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Time da Bósnia luta por vaga histórica e expõe profunda divisão do país

O Zrinjski Mostar, atual campeão da Bósnia, entra em campo para fazer história nesta quinta-feira. O duelo contra o Breidablik, da Islândia, pode aproximar a equipe de algo inédito: uma vaga na fase de grupos da Europa League. Parece pouco, mas não é: desde a independência da Bósnia e Herzegovina, jamais um clube do país disputou a fase final de uma competição de clubes europeia.

Em uma terra apaixonada por futebol, em que é impossível caminhar por meia hora sem cruzar com uma camiseta do Barcelona, do Real Madrid, ou de Edin Dzeko (o herói local, hoje no Fenerbahçe), seria normal pensar que o país inteiro vai parar para assistir à possível façanha do Zrinjski. Mas isso não vai acontecer.

A complexidade do Estado bósnio torna inviável que a torcida se una em torno de uma única equipe —o mesmo acontece com a seleção nacional. Isso acontece porque a população da Bósnia e Herzegovina (em torno de 3,5 milhões de pessoas) divide-se em três etnias principais: os bosníacos (50%), os bósnios-sérvios (31%) e os bósnios-croatas (15,5%).

Todos eles são cidadãos bósnios, mas as etnias bósnio-croata e bósnio-sérvia são muito identificadas com Croácia e Sérvia, países vizinhos que, até o início dos anos 1990, eram parte da Iugoslávia, junto da própria Bósnia, Eslovênia, Montenegro e Macedônia do Norte, além do Kosovo, região da Sérvia autodeclarada independente e não reconhecida pelo governo brasileiro.

Para explicar essa toda complexidade, um bom exemplo é a própria cidade de Mostar, onde fica o clube, que venceu o jogo de ida, em seu estádio, por 6 a 2. Só um desastre na Islândia tira a vaga do campeão bósnio na última fase dos playoffs, onde enfrentaria o LASK Linz, da Áustria, nos dias 24 e 31 deste mês. Mesmo se perder nessa fase seguinte, a equipe garantirá uma vaga na fase de grupos da Conference League, a terceira competição do continente.

A Stari Most, em julho de 2023: reconstruída e cheia de turistas
A Stari Most, em julho de 2023: reconstruída e cheia de turistas Imagem: Thiago Arantes/UOL

Capital histórica da Herzegovina, Mostar é famosa mundialmente por seu maior cartão postal: a Stari Most, uma ponte construída no século 16, destruída na guerra dos Balcãs em 1993 e reconstruída em 2004.

Conhecida simplesmente como "Ponte de Mostar", a construção tinha como objetivo unir as duas metades da cidade. Uma delas é habitada por uma maioria de etnia croata, católica; no outro lado, vivem os bosníacos, que são maioritariamente muçulmanos.

Criada para unir as duas partes, a ponte acabou separando os dois lados. Há relatos de moradores que passam a vida inteira do seu lado da cidade, sem nunca cruzar a ponte.

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Hoje em dia, a Stari Most é Patrimônio Mundial da Unesco e virou um dos pontos turísticos mais visitados de toda a região dos Balcãs. Os moradores locais aproveitam para faturar: além das lojas e restaurantes, há grupos de jovens que passam os dias de verão saltando dos 20 metros de altura da ponte, direto no Rio Neretva; tudo em troca do dinheiro dos visitantes, claro.

Etnia, política e rivalidade

A divisão étnica, ideológica e religiosa também chega, é claro, ao futebol. O Zrinjski Mostar é o time do lado croata-bósnio, e o nome do clube não deixa dúvidas: HSK Zrinjski Mostar, em que o HSK significa "Hrvatski sportski klub" (em português, "Clube Esportivo Croata"). O escudo, também não: há o tradicional xadrez nas cores vermelha e branca, típico dos símbolos croatas.

Luca Modric jogou no Zrinjski aos 17 anos e foi eleito o melhor da Liga
Luca Modric jogou no Zrinjski aos 17 anos e foi eleito o melhor da Liga Imagem: Reprodução

O elenco atual do time tem 14 jogadores croatas, além de três bósnios com dupla cidadania. A relação com a Croácia abre as portas do time para jovens jogadores do país vizinho, que são emprestados ao Zrinjski para ganhar minutos de jogo e experiência. Foi o caso de Luka Modric, que defendeu o clube na temporada 2003-04, aos 17 anos, e foi eleito o melhor jogador do Campeonato Bósnio.

