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Casagrande

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A mágica viagem às terras Krenak e a triste história da morte do rio Uatu

Na prainha, com Shirley Krenak e o guerreiro Giovani - Arquivo pessoal
Na prainha, com Shirley Krenak e o guerreiro Giovani Imagem: Arquivo pessoal

Colunista do UOL

02/03/2023 10h48

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No dia 9 de fevereiro, uma quinta-feira, saí às 9 horas da minha casa para viajar 12 horas de carro, com o motorista Silvio, até a cidade de Resplendor (MG) para conhecer a aldeia.

A princípio, pensei que seria uma viagem super desgastante, mas que nada! Fui ouvindo música e apreciando o visual maravilhoso que o Brasil tem. Fomos pela rodovia Dutra e paramos para almoçar na cidade de Volta Redonda.

Quando passamos a fronteira do Rio e entramos no estado de Minas Gerais, tudo mudou. Porque dali em diante não conhecia nada e passamos por lugares com montanhas deslumbrantes.

Durante a viagem, fui trocando mensagens com a Shirley Krenak, porque ela iria me esperar na cidade para levar para a aldeia. Chegamos no lugar marcado às 0h15 e fomos para lá.

Primeiro ponto: o céu carregado de estrelas, coisa que sou apaixonado, mas que em São Paulo não se consegue ver.

Confesso o friozinho na barriga, porque estava bem longe de casa, não sabia como seria.

Bom, dormimos na casa da Shirley, sem um barulho sequer, e acordei com passarinhos cantando em todos os lugares que se possa imaginar. Tomamos café e fomos para um lago, porque eu seria batizado pelos Krenak.

Obviamente fomos perguntando sobre cobras, né? Eles falavam que ali tinha muitas corais (verdadeiras), cascavel e, principalmente, a jararaca, a maior responsável por mortes por picadas.

A gente foi andando numa estradinha de terra, cercada por mato, e fui atentíssimo, olhando para todo lado.

Quando chegamos, tudo começou. Foi uma experiência espiritual única. A Shirley passou argila do povo Krenak em todo o meu corpo, entrei na lagoa e eles fizeram um canto de batismo. Fui batizado com o nome de Kiem Yrmram, que significa Casagrande. Foi tudo muito especial para mim.

Depois voltamos e almoçamos. À tarde, fui conhecer um pouco das terras, das histórias e da cultura Krenak. Passamos pela escola e fomos para a prainha na beira do rio Uatu, onde o povo Krenak fazia ensinamentos de natação para as crianças (porque é o povo do rio).

Chegando lá, me contaram uma história triste, que pega no coração da gente com muita força.

Esse povo vivia da pesca e da caça da capivara, alimentações tradicionais. Mas a parte triste é que esse rio está contaminado há sete anos por causa do crime de Mariana. Crime? Sim, crime, porque ninguém cuidou para que uma possível ruptura das barragens não acontecesse.

Todos lembram do tamanho da tragédia e, até agora, ninguém foi julgado por isso.

Muitos peixes morreram e aqueles que agora vivem lá estão contaminados. Então não podem mais comer os peixes. E aí alguém pode falar assim: "Bom, ainda tem as capivaras". Não tem. Porque elas entram no rio, bebem aquela água e ficam também contaminadas, sendo que a pele delas cai e ficam todas doentes.

Outra consequência é a falta de água, porque era a do rio que eles usavam para tudo. Tomar banho, cozinhar, beber... depois desse crime, tudo o que eles precisam para sobreviver, sem precisar de ninguém, acabou.

A Vale é a empresa responsável pelo que aconteceu em Mariana. Me contaram que, quando a lama tóxica chegou no rio Uatu, matou tudo o que tinha lá.

E como um pouco para frente tem uma barragem, quando eles foram olhar como estavam as coisas, me contaram uma cena terrível: estavam os peixes, as capivaras e as sucuris mortas, boiando no meio de toda a lama tóxica. Dá uma dor no coração, porque eles contam emocionados e indignados com tudo isso.

Saindo dali, fomos visitar o indígena mais velho na aldeia nesse momento, Zé Grande ou Zézão, mas ele não é tão velho assim. Mas os caciques e guerreiros mais velhos foram morrendo de tristeza e desgosto, porque cresceram naquele rio e não conseguiram viver como sempre viveram.

Bom, na casa do Zé Grande ouvi mais histórias lindas sobre aquele rio, como os Jogos Indígenas que eles receberam, e que ganharam de todos nos esportes aquáticos.

Eles têm muito orgulho disso e, obviamente, uma saudade enorme e dolorosa daquele lugar quando era totalmente saudável. Eles não sofrem só pelo rio Uatu, mas por todos os animais da Mata Atlântica que morreram e ficam doentes quando usam aquelas águas. A sucuri, por exemplo, divide esse espaço e é muito respeitada e idolatrada por eles.

Depois voltamos para jantar porque iríamos visitar a Tia, a indígena mais anciã daquela aldeia. Voltamos umas 19 horas com tudo já bem escuro, com aquela lua cheia, cercada por inúmeras estrelas brilhando, iluminando aquele lugar especial, maravilhoso, mágico.

Itamar Krenak, Walter Casagrande Jr e a Tia - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Itamar Krenac, Walter Casagrande Jr e a Tia
Imagem: Arquivo pessoal

Quando começamos a conversar, não teve como ela não se lamentar e chorar. Porque esse povo, além de viver às margens do rio Uatu — que nós conhecemos como Rio Doce, mas não é uma tradução, porque Uatu é nome próprio —, também consideram o rio sagrado desde o início da existência.

Fiquei ouvindo as histórias da Tia até chegar o Itamar Krenak, que é o indígena com quem mais converso por mensagens, mas nunca tínhamos nos encontrado.

Uma outra história difícil que ele me contou é que as crianças estudam e sabem que todos do povo Krenak, desde os ancestrais, aprendem a nadar no rio Uatu logo cedo. Que esse é ritual daquele povo, e as crianças estão cobrando os pais porque eles ainda não foram para o rio.

O Itamar falou com muita dor que está chegando a hora de contar que o rio morreu, contaminado pela lama tóxica que veio do crime de Mariana.

As histórias são tristes e difíceis, mas o povo Krenak é acolhedor, alegre e ama esporte — tem o time de futebol deles, e ganhei uma camisa personalizada.

No próximo texto sobre essa viagem, contarei a história da magia e da tradição dos "Sete salões", sete grutas que estão em terras sagradas do povo Krenak e eles estão em uma "guerra" para reavê-las.

Ererré, povo Krenak!