Futebol pelo mundo

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Frio, chuva e uma rivalidade de 800 anos: uma tarde na 3ª divisão inglesa

O primeiro sábado de agosto é especial para o futebol inglês. Ele não tem a história do Boxing Day (a rodada pós-Natal de 26 de dezembro), ou do 30 de julho, aniversário do título de 1966, mas não é necessário. Porque o primeiro sábado de agosto tem mais futebol que qualquer outro dia do ano.

O cardápio de jogos em Londres e arredores dava vertigem no dia 5 deste mês. Se ampliada para toda a Inglaterra, a oferta de jogos se tornava ainda mais insana; era como olhar um menu interminável, daqueles que torna qualquer escolha quase impossível. Havia futebol de todos os níveis. Sem exagero.

Era preciso tomar fôlego para entender o tamanho do fenômeno: oito partidas da primeira rodada da Championship (a segunda divisão); 12 da League One (a terceira); amistosos de times da Premier League, como o Manchester United, o Fulham (no clássico estádio de Craven Cottage!), o Crystal Palace no maravilhoso Selhurst Park... E, por fim, o dado mais assustador: 193 jogos da primeira fase da Copa da Inglaterra, o torneio mais antigo do mundo, todos entre equipes da nona e décima divisões.

Um sábado de chuva e frio em Cambridge: imagens da terceira divisão inglesa
Um sábado de chuva e frio em Cambridge: imagens da terceira divisão inglesa Imagem: Thiago Arantes/UOL

Num cenário desses, escolher uma partida é perder todas as outras. Mas não havia outra opção. E depois de passar os olhos por centenas de jogos e ler uma infinidade de nomes de clubes de todas as divisões, a escolha foi feita: o destino seria o Abbey Stadium, em Cambridge, 85 quilômetros ao norte de Londres. Era a primeira rodada da League One, a terceira divisão inglesa: Cambridge United x Oxford United.

As 2 horas de viagem desde Londres mostravam pequenas cidades (algumas delas tinham quatro casas, uma estação de trem e um campo de futebol) alternando-se com a outra função popular do gramado verde por estes lados: a criação de ovelhas.

A recepção na abertura dos portões do trem em Cambridge foi tudo o que não se espera do verão mais quente da história na Europa: 14 graus, chuva fina e uma cortina cinza que se estendia por toda a cidade. O guarda-chuvas foi um bom companheiro para quem caminhou 30 minutos até o campo, com capacidade para 8.127 pessoas.

Na metade do caminho, o jogo foi tomando forma. Os pubs se esvaziavam, as ruas começavam a ser pintadas pelos cachecóis amarelos (as duas equipes têm a mesma cor), vizinhos que saíam sozinhos de suas casas encontravam outros vizinhos que saíam sozinhos de suas casas... e logo ninguém mais estava sozinho.

Na chegada ao Abbey Stadium, torcedores pegam uma trilha ao lado de um lago
Na chegada ao Abbey Stadium, torcedores pegam uma trilha ao lado de um lago Imagem: Thiago Arantes/UOL

Nos 300 metros finais rumo ao Abbey Stadium é preciso passar por uma trilha, ao lado do Lago Barnwell. É uma espécie de bosque em que as filas se formavam para os portões de acesso. Um caos que se organizava à base de saudações gentis entre os torcedores locais. Era o reinício da temporada, dia de rever os amigos. E até de ajudar algum rival mais desorientado.

Uma torcedora, com agasalho do Oxford United, procurava por seu portão de entrada. "Você é torcedora do Oxford, né? Então é do outro lado. É só ir reto e virar à esquerda", disse um rapaz com o cachecol do Cambridge. Cerca de 1.500 pessoas saíram de Oxford para ir ao campo do adversário - todas no mesmo setor, atrás de um dos gols.

Os preços das entradas na League One variam de acordo com o estádio. Para as partidas no Abbey Stadium, vão entre 18 e 24 libras (R$ 112 a R$ 150). Os ingressos mais caros são para as arquibancadas principais, com cadeiras e lugar marcado. Um luxo que não combina com o restante do ecossistema.

Os mais baratos levam à North Habbin Terrace, onde o jogo é visto à moda antiga, no clássico estilo inglês: de pé, sem lugar marcado, na base do "chegou, ficou". "Se é para ver um jogo da League One, que seja de pé", disse o jornalista suíço Alain Valnegri, que também estreava em uma arquibancada da terceirona inglesa. Difícil não concordar.

Em campo, o jogo entregou o esperado de um duelo pela terceirona do Inglês: o Cambridge United apostava na força física, nos lançamentos longos para os pontas e na capacidade do centroavante marroquino Gassan Ahadme de dominar bolas de costas para gol; o Oxford tentava tocar um pouco mais, buscando a habilidade do português Ruben Rodrigues e as arrancadas do ponta Marcus Browne, formado na base do West Ham.

