Linha no chão, caixa de papéis e balde: como Bielsa construiu sua loucura
Era um dia frio de dezembro de 2012 em Eibar, cidade de 27 mil habitantes no País Basco, norte da Espanha. Asier Garitano, um treinador iniciante, ainda se recuperava da enxurrada de emoções vividas nos dias anteriores: o Eibar, então na terceira divisão espanhola, havia eliminado o Athletic Club da Copa do Rei. Era o maior feito da história da equipe até então.
"Marcelo Bielsa está aqui e quer falar com você", disse um funcionário do clube a Garitano.
Bielsa era o técnico do Athletic Club e apareceu no centro de treinamentos do Eibar carregando uma caixa de papelão. Diante de Garitano, o técnico argentino abriu a caixa e mostrou tudo o que havia no interior: uma pilha de papéis, fitas de vídeo e anotações sobre o Eibar.
A preocupação de Bielsa era mostrar a Garitano que não havia desrespeitado o adversário, que tinha estudado em detalhes o rival da terceira divisão antes da partida que eliminou o Athletic.
A história de Eibar, narrada no livro "Las locuras de Bielsa", do jornalista Jon Rivas, ajuda a entender como funciona a mente do treinador argentino, atualmente no comando da seleção do Uruguai, que enfrenta o Brasil na terça-feira, pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 2026. Mas ela é apenas uma dentre outras tantas que constroem o personagem, às vezes chamado de louco, às vezes de gênio, quase sempre de ambos.
Andando na linha
Quem já conviveu com Bielsa costuma dizer que o treinador pensa em futebol 24 horas por dia, 7 dias por semana. Uma marca desta dedicação extrema ficou desenhada no asfalto da cidade inglesa de Leeds, última parada do argentino antes de assumir o comando da seleção uruguaia.
Pouco depois da chegada de Bielsa, a cidade amanheceu com uma misteriosa linha azul pintada no chão, desde a porta do apartamento do treinador até a entrada do centro de treinamentos do clube.
A prefeitura local entrou em contato com o Leeds United e veio a surpresa: o clube havia pintado a linha a pedido de Bielsa. O argentino queria ir para o CT andando ou pedalando todos os dias, mas sem precisar pensar em que ruas deveria virar à esquerda ou à direita.
Com a linha no chão, bastava seguir a pintura, sem desviar os pensamentos do que realmente importava: as táticas, os adversários, os jogadores. Em suma, andar na linha era ter a liberdade para focar apenas no futebol.
A tinta nas ruas de Leeds apagou-se poucas semanas depois, e o clube não conseguiu autorização para pintá-la novamente. Mas a história ficou marcada como uma das primeiras dentre várias que Bielsa colecionou na cidade.
A mensagem da piscina cheia
Entre 2018 e 2022, era impossível ter uma conversa sobre futebol em Leeds sem mencionar o nome de Bielsa. Na recepção de um hotel, em uma cafeteria ou em um táxi, identificar-se como jornalista esportivo era a senha para perguntas como "vai entrevistar o mister Bielsa?"
A curiosidade e a reverência se justificavam. O argentino mudou a história do clube, que conseguiu voltar à Premier League após 17 anos. Além do ganho esportivo, Bielsa é apontado como o responsável por uma mudança de mentalidade. E, mais uma vez, uma de suas "loucuras" é apontada como ponto de inflexão.
Quando visitou Leeds para assinar o contrato com o clube, o argentino ficou intrigado: a piscina do CT estava vazia. Ao perguntar o motivo, Bielsa ouviu que a piscina cheia custaria, em manutenção, cerca de 200 mil libras por ano (cerca de 1,2 milhão).
O argentino retrucou que, psicologicamente, faria bem para o clube encher a piscina, porque isso mandaria aos adversários uma mensagem de que as coisas estavam mudando.
Dias depois, já com Bielsa como técnico, a diretoria anunciou uma reforma da piscina. Na temporada seguinte, ela estava cheia novamente, e o Leeds conseguiu voltar para a Premier League.
