que vos escreve a idade de simbólicos 7 anos, tenha vindo meu pai a explicar que não, não era o São Paulo o único time de São Paulo, assim como não existia uma cidade chamada Corinthians e outra Palmeiras. Eram todos da metrópole cinza, todos frutos do mesmo ventre futebolístico que remontava ao começo do século (o passado) e juntava operários, comunistas, anarquistas, aristocratas, fazendeiros, imigrantes (ricos e pobres e de vários lados), índios, negros e brancos pra parir isso que hoje aí está.

Assim, seu Cleber me disse: te levo em um jogo de cada, aí você escolhe o time que mais gosta. Perguntei-lhe qual era o seu, e ele me contou das três cores, e que em São Paulo não tinha time algum, embora gostasse um tanto do Corinthians – não só pela Democracia no ano em que eu nasci, que com 7 anos não lhe coube explicar, mas também por conta do amigo palmeirense chato que adorava uma flauta com o seu Tricolor (o que rendeu histórias hilárias, que ficam pra um outro post).

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O primeiro estádio que visitei na vida, em 1990, atendia pelo nome de Palestra Itália, ou Parque Antarctica, ou seja lá o nome que os de verde dão oficialmente para o seu ex-estádio, atual Coliseu, futura "arena". Apesar disso, em campo corriam uns de três cores, e outros de preto e branco: o São Paulo era visitado pelo Atlético-MG e perdia por 2 a 1, em grande noite de Éder (o Aleixo), que não anotou mas infernizou a defesa tricolor. O time que levava o nome da cidade e do estado não me ganhou.
 
Minha segunda vez foi a definitiva. Não lembro o jogo, não lembro o adversário. Lembro duas coisas: a torcida, enorme, preta e branca, barulhenta; e o estádio Paulo Machado de Carvalho. Ali me tornei corintiano; ali, embrionava-se um baterista. Naquele ano de 1990, fez-se valer a máxima da "sorte de principiante", e o Corinthians tornou-se campeão brasileiro pela primeira vez. Daquele time, lembro muita coisa; nada mais impressionante do que um camisa 10 que eu achava meio gordinho até, mas que decidia (quase) todos os jogos. Se tive um ídolo na infância, ele atendia pelo sobrenome: Neto, o José Ferreira.
 
Por um desses acasos do destino, minha mãe, que nunca deu muita bola para futebol (a ponto de comentar casualmente enquanto eu assistia a uma reportagem sobre 1977 que tinha ido àquele jogo, como se aquilo tivesse sido mesmo apenas um jogo), tinha um primo. Seu nome era Léo, sobrenome Vilarinho, profissão médico. Do Corinthians. Foi através dessa ligação que, com meus agora 8 anos de idade, fui parar no vestiário do Pacaembu, o estádio que aos poucos aprendia a chamar de meu, em dia de jogo do Corinthians.
 

Jogo decisivo para as pretensões alvinegras no Brasileirão: era ganhar e torcer contra, ironicamente, o Fluminense de meu pai. De todas as muitas crianças que entrariam em campo com os jogadores, eu tinha sido privilegiado: por ser primo do médico, saí de dentro do vestiário, enquanto todas as outras aguardavam do lado de fora do túnel. Esse privilégio me deu a chance de escolher a mão que me conduziria a campo pela primeira vez na vida. E essa mão foi a daquele camisa 10, o mesmo que com os pés fez um golaço e deu ao Corinthians a vitória que precisava, por 1 a 0. Só que o Flu ganhou também, e o sonho do bi no Brasileirão parou momentaneamente por ali.
 
Daquele dia guardei algumas memórias físicas e outras indeléveis. As físicas perdi, em uma das duas enchentes que nossa casa, em Pirituba, sofreu no ano seguinte. Fotos com Viola, Paulo Sérgio, Ezequiel, Dinei, Wilson Mano e, claro, Neto. Não perdemos só fotos: foram embora geladeira, fogão, móveis, quase a vida de nossa cachorra, She-Ra. Depois da segunda enchente, mudamos de casa. Assim como Neto, que em 1993 deixou o Corinthians e foi parar no Millonarios, da Colômbia.
 
Nunca mais entrei em campo com o time. Não tive chance de recuperar aquelas fotos. Voltei ao Pacaembu trocentas vezes, só uma delas pelo túnel que dá acesso ao campo, em ocasião de um outro tipo de memória indelével que também remete ao meu pai. Neto ainda voltou ao Corinthians antes de se aposentar, depois virou comentarista, blogueiro e entrevistador. Do outro lado, eu continuei torcendo pela camisa alvinegra de sempre, seguindo o time a todo lado e fazendo bizarrices em nome de uma paixão renovada ano a ano, jogo a jogo, com dores e alegrias, tristezas e vitórias.
 
Em 2012, quis a vida (ou uma comissão julgadora) agendar um reencontro. Neto, de um lado, era garoto-propaganda de uma promoção que levaria um torcedor ao Japão. Eu, de outro, era um dos muitos concorrentes. Vim, vi e venci o Ahly, e no mesmo dia reencontrei Neto na parada do ônibus, na volta do estádio. Um reencontro fugaz, que não contentou a alma do garoto que em 1991 adentrou o gramado do Pacaembu de mãos dadas com seu camisa 10, aquele da figurinha, da camiseta e do recorte de jornal.
 
 
Foi preciso então um café da manhã em comum para que o reencontro se locupletasse. Vinte e um anos depois, como que tragada do fundo das águas paradas do rio Tietê, a foto perdida na enchente se recompôs. Lado a lado, aquele moleque assombrado com a grandeza de seu estádio, de seu time e de seu craque, e o craque em si, hospedado junto com sua mãe, em uma viagem internacional que gostaria de ter feito naquele mesmo 1991, quando o Corinthians, não dando a importância devida à Copa que ironicamente do ano ano seguinte em diante seria usada como motivo de flauta pelos rivais, foi eliminado pelo Boca Juniors naquele mesmo Pacaembu.
 
O garotinho cresceu, o craque se aposentou, a foto não tem a materialidade do papel daquela outra. Mas basta um simples olhar apaixonado pra que o sentimento aflore, o tempo pare e seja 1991 novamente, ambos campeões brasileiros, e eu diga para meu pai:
 
- Que golaço, pai! Que golaço!
- E foi do Neto!
 
Porque certas coisas enchente nenhuma, nem mesmo de lágrimas, é capaz de carregar.
 
Eternamente em vossos corações,
 
Kadj Oman
 
* Danilo Cajazeira ganhou a promoção, com apoio cultural Futebol Tour, "Mais um Louco no Mundial" e viajou ao Japão para acompanhar os jogos do Corinthians

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