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Blog da Amara Moira

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O dia em que um juiz escancarou todo o machismo e a LGBTfobia no futebol

09/06/2022 04h00

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Na minha última coluna, questionei se haveria algum documento afirmando expressamente que o futebol é um esporte de heterossexuais e acabei me lembrando que, de fato, existiu algo do gênero. É um desses momentos que me fazem sentir vergonha tanto de ser brasileira, quanto de ser palmeirense, aliás.

Em 2007, quinze anos atrás, a mídia sensacionalista divulgou que "um jogador de um grande clube paulistano [estaria] disposto a assumir que é gay" no Fantástico, da Rede Globo, e um dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, perguntado se o tal jogador seria alviverde, respondeu da seguinte forma: "O Richarlyson quase foi do Palmeiras".

O jogador Richarlyson, à época no São Paulo, não gostou da declaração e processou Cyrillo, mas o juiz Manoel Maximiano Junqueira Filho, da 9ª Vara Criminal de São Paulo, não só rejeitou a queixa-crime de Richarlyson, como fundamentou a sua decisão com uma sentença que é o puro suco do machismo e da LGBTfobia.

Segundo a sentença, expedida em 05 de julho de 2007, não houve uma afirmação inequívoca, por parte de Cyrillo, de que Richarlyson era gay. No entanto, se ela tivesse ocorrido e fosse uma inverdade, bastaria o jogador comparecer ao mesmo programa televisivo e afirmar-se heterossexual, colocando um ponto final na questão. Ou então, sendo verdade, ele "poderia admiti-lo, ou até omitir, ou silenciar a respeito. Nesta hipótese, porém, melhor seria que abandonasse os gramados...".

Vejam bem: a essa altura, o São Paulo de Richarlyson já havia conquistado o Mundial Interclubes de 2005 e o primeiro de três títulos consecutivos do Brasileirão (único time a levantar esse caneco três vezes seguidas), conquistas que fariam do jogador um nome eternizado na galeria de ídolos do clube. E, apesar disso, a opinião do juiz (numa sentença judicial, não se esqueçam), é de que Richarlyson deveria abandonar os gramados, caso fosse verdade que ele é homossexual.

A explicação que o juiz dá para a sua decisão judicial é ainda mais bisonha: "futebol é jogo viril, varonil, não homossexual" e, caso um homossexual queira jogar bola, ele que "forme o seu time e inicie uma Federação". Acreditar que virilidade e varonilidade não podem se fazer presentes num homossexual é desconhecer por completo esse meio, é talvez nunca ter pisado numa academia. Mas a sentença ainda vai mais longe:

"O que não se mostra razoável é a aceitação de homossexuais no futebol brasileiro, porque prejudicariam a uniformidade de pensamento da equipe, o entrosamento, o equilíbrio, o ideal... [...] Para não se falar no desconforto do torcedor, que pretende ir ao estádio , por vezes com seu filho, avistar o time do coração se projetando na competição, ao invés de perder-se em análises do comportamento deste, ou daquele atleta, com evidente problema de personalidade, ou existencial; desconforto também dos colegas de equipe, do treinador, da comissão técnica e da direção do clube."

De acordo com o magistrado, é preciso haver espaços segregados não só por gênero, como também por orientação sexual e que o futebol seria um deles. Ou seja, prega-se aí que a própria convivência no futebol entre heterossexuais e homossexuais seria inviável, pois prejudicial ao espetáculo, além dos constrangimentos que isso causaria nos bastidores. Afinal, como ficar pelado no vestiário sabendo que existem ou podem existir homossexuais ali presentes, não é mesmo? A velha paranoia heterossexual de que gays assediariam não-gays 24h/dia se ocupassem os mesmos espaços.

Importante perceber também a insinuação de que jogadores gays teriam "evidente problema de personalidade, ou existencial". Desde 17 de maio de 1990, comemora-se o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, pois foi nesse dia que a homossexualidade deixou de ser considerada doença pela CID-10 (Classificação Estatística Internacional de Doenças), da OMS, no entanto percebe-se que a transformação das consciências não é tão simples quanto a alteração de um documento.

Junqueira receberia uma sanção administrativa leve (ridícula se poderia dizer) por semelhante abuso de autoridade, mas o que me espanta é pensar que um cidadão desses, com mentalidade tão retrógrada, foi capaz de passar num concurso para juiz e estabelecer-se como autoridade do nosso sistema judicial.

Anos depois, o Palmeiras foi atrás de Richarlyson para contratá-lo para a temporada de 2012, um pedido expresso de Felipão, mas diante de manifestações hostis de torcidas organizadas do Verdão (que chegaram a redigir um manifesto, onde se lêem coisas como: "A resistência da torcida não vem do fato estrito de Richarlyson ser supostamente gay, mas pelos trejeitos com que o atleta se manifesta publicamente. 'Ricky' é muito afeminado e jogou por muito tempo no inimigo") acabou recuando.

A punição veio a galope, no final daquele fatídico ano, quando o Palmeiras amargou o seu segundo rebaixamento. Merecidíssimo.

Richarlyson é atualmente comentarista da Globo.