Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Site de acompanhantes faz publicidade em jogos: o que pensar?
Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail
Muita gente ficou surpresa, nos últimos meses, ao se deparar com anúncios da Fatal Model, uma plataforma de acompanhantes, em camisas de times de futebol e nos painéis de publicidade dos estádios. A surpresa chegou a motivar matérias em importantes veículos midiáticos, com vários textos abordando o inusitado de uma "startup da prostituição" (como ela foi chamada em algumas matérias) investir em futebol.
Conversando com pessoas que acompanharam as negociações desses anúncios, a situação se mostrou ainda mais curiosa. Parece que foi difícil convencer as próprias equipes a aceitarem o patrocínio: mesmo com dinheiro na mão, muitas preferiam recusar os anúncios, por temer que a associação com o trabalho sexual trouxesse problemas para a imagem do clube.
Isso explicaria por que os anúncios tiveram que começar, como teste, primeiro pelo Campeonato Catarinense, pela série C do Brasileirão e em jogos iniciais da Copa do Brasil. O Altos-PI, por exemplo, estampou o logo da empresa no meio de sua camiseta na partida contra o Flamengo. O mesmo fizeram Portuguesa-RJ, contra o Corinthians, e Globo-RN, contra o Internacional. Meses depois, finalmente os anúncios chegaram à série A: na 17ª rodada do Brasileirão uma placa da Fatal Models apareceu, no estádio Mané Garrincha, em Brasília, no duelo Flamengo x Coritiba do dia 16 de julho — é a placa vermelha atrás do gol, que você vê no vídeo abaixo.
Já estava pensando nisso como pauta possível pra futuras colunas, quando uma amiga querida, em dúvida se se indignava com os anúncios ou com a surpresa que eles causavam, veio perguntar a minha opinião sobre o assunto. Olha aqui os meus pitacos.
Bom, em primeiro lugar, é preciso lembrar que a prostituição não é criminalizada no Brasil, mas é tão absurdo o tabu que pesa sobre ela que é como se fosse um crime, dos piores, aliás. Mesmo tendo sido reconhecida como ocupação pela CBO 5198-05, do Ministério do Trabalho e Emprego, nada efetivamente mudou com isso.
Já estamos há séculos habituados a conviver com ela, sabemos onde ela costuma ser exercida e como reconhecer quem está "em serviço", mas daí a fazer propaganda dela em horários nobres da televisão não, né? Pura hipocrisia. Como se o público que consumisse esses serviços não fosse, em boa medida, o mesmo que acompanha avidamente o futebol.
E, se concluirmos que o público de ambos é quase o mesmo, qual o problema de termos propaganda focada em tais serviços durante os jogos? "Ah, mas só maiores de idade podem sair com acompanhantes". Se fosse esse o problema, também deveríamos proibir que sites de apostas esportivas e corretoras de criptomoedas fizessem anúncios nesses espaços.
Muito interessante perceber que o dinheiro desses anúncios foi recebido sem qualquer dificuldade. Novamente, pura hipocrisia. A verdade é que um dos pilares da nossa sociedade é o trabalho sexual, mas a moralidade hipócrita que assumimos nos impede de reconhecer o quanto prostitutas são essenciais para nossa sociedade não colapsar. Nesse sentido, mantê-las na precariedade e na vulnerabilidade é uma forma de fingir que a prostituição não é tão importante assim, o que é uma forma bastante eficaz de baratear o valor desse serviço, inclusive.
Para muitas profissionais do sexo, poder anunciar em sites é sinônimo de cobrar mais e trabalhar em condições mais seguras. Se você tem seu espaço de atendimento e consegue, antes do primeiro contato, apresentar ao interessado o que ele pode esperar, inclusive os valores que você cobra, isso contribui para a valorização do serviço. Não trabalhando por sites, a forma mais típica de exercício do trabalho sexual é nas ruas, onde estamos bastante vulneráveis a todo tipo de abuso e violência.
A situação me faz lembrar do debate proposto por Nelson Hungria, o mais importante comentador do nosso atual Código Penal (1940), a respeito de como o Estado deveria encarar a prostituição:
"A prostituição é tolerada como uma fatalidade da vida social, mas a ordem jurídica faltaria à sua finalidade se deixasse de reprimir aqueles que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento e extensão dessa chaga social. Se a prostituição é deplorável, não deixa de ser, até certo ponto, em que pese aos moralistas teóricos, necessária. Embora se deva procurar reduzi-la ao mínimo possível, seria desacerto a sua incriminação. Sem querer fazer-lhe o elogio, cumpre reconhecer-lhe uma função preventiva na entrosagem da máquina social: é uma válvula de escapamento à pressão de irrecusável instinto, que jamais se apaziguou na fórmula social da monogamia, e reclama satisfação antes mesmo que o homem atinja a idade civil do casamento ou a suficiente aptidão para assumir os encargos da formação de um lar. Anular o meretrício, se isso fora possível, seria inquestionavelmente orientar a imoralidade para o recesso dos lares e fazer referver a libido para a prática de todos os crimes sociais."
Um mal necessário, portanto, com uma importante função social. O que não significa, segundo o eminente jurista, que tal atividade deveria ser fomentada ou ter suas condições de exercício melhoradas. Aos olhos dele (e da sociedade em geral), tudo bem existirem prostitutas, desde que elas permaneçam sempre à margem da sociedade, reféns da precariedade que aprendemos a ver como inerente a esse trabalho. E, para que as coisas se mantenham assim, é essencial que as figuras "que, de qualquer modo, contribuem para maior fomento ou extensão dessa chaga social" sejam vistas como a encarnação do demônio na terra.
Eis questões para termos em mente ao pensarmos o incômodo que tais anúncios publicitários causam.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.