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Blog da Amara Moira

OPINIÃO

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Estupro como punição para estupradores

20/02/2023 14h49

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Sexta passada (17/02) no Fim de Papo aqui do UOL, entrou em debate a condenação de Robinho e o processo contra Daniel Alves, ambos envolvendo estupro, e, enquanto conversávamos sobre o assunto na live, passei o olho no chat e vi inúmeros comentários afirmando que, na cadeia, os dois iam "virar mulher na mão dos presos", ser estuprados e finalmente "aprender" a respeitar mulheres. Tais frases são reveladoras tanto do fracasso absoluto do nosso sistema prisional, quanto da própria cultura do estupro que permitiu que os casos citados acontecessem.

Fracasso pois mostra que, no final das contas, nossa ideia de punição a criminosos continua reproduzindo modelos arcaicos, com direito a calabouços medievais, péssimas condições de vida (comida estragada, sem instalações sanitárias apropriadas, péssima circulação de ar, etc.) e a permanência do olho por olho da Lei de Talião. Como imaginar a recuperação de um indivíduo a partir desses métodos? Mais do que isso, o que significa desejarmos que uma pessoa seja presa, quando são essas as condições que a pessoa enfrentará no cárcere?

Pesquisas recentes apontam que o número de pessoas privadas de liberdade no Brasil já está quase em um milhão, com aumentos significativos ano após ano. As prisões vão aumentando (mas nunca num ritmo que dê conta de acondicionar com um mínimo de dignidade os presos), a população carcerária vai aumentando, mas não temos a mínima sensação de melhora na segurança, o que já deveria servir de alerta para percebermos que esse sistema não só não está ajudando, como também está causando danos profundos a quem é obrigado a passar por ele.

Quem sobrevive ao sistema prisional é um sobrevivente, alguém profundamente traumatizado e, logo, uma vítima, nada disso contribuindo para que ele seja uma pessoa melhor ou aprenda a viver em sociedade. Sem contar que, ao sair da prisão, a pessoa ainda viverá o eterno estigma de ter "antecedentes criminais" na sua ficha, o que torna difícil ela conseguir algo básico como, por exemplo, obter um emprego. E isso independente do crime que a pessoa cometer, seja corrupção, desvio de verba pública ou fraude fiscal, seja revender pequenas quantias de droga, bater carteira no Carnaval ou roubar miojo num supermercado (aliás, é bem provável que os três últimos "crimes", a depender da cor da pele e das condições financeiras da pessoa, levem mais gente pro cárcere do que os três primeiros).

Mas, além do fracasso do sistema carcerário brasileiro, outro aspecto ainda salta aos olhos nesses casos envolvendo os dois jogadores famosos: o desejo de que passem pela experiência de serem estuprados, como forma de punição pelo crime que cometeram ou estão sendo acusados. O que se deseja, com isso, é nítido, a destruição psíquica desses indivíduos, a degradação de seus corpos, possivelmente até a morte deles, e, como isso só seria imaginável nos presídios nacionais, há até uma torcida para que sejam presos aqui no Brasil e não nos países onde os crimes foram cometidos.

Outro elemento ainda, a metáfora utilizada para a punição: "virar mulher nas mãos dos outros presos". Essa metáfora é simbólica de como a nossa sociedade se acostumou a ver e tratar mulheres, seres supostamente fracos, desprovidos de autonomia e que podem ser violados a qualquer momento por homens. É a pura cultura do estupro mais uma vez. O que não é tão fácil perceber, no entanto, é que tanto Daniel Alves quanto Robinho não representam aqueles casos mais emblemáticos de estupro, com o perpetrador planejando ataques em ruas escuras, pouco movimentadas, a vítimas anônimas, de forma recorrente.

Não. O que me parece mais provável é que o estupro que cometeram (ou de que estão sendo acusados, o caso de Daniel Alves - jogador que, segundo o ex-treinador da seleção brasileira Tite, "transcende o futebol", não nos esqueçamos) é daquele tipo que boa parte dos homens seria capaz de cometer e que sequer veriam como um estupro de fato. Por quê? Bom, os motivos alegados seriam vários, a mulher era "puta" (seja no sentido figurado, seja no literal), ela estava "dando mole", ela estava pedindo pra parar, mas, no fundo, ela queria, ela estava vestindo roupas provocantes, ela estava bêbada, o algoz não percebeu que ela não queria, e por aí vai.

Estudos feitos com estupradores condenados mostram que, na absoluta maioria dos casos, mesmo diante de todas as provas da violência que cometeram, eles seguem acreditando que não fizeram nada demais. Talvez tenham exagerado um pouco, passado um pouco dos limites, mas nada que merecesse ser considerado crime. E isso tem relação total com a cultura do estupro, que faz com que a palavra da mulher possa ser, a qualquer momento, desacreditada e inventa álibis os mais estapafúrdios para autorizar a invasão dos seus corpos.

A coluna de hoje, portanto, é um convite para que discutamos alternativas às noções vigentes de punição e justiça, em especial nos casos de violência sexual. O que espero ter conseguido mostrar com esse breve texto é que os modelos que estão postos, além de já terem se mostrado ineficazes, ainda estão profundamente aliançados com a cultura do estupro, nenhuma transformação social podendo sair dali. Justiça será feita quando a cultura do estupro for superada, não quando enfiarmos nos nossos calabouços medievais homens que, criados por essa cultura, cometerem essa violência.

A existência de estupradores é um sinal de que falhamos como sociedade: esse crime não é responsabilidade apenas de quem o cometeu.