Como Bielsa, um vídeo e um cozinheiro fizeram Messi jogar pela Argentina
Lionel Messi disputa no domingo (14) aquela que, salvo alguma reviravolta, será sua última final com a seleção da Argentina.
O duelo contra a Colômbia vale o título da Copa América e significa a chance de terminar no topo uma trajetória que teve críticas, derrotas e decepções, antes de se transformar em uma das mais bonitas histórias do futebol moderno: Messi, com a taça da Copa do Mundo nas mãos.
Há quem pense que essa história — cada dia mais próxima do fim — começou em 29 de julho de 2004, num amistoso que tornou-se icônico para o futebol argentino: uma goleada de 8 a 0 sobre o Paraguai, em um amistoso de seleções sub-20. O primeiro dia em que Messi vestiu a camisa albiceleste.
Mas aquele duelo, no estádio Diego Armando Maradona, é o capítulo final de uma outra histórica, que começou mais de um ano antes, em maio de 2003, em Barcelona.
Um fenômeno local
Antes de entrarmos de cabeça na história, é preciso entender o contexto da época. No início dos anos 2000, não havia redes sociais, nem acesso a vídeos e dados pela internet como dez ou vinte anos depois. O mundo ainda era das TVs de tubo, e os fenômenos realmente internacionais eram poucos.
Nesses anos pré-Youtube, os aparelhos de Barcelona e região tinham um privilégio: poder sintonizar a Barça TV, uma emissora que transmitia partidas das categorias de base do clube catalão, entrevistava jogadores e usava seus arquivos para preencher a grade.
Aos sábados, toda a manhã era dedicada a transmissões ao vivo de jogos da base e os torcedores mais atentos já sabiam que havia um fenômeno em La Masia: Lionel Messi.
O narrador daqueles jogos era Jaume Marcet. Sem querer, o jornalista acabou se tornando um dos personagens do episódio que mudou a história do futebol mundial.
"Messi já era conhecido em Barcelona, e a seleção espanhola começou a pensar em convocá-lo. Piqué, Fàbregas, Victor Vázquez, todos eram companheiros dele no Barcelona e iam para as seleções. Só que Messi não era convocado pela Argentina. E não era convocado porque nem sabiam que ele existia", explica Marcet ao UOL.
O plano espanhol
Enquanto na Argentina ninguém conhecia Messi, na Espanha já havia estratégias em andamento para tentar convencer o jovem fenômeno a aceitar uma convocação.
Os colegas de Barcelona eram uma arma poderosa. A cada vez que voltavam de uma convocação, Piqué e Fàbregas levavam recados da Federação Espanhola (RFEF) a Messi. A resposta sempre era a mesma: "Eu sou argentino, quero jogar com a Argentina".
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Quero receberQuando percebeu que os colegas não o convenceriam, a RFEF dobrou a aposta. Coube a um experiente dirigente do Barcelona conversar com o pai do garoto, Jorge Messi. O emissário era Amador Bernabéu, avô materno de Gerard Piqué. Jorge e Lionel voltaram a dizer que não.
Ginés Meléndez, responsável das categorias de base da Federação Espanhola na época, afirmou ao podcast "Leo, el argentino", da Cadena SER, que a entidade esteve a ponto de convocar Messi para uma partida da seleção sub-16, mesmo diante das negativas.
"Acabamos não fazendo isso para não criar uma crise com a AFA, que era presidida por Julio Grondona, muito amigo de nosso presidente na época", recorda.
O vídeo que mudou tudo
O cerco dos espanhóis se fechava e Messi, ainda desconhecido em seu país-natal, continuava dizendo que não. Mas, até quando? Era preciso fazer alguma coisa. E aí entra outro personagem na história: Horácio Gaggioli, que na época era um dos empresários do jogador.
Argentino de Rosário, como Messi, Gaggioli pediu um favor a Jaume Marcet, o narrador da BarçaTV que tão bem conhecia o prodígio, então prestes a completar 16 anos.
"Liguei para ele e pedi que fizesse um vídeo com algumas jogadas de Leo. Com esse vídeo na mão, eu daria um jeito de conhecerem ele na Argentina", conta Gaggioli, 21 anos depois, ao UOL.
O empresário tinha a estratégia muito bem pensada: em maio daquele ano, Marcelo Bielsa e Claudio Vivas, técnico e assistente da seleção argentina, estariam na capital catalã para ver jogos e conversar com jogadores — na época, o Barcelona tinha Riquelme, Saviola, Bonano e Sorín.