O balde que virou ícone
A passagem de Bielsa em Leeds ficou marcada por uma imagem peculiar: o treinador assistia aos jogos sentado em um balde azul, que seria originalmente usado para guardar água e isotônicos dos atletas.
As loucuras de Bielsa ao lado do campo já eram famosas antes da chegada ao futebol inglês --ele era conhecido por ficar agachado por longos minutos, por exemplo--, mas o balde azul ganhou outro status: virou uma peça cult.
Vendo a repercussão do caso, a diretoria do Leeds pediu mais baldes ao fabricante, personalizou com o escudo do clube e colocou à venda na loja. O preço, na época do lançamento, era 80 libras (cerca de R$ 500), o equivalente a uma camisa oficial do Leeds.
A lenda do balde perdurou mesmo após a demissão de Bielsa, em fevereiro de 2022. Em maio deste ano, quando Sam Allardyce assumiu o Leeds para tentar evitar o rebaixamento, a mídia inglesa resgatou um vídeo de 2019 em que o veterano treinador se sentava e avaliava o "balde de Bielsa".
Na loja do clube, porém, o balde já virou história. O Leeds deixou de vendê-lo durante a temporada 2022-23.
Um consultório de futebol
Antes de chegar a Leeds, Bielsa viveu anos de instabilidade na carreira, até mesmo para alguém com o apelido de "El Loco". Depois de comandar o Olympique de Marselha na temporada 2014/15, ele começou a temporada seguinte no clube, mas saiu logo após o primeiro jogo do ciclo.
O argentino, então, ficou um ano parado. Em agosto de 2017, foi anunciado pela Lazio e ficou literalmente dois dias no cargo, sem nunca ter comandado o time. Um ano depois, treinou o Lille por 14 partidas.
Nessa época instável, Bielsa ajudou um companheiro de profissão que ele praticamente não conhecia pessoalmente: o colombiano Juan Carlos Osório.
Então treinador da seleção mexicana, Osório estava afetado mentalmente após a derrota de 7 a 0 para o Chile, nas quartas de final da Copa América Centenário, em 2016. O colombiano não foi demitido do cargo e decidiu buscar refúgio em outros estudiosos do futebol.
Osório decidiu mandar uma mensagem para Bielsa. Como resposta, recebeu um convite para encontrar o argentino em Porto Alegre, onde ele passava uma temporada entre diferentes trabalhos. Os dois passaram cinco dias juntos. "Fazíamos duas caminhadas por dia, falando sobre futebol. Eram conversas diárias de duas, três, até seis horas. Foi enriquecedor e apaixonante", disse Osório em entrevista à Televisa.
Denunciando a si mesmo
Os episódios de loucura (ou genialidade?) de Bielsa são conhecidos. Os de arrependimento, nem tanto. Um deles aconteceu em Bilbao, durante a pré-temporada de 2012-13.
Bielsa chegou ao centro de treinamento do Athletic Club, em Lezama, e viu que as obras previstas não estavam no ritmo previsto. O argentino começou a gritar com um dos engenheiros responsáveis pelo trabalho. A discussão escalou e por pouco não acabou com agressão física.
No dia seguinte, Bielsa convocou uma entrevista coletiva em que explicou os motivos de sua indignação. O treinador disse que não teve férias porque, mesmo estando na Argentina, todos os dias ficava três horas no telefone falando sobre as obras. Por isso ele ficou furioso ao ver como estava o centro de treinamento.
Apesar de ter justificado sua fúria, Bielsa foi a uma delegacia e fez uma denúncia contra si mesmo por abuso de autoridade e agressão contra o encarregado das obras. "Eu me comportei como um selvagem. Ele poderia ter me denunciado, mas talvez não fez isso porque foi pressionado pela empresa, ou pelo Athletic. Como não permitiram que ele exercesse seus direitos, eu faço isso por ele", explicou, diante dos olhares atônitos dos jornalistas.
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