Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.
Nos áudios de Robinho, uma aula de cultura do estupro
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Visitar o perfil do Instagram do Robinho é uma experiência estranha. Na sua bio, ele se apresenta como "atleta", "seguidor de Cristo", "casado" e pai de três filhos e, nas postagens, não faltarão versículos bíblicos, menções àquele "que morreu por nós na Cruz", fotos amorosas junto à família, homenagens ao Pelé e momentos emblemáticos da sua carreira como jogador, tanto no Santos como na seleção. Um desavisado que aparecesse por lá nem imaginaria que esse jogador foi recentemente condenado na Itália de forma definitiva, sem direito a recurso, por participação no estupro coletivo de uma jovem albanesa.
Um cara família como ele, brincalhão, vestindo camisa com o nome de Jesus e a todo momento repetindo frases religiosas... como imaginar que essa figura seria capaz de cometer um crime bárbaro como aquele? Tudo bem que aqui e ali se encontram também, em suas postagens, menções equívocas ao número 22 (usado na última eleição por Bolsonaro, de quem Robinho era assumidamente apoiador) e sabemos que é bastante comum condenados por crimes bárbaros, em especial os contra mulheres, serem apoiadores do ex-presidente, casos de Guilherme de Pádua e do goleiro Bruno, para ficarmos em apenas dois bons exemplos.
Sim, é bastante comum que pessoas com esse perfil sejam apoiadoras de Bolsonaro, mas é importante percebermos que violência de gênero não é exclusividade da direita. É um erro acreditar que todo mundo que reproduza tais comportamentos se identifique com pensamentos reacionários, pois assédio, abuso, estupro, violência doméstica e feminicídio são verificáveis em todos os âmbitos da nossa sociedade, inclusive no seio familiar. E a onipresença e a frequência de tais crimes, a gigantesca maioria deles terminando impunes, deveriam fazer com que refletíssemos sobre os métodos que temos utilizado no enquadramento desse problema.
Um dos pontos que mais têm sido discutidos é o fato de, apesar de todas as provas, Robinho seguir circulando por aí como se nada tivesse acontecido. A sociedade fica em choque diante da ausência total de remorso manifestada por esse "homem de Deus", que numa entrevista concedida ao UOL em 2020 afirmou que seu único erro, no caso, foi ter traído a esposa, já que houve, sim, relação íntima, mas com consentimento da vítima (e, ainda segundo Robinho, sem penetração, algo que ele parecia acreditar que o inocentaria das acusações).
Quando confrontada essa declaração com os áudios recentemente liberados pela justiça italiana, fica evidente a hipocrisia do jogador, que, em conversas com amigos, chega a dizer coisas como:
"É, eu comi, pô! Porque ela quis. Aonde eu forcei a mina? Eu comi a mina, ela fez chupeta pra mim e depois saí fora. Os caras continuaram lá."
"Por isso que eu estou rindo, eu não estou nem aí. A mina estava extremamente embriagada, não sabe nem quem que eu sou."
"Eu não [comi], pô, eu tentei, eu tentei. Eu só fiz a tentativa. [...] Isso aí [colocar o pau na boca da moça] não é transar, isso aí não é transar."
"Como não tinha câmera, vai ficar meio embaçado pra mina provar que estupraram ela, se ela não tiver grávida."
O teor de boa parte desses áudios já era conhecido, pois transcrições deles haviam sido liberadas para a imprensa. No entanto, é outra a impressão quando escutamos essas frases diretamente da boca dos perpetradores. Eles não sabiam que estavam sendo gravados, então conversavam livremente sobre o caso, revelando o que de fato pensavam sobre os fatos ocorridos, sobre a denúncia e também sobre a possibilidade de condenação. Por meio deles, temos uma verdadeira aula de cultura do estupro, o que pode ser importante para percebermos o quão fundo vão as raízes do problema e o quão ingênuo é da nossa parte acreditar que a mera condenação/punição dos indivíduos envolvidos traria algum avanço no combate a tais violências.
Robinho, na entrevista de 2020, fala que tudo foi consentido, mas entre amigos menciona o fato de que ela estava extremamente embriagada, a ponto de nem saber direito quem estava lá ou o que aconteceu. A noção de consentimento aqui seria, basicamente: se em algum momento ela quis ou, pior, deu a entender que queria (o que pode ser bastante discutível), então está tudo liberado. Não é necessário verificar se ela queria mesmo, se ela continua querendo ou, ainda, se ela está em condições de consentir. Robinho treinaria no dia seguinte, então estava apenas tomando água, ou seja, tudo o que ele fez foi com a mais perfeita consciência.
Percebam que os riscos, para ela, são muito mais graves do que para os envolvidos, pois ela pode contrair ISTs e, além de tudo, ficar grávida, com todas as consequências que isso trará. Sem contar o peso que tal violência irá assumir na vida da mulher dali em diante, marcando-a de maneira indelével. Eles, por outro lado, ainda que também possam contrair alguma IST (mas o ato sexual desprotegido seria por responsabilidade deles), não correm risco de engravidar e o medo que eles têm de que ela engravide é por conta disso poder ser usado como prova da violação.
No entanto, apesar de ficar claro que eles têm consciência de terem passado dos limites, a sensação é que eles não se sentem culpados, algo que é recorrente em casos de condenação por estupro. Por mais evidências que existam da agressão, a cultura do estupro condiciona os agressores a acreditarem que houve justificativas para o que fizeram (a roupa que a mulher estava usando, as insinuações que ela supostamente fez, o fato de ela estar bêbada e, portanto, "dando sopa", etc.) e isso deveria nos fazer perceber que o problema vai muito além de condenar, especificamente, os envolvidos nesse crime bárbaro.
Há um clamor pela punição exemplar, como se o medo da prisão fosse suficiente para que homens repensassem as suas condutas. Eu discordo terminantemente dessa hipótese e acho, inclusive, perigoso continuarmos a acreditar que o nosso sistema carcerário (que não passa de uma reedição dos calabouços medievais, sem qualquer expectativa de ressocialização implicada aí) é solução para a falta de segurança que sentimos no dia a dia. Cultura do estupro se combate com educação antimachista, nos ensinando desde cedo a discutir consentimento, a sinalizar limites, a reconhecer abusos e a identificar canais seguros de denúncia.
Robinho é só sintoma da cultura do estupro, não a causa. Ele foi criado por uma cultura machista para se comportar dessa forma, para pensar dessa forma, e individualizar a culpa, nos isentando enquanto sociedade, é uma maneira bem eficaz de seguirmos produzindo outros tantos predadores iguais a ele. Prendê-los, sobretudo nesse sistema prisional desumano que temos, não pode ser a melhor ou, ainda, a única resposta que podemos dar. Isso só mostra o quão perdidos estamos na luta contra a violência de gênero.
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