O Cambridge levou a melhor por 2 a 0, com dois gols que começaram em jogadas pelas pontas. Uma pela direita, outra pela esquerda, ambas com cruzamentos do gambiano Saikou Janneh, de 23 anos, de longe o jogador mais rápido em campo. A vitória do estilo "kick and rush" era como entrar numa máquina do tempo.

Mas, em um sábado frio de chuva em Cambridge, o resultado era apenas um dos detalhes em um contexto muito mais amplo. A experiência de uma tarde inglesa no dia com mais futebol em todo o ano se baseia em observar detalhes que o campo não mostra.

É ver o abraço de desconhecidos na comemoração dos gols, o sorriso de amigos que se veem depois das férias de verão, a homenagem a um torcedor que morreu dias antes (e que mereceu um minuto de aplausos antes da bola rolar); é olhar para o lado e perceber que um senhor envia a mensagem "team is looking good!" (algo como "o time está bem") para um grupo chamado "Futebol de Domingo".

Tabelas de preços no bar do estádio: meio litro de cerveja a R$ 34
Tabelas de preços no bar do estádio: meio litro de cerveja a R$ 34 Imagem: Thiago Arantes/UOL

É ver, também, que aquela mensagem era quase uma licença poética. Um raro momento em que o celular saiu do bolso. Parece uma regra não-escrita: na League One não se filmam os gols, não há selfies, nem fotos panorâmicas, áudios ou preocupação com as redes sociais. Os 90 minutos parecem o momento sagrado em que se olha para o campo. Para as 7.435 pessoas que esgotaram os ingressos disponíveis, o futebol era prioridade.

É ali, naquele mundo real, que surgem pequenos rituais. A venda de bebidas alcoólicas é permitida nos bares do estádio, que no Abbey Stadium ficam em uma área exterior, bem ao lado da entrada. Só que os torcedores não podem levar os copos para as arquibancadas.

A placa "sem bebidas alcoólicas depois deste ponto" desencadeia um fenômeno quase medieval: uma multidão tentando terminar seus pints (um copo com cerca de meio litro de cerveja) antes do apito inicial. Uma curiosa mistura de gincana e festa universitária. Cada pint custa 5,50 libras (R$ 34) nos bares, que são food trucks (sem o glamour que têm no Brasil) colocados ali por um novo patrocinador.

"Sua universidade é uma m*!"

O ritual da "hora do rush" na cerveja tem suas consequências. A fila no container-banheiro é uma delas. A outra é, digamos, mais divertida. Foi de um torcedor visivelmente afetado pelos pints que saíram os gritos mais interessantes de uma torcida que não é lá muito criativa. (Em grande parte do jogo, o canto de "Yeeeellow, Yeeeellow" ("Amareeeelo, Amareeeelo") era o mais popular. Mesmo contra um time da mesma cor).

A monotonia monocromática foi rompida aos 17 minutos do primeiro tempo, quando -- sem nenhum contexto ou aviso prévio -- o nosso "torcedor dos pints" tentou emplacar, sozinho, um novo grito de guerra: "Your uni... is a load of shit / Your uni... is a load of shit!". Em português: "Sua universidade é uma m*!".

Foi uma referência isolada à relação que encurta os 160km de distância entre as duas cidades. Cambridge e Oxford são conhecidas por terem duas das universidades mais respeitadas do mundo. E por uma intensa rivalidade, cujo marco inicial é impreciso, de tão distante.

Há quem diga que a rixa começou há 800 anos. Até hoje, a luta entre as duas universidades existe em competições esportivas como a "Boat Race", duelo das equipes de remo universitárias, que existe desde 1856 e é um dos eventos do ano na Inglaterra.

A disputa também envolve avaliações de qualidade dos cursos e passa pela contagem de primeiros ministros britânicos com diploma em cada uma das "casas" (Oxford vence de goleada, por 30 a 14). Na disputa de vencedores do Prêmio Nobel, Cambridge devolve a goleada, com 118 laureados, contra 69 da rival.

Juntas, as duas cidades receberam alguns dos maiores gênios da humanidade. Dois exemplos: Isaac Newton estudou em Cambridge; Albert Einstein passou por Oxford.

No futebol, os dois clubes não replicam essa competitividade. O motivo é simples: eles sempre estiveram em níveis muito diferentes da pirâmide do futebol inglês. O Oxford chegou a disputar a elite nos anos 1980, enquanto o Cambridge perambulava por categorias inferiores.

Ainda assim, o grito do torcedor causou gargalhadas dos colegas, mas ninguém se arriscou a segui-lo. Em que outro estádio do mundo esse tipo de provocação faria sentido? Só mesmo ali, no Abbey Stadium, em um dia com futebol para todos os gostos e todas as divisões.

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