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Blog da Amara Moira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como o machismo dos estádios é estímulo à cultura do estupro

Campanha do Museu do Futebol pelo Dia da Mulher - Reprodução
Campanha do Museu do Futebol pelo Dia da Mulher Imagem: Reprodução

01/06/2022 20h02

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Uma das lembranças mais pesadas que tenho da minha experiência em estádios se deu cerca de 10 anos atrás, num empate tedioso entre Palmeiras e Vasco no Pacaembu. Um torcedor, diante de uma marcação do juiz que ele considerou injusta, foi até a grade que separa a torcida do campo e simplesmente gritou algo do tipo: "seu cuzão filho da puta, se você continuar roubando, eu vou estuprar sua filha!". Não me lembro as palavras exatas, lembro apenas que envolvia o estupro da filha.

A marcação era algo extremamente banal, uma falta no meio de campo, um lateral, algum impedimento ridículo, nem lembro direito, só sei que ele foi a única pessoa que protestou com tanta veemência. De qualquer forma, ainda que fosse uma injustiça evidente e escandalosa, com todo mundo se manifestando em coro, faria sentido um ataque desses? Eu fiquei constrangidíssima na época, mas me calei, assim como todas as pessoas ao redor. Havia muitas mulheres por perto, obviamente, já que mulheres também frequentam estádios, e eu fico me perguntando o que elas sentiram ao ouvir isso, o que elas sentem ao recorrentemente ouvirem coisas do tipo.

Quem não cresceu sob o medo permanente de ser violentada talvez ache que é só uma brincadeira do torcedor indignado. Mas para quem convive diariamente com esse medo na rua, no transporte, no trabalho ou até dentro da própria casa, frases como essa funcionam como um gatilho, um lembrete do que a qualquer momento pode acontecer com elas. Sem sequer terem cometido nada de errado, aliás! Ou vocês não perceberam que, para tentar punir um homem, foi feita uma ameaça contra a filha dele?

O torcedor precisou pressupor que o árbitro fosse heterossexual, casado e tivesse uma filha, para fazer semelhante ataque, ainda que nada garanta nenhuma dessas coisas. E, o que é pior, ele se sentiu plenamente autorizado a dizer essas coisas na frente de inúmeras pessoas, na frente de outras mulheres inclusive, sem que ninguém expressasse um mínimo sinal de reprovação.

Podem querer alegar que futebol é coisa de homem, mas onde exatamente está estipulado isso, em que documento? Aliás, que ideia de homem é essa, para quem o futebol teria sido feito? Será que cabem nessa ideia homens trans, homens gays, homens afeminados, homens negros? E a travesti, que passa a vida sendo xingada de homem, será que cabe nessa ideia de homem? Ou esse "homem" do futebol não é o mesmo "homem" que usam para ofendê-la, xingá-la? Mais importante ainda: esse homem ideal do futebol seria um homem capaz efetivamente de estuprar ou bastaria ele ser capaz de fazer uma ameaça, "brincar" com essa possibilidade?

Lembrei de uma transmissão de um jogo das Olimpíadas de 2016, cuja cobertura entrou para a história por trazer um protagonismo feminino nunca antes visto. Era Argentina versus sei lá quem e, num determinado momento, um jogador do outro time entrou forte no Messi, que reclamou incisivamente com a abitragem, justo quando o locutor soltou a pérola: "pára de frescura, Messi, futebol é coisa de homem".
Frase banal ainda hoje, meu sonho é um dia ser necessário uma nota de rodapé para explicá-la. Por ora, não é necessário nota nenhuma, ela é óbvia para quem quer que seja. Qual o problema com ela, não é mesmo? Bom, havia uma comentarista mulher na cobertura da partida e ela, mesmo não querendo jogar o colega de trabalho na fogueira, precisou se manifestar dizendo que, epa, calma lá, que história é essa de futebol é coisa de homem?

Ela estava lá e marcou território, questionou essa frase machista feita durante a transmissão de um jogo importante, por uma das maiores emissoras do país. O rapaz se desculpou, disse que se expressou mal, mas e se ela não estivesse lá? Teria passado batido? E eu realmente acredito que ele se expressou mal: hoje em dia, é mais do que sabido que, sobretudo diante das câmeras, frases como essa não são mais cabíveis. Mas uma coisa é saber que isso não pode ser dito, outra bem diferente é não acreditarmos mais, lá no fundo das nossas consciências, nesse tipo de frase.

Proibições contra manifestações discriminatórias ajudam a maquiar a situação, mas transformações profundas da nossa consciência (e aqui eu digo "nossa" mesmo, de todos e todas, não apenas da pessoinha que reproduziu preconceito) não são conquistadas com multa, perda de mando, proibição de entrar nos estádios e até cadeia. Por sinal, se fosse proibir machismo nos estádios, será que ficaria alguém pra assistir as partidas?