"Eu não lembro quantos minutos tinha o vídeo, mas era curto. Foi fácil fazer, porque tínhamos muito material de Messi, e ele marcava em quase todos os jogos", lembra Marcet.
Com a fita nas mãos, Gaggioli foi até o hotel Princesa Sofia. Na recepção, pediu para falar no quarto de Claudio Vivas. "Ele desceu, dei a fita nas mãos dele e falei que eram lances de um garoto argentino que estava louco para jogar na seleção argentina", relembra.
"Em velocidade normal, por favor"
O que aconteceu em seguida mudaria para sempre os rumos do futebol argentino, espanhol e mundial. Vivas subiu para o quarto, colocou a fita que recebera de Gaggioli no videocassete e apertou o play.
O assistente técnico ficou encantado com o que viu. Mais tarde, naquele mesmo dia, chamou Marcelo Bielsa para o seu quarto e mostrou as imagens ao "Loco".
O vídeo mal havia começado, quando Bielsa interrompeu Vivas. "Cláudio, coloque em velocidade normal, por favor". Quando Vivas respondeu que as imagens estavam em velocidade normal, Bielsa arregalou os olhos. Ali, Messi havia ganhado o direito de viajar — dentro daquela fita — de volta a Buenos Aires.
No retorno à Argentina, Bielsa e Vivas deixaram o VHS com Hugo Tocalli, então treinador da seleção sub-17. Em agosto, seria disputado o Mundial da categoria na Finlândia, e Messi poderia finalmente estrear pela seleção argentina.
Tocalli preferiu manter a base que havia conquistado o Sul-Americano. A Argentina, sem Messi, caiu contra a Espanha na semifinal por 3 a 2, com dois gols de Cesc Fábregas — na decisão, o Brasil venceria os espanhóis e ficaria com o título.
A dica do cozinheiro
Naquela noite de 27 de agosto de 2003, horas depois da eliminação, Tocalli recebeu uma segunda chance.
As delegações de Argentina e Espanha estavam no mesmo hotel, em Helsinque. Depois do jantar, o cozinheiro da seleção espanhola disse ao treinador argentino. "Se você tivesse trazido o garoto do Barcelona, teriam vencido".
O treinador argentino, então, perguntou: "Que garoto? Messi?"; ao que o cozinheiro retrucou: "Sim, Messi! Como pode você saber quem ele é, e ele não estar aqui?".
A cena, recriada por Tocalli em entrevista ao jornal argentino La Nación, em 2023, perdeu-se na memória de Javier Arbizu, o cozinheiro daquela seleção. No podcast "Leo, el argentino", ele diz que não se lembrava com detalhes daquela conversa.
Tocalli não se esqueceu, mas voltou a desafiar o destino. Em novembro, a Argentina foi para o Mundial sub-20, nos Emirados Árabes, de novo com ele como treinador; e mais uma vez, sem Messi.
Na fase de grupos, o time venceu a Espanha, e o treinador voltou a ouvir comentários sobre o prodígio do Barcelona. A Argentina — com Mascherano, Tévez e Zabaleta — perdeu a semifinal para o Brasil, que seria campeão sobre a Espanha: 1 a 0, gol de Fernandinho.
A tacada final
No início de 2004, a situação não parecia favorável para que Messi vestisse a camisa da Argentina. Sete meses e dois mundiais de base depois, o vídeo de Marcet e Gaggioli ainda não tinha levado o fenômeno do Barcelona à seleção do seu país.
Mas, em março daquele ano, finalmente teve início um plano para levar o garoto prodígio para a Albiceleste. Em uma reunião com Julio Grondona, presidente da AFA, Tocalli falou do jovem prodígio. O dirigente, então, deu a luz verde para uma "operação Messi".
A operação consistia, basicamente, em marcar um amistoso e convocar o jovem, já a ponto de completar 17 anos. O desfecho é conhecido — os 8 a 0 contra o Paraguai, com Messi saindo do banco e encantando a todos —, mas há dois detalhes que tornam a história mais saborosa.
O primeiro: um funcionário da Associação de Futebol da Argentina ligou para Jorge Messi, pai do jogador, e disse que queria falar com o "Leonardo Messi". Jorge respondeu corrigindo: "Ele não se chama Leonardo. O nome dele é Lionel, finalmente vocês ligaram".
O segundo aconteceu dias depois, quando um fax da AFA chegou ao Barcelona. O documento notificava sobre a convocação de um jogador para o amistoso sub-20 da Argentina contra o Paraguai. O nome dele, segundo quem viu o documento, estava grafado de maneira bem particular: "Leonel Mecci". O resto é história.
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