Do outro lado da ponte, está a equipe com a torcida mais apaixonada do país: o Velez Mostar. Historicamente associado a movimentos da classe trabalhadora e a grupos socialistas, o Velez é considerado um dos poucos clubes na Bósnia capaz de aglutinar torcedores das três etnias majoritárias do Estado bósnio: os bosníacos, os croatas e os sérvios. Ainda assim, a maior parte da torcida é de etnia bosníaca e de religião muçulmana.

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Torcida do Velez Mostar é a mais fanática da Bósnia, conhecida como Exército Vermelho
Torcida do Velez Mostar é a mais fanática da Bósnia, conhecida como Exército Vermelho Imagem: Velez Mostar/Divulgação

A rivalidade entre os dois times começou há mais de 100 anos, com a fundação do Velez, em 1922. Além do futebol, as ideologias políticas acirraram ainda mais os ânimos. A Segunda Guerra Mundial deixou a divisão ainda mais clara: jogadores e torcedores do Velez se aliaram ao Exército de Libertação da Iugoslávia depois da invasão alemã de 1941, e, segundo dados extraoficiais, 77 atletas e ex-atletas do clube morreram durante o conflito.

O Zrinjski, por sua vez, não se opôs ao regime nazista alemão e chegou a participar de jogos de uma liga formada no Estado Independente da Croácia. A liga ficou conhecida como "Liga Fascista", e o clube foi banido em 1945, após o fim da Segunda Guerra e só retomou suas atividades em 1992, depois que a Bósnia se tornou um estado independente. Nos meses seguintes, os conflitos decorrentes da Guerra da Iugoslávia se intensificaram no país.

As divisões no pós-Guerra

Mostar foi uma das cidades mais afetadas pela Guerra da Bósnia: o conflito entre os lados croata e bosníaco foi devastador: cerca de 2.000 pessoas morreram, segundo dados da época. A Stari Most foi derrubada pelo exército croata, em uma ação estratégica não apenas militar, mas também contra um dos símbolos da cultura dos bosníacos. Os bombardeios também destruíram 12 das 14 mesquitas da cidade na época.

Em 1994, um ano após a destruição da Ponte de Mostar, foi criada uma estrutura provisória
Em 1994, um ano após a destruição da Ponte de Mostar, foi criada uma estrutura provisória Imagem: Reprodução

A divisão chegou ao futebol. Restabelecido em Mostar e de volta às competições, o Zrinjski precisava de um estádio do lado croata da cidade para jogar. A solução foi ficar com o Bijeli Brijeg, casa do rival Velez antes da guerra, que tem capacidade para 9 mil pessoas.

Depois de perder seu campo, o Velez construiu outro estádio na parte bosníaca de Mostar, o Rodeni Stadium, com capacidade para 7 mil torcedores. A disputa entre as duas equipes no pós-Guerra é uma alegoria que ajuda a entender um pouco melhor a complexidade das relações entre as etnias que compõem a Bósnia e Herzegovina.

O Acordo de Dayton, assinado em 1995, colocou fim à Guerra da Bósnia, mas não às diferenças dentro do país. O Estado da Bósnia atualmente é dividido entre duas Entidades: a Federação da Bósnia e Herzegovina (onde está Mostar, por exemplo), com maioria de população croata e bosníaca, e a República Srpska, de maioria sérvia. Há, ainda, um "condomínio" entre ambas no distrito de Brcko, ao norte do país.

O sistema político da Bósnia é um Frankenstein quase incompreensível: são três presidentes, um de cada etnia (um bosníaco, um sérvio e um croata) que se revezam no poder a cada 8 meses, dentro de mandatos de quatro anos. Acima dos presidentes está o Alto Representante para a Bósnia e Herzegovina, que tem poder de veto e pode impor leis, com o fim de zelar pelo cumprimento do Acordo de Dayton. Atualmente, o cargo é ocupado pelo alemão Christian Schmidt.

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