Artilheiro do Brasil na Europa pode ser chamado para outra seleção em 2024
Enquanto a seleção brasileira ainda procura por um atacante para chamar de seu, o maior artilheiro do país em ligas do futebol europeu se surpreende com o próprio feito. "Rapaz, eu confesso que não sabia disso".
Do outro lado da linha está João Paulo da Silva Araújo, 35 anos, centroavante do Kairat Almaty, do Cazaquistão. O país asiático é filiado à Uefa (a organização máxima do futebol europeu), e disputa as Eliminatórias de Copa e Eurocopa pelo continente. Os gols marcados na Liga Cazaque contam para o prestigiado prêmio Chuteira de Ouro.
Com 16 gols marcados, João Paulo é o melhor brasileiro da lista da atual temporada. A liga cazaque vai de março a novembro e está na reta final. É impossível, portanto, que o artilheiro do Kairat dispute o prêmio, que em 2022-23 ficou com Erling Haaland. Mas João Paulo não parece se preocupar.
Nascido em Natal e torcedor do ABC, com uma voz tranquila e cheio de histórias pra contar, o artilheiro se orgulha de ser ídolo em um país tão distante e diferente do Brasil.
"Quando disse que viria para cá, falei Cazaquistão e minha avó disse pra eu não vir, porque tinha guerra", conta. A preocupação da avó é compreensível, mas ela se confundiu: pensou que o neto ia para o Afeganistão.
Quase cinco anos depois de chegar ao país, João Paulo é celebridade em Almaty, principal cidade do sul cazaque. Com frequência, ele tem de responder à mesma pergunta: quando vai jogar pela seleção do Cazaquistão?
"A partir do ano que vem, quando completar cinco anos no país, já posso ser convocado", afirma o camisa 11 do Kairat Almaty, quarto colocado da liga. Ordabasy (ex-time de João Paulo) e Astana, o mais rico e poderoso do país, disputam o título.
A ideia de defender o Cazaquistão motiva o atacante. Ele já foi procurado pela federação local e fez todos os trâmites burocráticos necessários. Em 2024, poderá ser chamado pelo técnico Magomed Adiyev para disputar partidas de torneios como a Liga das Nações e as Eliminatórias da Eurocopa e da Copa do Mundo.
Como a classificação para as duas competições ainda é um objetivo distante, João Paulo sonha com um confronto que seria especial. "Jogar pela seleção do Cazaquistão seria uma realização, o ponto mais alto da minha carreira. E um possível jogo contra a seleção brasileira seria ainda maior. Já poderia até encerrar minha carreira".
A receita do sucesso
Embora fale em colocar um fim à carreira depois de um hipotético Brasil x Cazaquistão, João Paulo está no auge da forma aos 35 anos. A quem pergunta a receita, ele não tem dúvidas: a resposta está no cuscuz nordestino.
O prato com base de farinha de milho é o favorito do jogador e, mesmo com todos os desafios logísticos, não pode faltar na mesa da família. "Quem vem me visitar já sabe que precisa trazer uma mala com cuscuz, farinha e feijão", brinca o atacante. Mas a brincadeira é séria: sem encontrar os ingredientes no Cazaquistão, ele precisa da ajuda de amigos e familiares para manter a reserva do "combustível" em dia.
João, a esposa e os dois filhos já estão adaptados à vida (e à culinária) do Cazaquistão. O borscht, uma sopa tradicional à base de beterraba, é um dos pratos favoritos do atacante, que também gosta de frequentar restaurantes asiáticos, especialmente coreanos. Um gosto que adquiriu nas quatro temporadas em que atuou na Coreia do Sul.
Se hoje a culinária coreana é uma opção, há mais de dez anos a história era bem diferente. Quando um jovem João Paulo cruzou o mundo para trocar o ABC pelo Gwangjiu, em 2011, a adaptação foi difícil. "Saí de Natal com 35 graus, cheguei na Coreia do Sul com -18", conta.
Ainda assim, o desafio maior não foi o clima. "Os caras me acordavam pra tomar café da manhã e tinha peixe, lagosta e polvo em cima da mesa. Eu pedia um pão com ovo", diverte-se João Paulo, que conseguiu passar quatro temporadas no país fugindo de outro prato tradicional: a carne de cachorro. "Fazia parte da cultura deles. Mas eu não tive coragem de comer não. Fiquei no ovo e no arroz, tranquilo".
Gol mais importante causou bronca
Depois de três temporadas, dois clubes e muito pão com ovo na Coreia do Sul, João Paulo voltou ao futebol brasileiro após a Copa de 2014. Ele foi para o país tratar de uma lesão no joelho e acabou ficando, em um retorno ao ABC, clube do coração.
Ao contrário da primeira passagem, no início da carreira, ele teve boas oportunidades e marcou seu gol mais importante em território brasileiro: contra o Vasco, em São Januário, pelas oitavas de final da Copa do Brasil de 2014. O jogo terminou empatado; na volta, o ABC venceu por 2 a 1 e eliminou o clube cruzmaltino.
O que era pra ser um momento especial na carreira veio acompanhado de uma bronca. O pai de João Paulo, vascaíno, não gostou de ver o filho marcando (e comemorando) contra o clube do coração.
"Meu pai sempre torceu pro Vasco, meu avô também. E eu, além do ABC, também sou vascaíno. Mas naquele dia eu falei pro meu pai: Pô, eu tenho que fazer o gol, vou fazer o quê?"
Naquela mesma Copa do Brasil, o ABC ainda venceria o Cruzeiro (3 a 2, em Natal), mas acabaria eliminado pelo critério do gol fora de casa, pois havia perdido por 1 a 0 no Mineirão.
Um Brasil longe do Brasil
A passagem pelo ABC foi uma espécie de parênteses na carreira de João Paulo no exterior. Um período que ele diz se orgulhar e se lembra com carinho, mas que se tornou uma parte pequena da linha do tempo de uma carreira que se consolidou longe do Brasil; mas nunca longe de brasileiros.
Após a primeira passagem pela Coreia do Sul, o atacante começou uma nova carreira no exterior na Bulgária. Em seis meses no Botev Plovdiv, chamou a atenção do Ludogorets, clube que domina o futebol búlgaro -- ganhou todos os títulos desde a temporada 2011-12. No clube, fez parte de um elenco repleto de compatriotas e chegou a ser treinado por Paulo Autuori, em 2018.
Na mudança para o Cazaquistão, o contato com os brasileiros também se manteve. Antes mesmo de desembarcar no país, João Paulo já recebia boas referências de atletas que atuam no futsal, esporte em que o Cazaquistão é uma das potências mundiais.
Antes de chegar ao Kairat Almaty, o atacante passou pelo Ordabasy, onde foi artilheiro da liga nacional. A ida para o atual clube também teve participação de um brasileiro. "Em um amistoso entre o Ordabasy e o Kairat, o Vagner Love veio falar comigo".
Love, hoje no Sport, tinha uma proposta irrecusável: "Vem pra cá me ajudar". Para João Paulo, era a chance de jogar com um atacante de nível internacional, com passagem pela seleção brasileira. Ele disse "sim" a Vagner Love, e na temporada seguinte a parceria estava montada. "Durou apenas seis meses, mas jogar com ele foi o ápice da minha carreira".
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