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Blog da Amara Moira

OPINIÃO

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Atletismo veta mulheres trans e reacende discussão sobre justiça

27/03/2023 16h11

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Na semifinal do Australian Open de 1999, a tenista francesa Amélie Mauresmo, que em 2004 se tornaria a número 1 do ranking feminino internacional, derrotou a número 1 da época, a estadunidense Lindsay Davenport, e atribuiu seu sucesso nas quadras ao fato de ter finalmente feito as pazes com sua sexualidade e de poder estar junto de sua companheira. Após a partida, Davenport teria afirmado a jornalistas que "parecia estar enfrentando um homem" (I thought I was playing a guy), tão fortes eram os golpes da adversária.

Martina Hingis, tenista suíça que ocupava o posto de número 2 no à época e que derrotou Mauresmo na final por 2 sets a zero, faria um comentário ainda mais discriminatório: "ela é meio homem [Sie ist ein halber Mann]", em referência à lesbianidade de sua oponente. Ambas alegariam, posteriormente, que suas palavras foram tiradas de contexto, mas na defesa que fez de sua declaração, Martina acabaria reafirmando seu sexismo e LGBTfobia: "ela conseguiu vários topspins e não é... que ela seja um homem, mas ela joga como um homem. Foi isso o que a gente disse." (She has got a lot of topspin and it's not... that she is a man but she plays like a man. That's what we were saying.)

Parece que já superamos a ideia de que mulheres lésbicas levariam vantagem nas disputas com mulheres não-lésbicas, mas vira e mexe um novo grupo surge para ameaçar a tal da "justiça" nas modalidades femininas. Nos últimos anos, quem virou esse fantasma foram as mulheres trans.

Quem não se lembra dos ataques envolvendo a jogora de vôlei Tiffany Abreu, quando ela foi contratada pelo Bauru em 2018? Da noite pro dia, parecia que a população brasileira havia se tornado especialista em endocrinologia e esportes de alto rendimento, todo mundo prontinho para dar seu pitaco no assunto. Ainda mais quando a atleta bateu o recorde de pontos numa única partida, 39 (em 30/01/2018), quase acabando com a invencibilidade do Praia Clube naquela edição da Superliga Feminina.

No entanto, um ano após seu retorno ao Brasil, já haviam diminuído drasticamente as matérias referentes à atuação da jogadora e, hoje, cinco anos depois, é difícil encontrar alguém que ainda acredite que a participação dela desequilibra o certame nacional. Por quê? Porque, com o passar do tempo, revelou-se que não havia nenhuma justificativa para afirmar que ela levaria vantagem indevida na disputa com suas pares. É uma excelente jogadora, assim como há outras tantas na competição.

Casos como o de Tifanny mostram o quanto é necessário que avancemos nos estudos sobre como incluir, de maneira ampla, pessoas trans nos esportes. Na ausência de estudos, ficamos reféns do achismo e do senso comum, sem contar o impacto das fakenews na proliferação de transfobia.

O caso mais sintomático seria o do vídeo em que a lutadora de MMA Gabi Garcia derrota, de forma categórica, a russa Anna Malyukova: no tal vídeo, afirma-se que Gabi seria uma mulher trans que "nunca ganhou luta com homens e agora luta com mulheres". O problema da postagem? Gabi é uma mulher cis! Inúmeras matérias foram feitas desmentindo o vídeo, mas a capacidade de circulação dessas matérias é muitíssimo menor do que a das fakenews, o que faz com que inúmeras pessoas sigam vendo ali uma prova cabal da injustiça da participação de mulheres trans em disputas femininas.

E por que estou dizendo tudo isso justo agora? Porque, quinta passada, Sebastian Coe, presidente da Federação Internacional de Atletismo (World Athetics), anunciou novas regras para suas competições, excluindo mulheres trans que passaram pela dita "puberdade masculina" de disputar as categorias femininas. Ou seja, mulheres trans que fizeram o bloqueio da puberdade na adolescência não seriam afetadas pela decisão, mas todas as demais estariam impedidas. Coe anunciou também que uma comissão foi formada para discutir, pelos próximos 12 meses, a questão da inclusão de atletas trans e que, à medida que novas evidências surjam, a decisão da Federação Internacional poderá ser revista.

Diante dos debates em relação à justiça nas modalidades femininas, espero que não se perca de vista uma questão central: como tornar o esporte um lugar justo para mulheres trans? Afinal, a discussão sobre justiça não deve ser feita levando em consideração apenas o lado das mulheres cis. Se concordamos que a testosterona tem um efeito crucial no desempenho esportivo, não faz sentido querermos que mulheres trans que bloqueiam (ou não produzem mais) testosterona disputem na categoria dos homens. Assim como não faz sentido defendermos uma modalidade exclusiva para elas, já que a população trans é uma fração diminuta da população geral. Daí ser necessário desenvolver estudos que apontem em que condições a competição se torna justa tanto para mulheres cis quanto para as trans.

Importante mencionar ainda que as regras afetam também atletas intersexo, em especial as mulheres que produzem naturalmente uma quantia acima da média de testosterona, caso das velocistas Caster Semenya, da África do Sul, Francine Niyonsaba, de Burundi e Margaret Wambui, do Quênia, as três medalhistas nos 800m rasos nas Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro. A partir de agora, mesmo nos casos em que a testosterona é naturalmente produzida, ela precisará ser mantida dentro dos padrões considerados "normais" para uma mulher (2,5 nmol/L) para que as atletas possam competir nas categorias femininas.