Brasileiro diz ter vivido 'como escravo' e foi da 6ª divisão à Bundesliga
Na sexta-feira (13), Leonardo Weschenfelder Scienza completou 26 anos. O presente foi poder jogar uma partida do Campeonato Alemão, diante de uma das torcidas mais apaixonadas do mundo: a muralha amarela, do Borussia Dortmund.
O Heidenheim, time de Léo Scienza, acabou perdendo por 4 a 2. Foi a primeira derrota da equipe na temporada, depois de acumular seis pontos em duas rodadas da Bundesliga. Um ótimo início para a temporada mais importante da história do clube. Em outubro, o Heidenheim disputará a fase de liga da Uefa Conference League, o primeiro torneio internacional de sua história.
Jogar em estádios lotados, contra equipes grandes, marcar gols, disputar uma competição europeia. A vida de Léo em 2024 é algo a que o gaúcho de Venâncio Aires ainda está se acostumando.
"Às vezes eu me belisco, dou uns tapinhas na cara, pra ver se não é um sonho", brinca Léo Scienza, em conversa com o UOL.
Parece um clichê, mas no caso de Léo a surpresa do próprio jogador se justifica. Há pouco mais de um ano, ele estava na sexta divisão alemã, jogando no time B do Magdeburg — e, mesmo assim, não era o pior momento de sua carreira.
Se voltarmos um pouco mais no tempo, as condições eram mais precárias: Léo chegou a jogar na quinta divisão da Suécia, sem receber salários, morando num sótão com outros brasileiros que tentavam a sorte no futebol. "Eu vivia como um escravo", resume.
O sonho que virou golpe
Léo Scienza começa a rememorar a própria carreira com uma frase que já serve para captar a atenção de quem escuta. "Cara, foi uma história bem diferente do normal".
O que vem a seguir não deixa dúvidas. Aos 20 anos, Léo não tinha experiência como jogador profissional. Depois de passar dois meses pelo sub-20 da Chapecoense, de tentar a sorte em peneiras de Grêmio e Inter — ambos sem sucesso — e de defender equipes de futsal, ele ouviu uma conversa que interessou.
"Eram uns empresários, que nem eram empresários oficiais, digamos assim. Eram pessoas que conheciam brasileiros que moravam na Suécia. Eu nem lembro direito como aconteceu: mas me levaram pra Suécia para fazer testes. A promessa era de fazer testes na primeira e segunda divisão", conta Léo.
Naquela época, Léo não precisava se beliscar para acordar. Chegando na Suécia, o sonho virou golpe: ele foi jogar no Fanna BK, da quinta divisão, com a promessa de ter moradia e 500 euros mensais.
"Fiquei lá um ano e meio e nunca vi um euro", lembra. A moradia era no sótão da casa do dono do time. Sem dinheiro, o pagamento vinha em forma de comida.
"A gente comia quando o dono da casa, que era o dono do time, comprava comida. Só que às vezes ele viajava e comprava comida teoricamente para uma semana. Em quatro ou cinco dias a comida acabava, e a gente tinha que ficar uns dois dias na água", recorda.
"Eu não tinha vida, não tinha dinheiro, eu não tinha 5 euros no bolso pra comprar alguma coisa no mercado. Eu estava basicamente vivendo como um escravo, cara".
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Diante de uma vida que ele mesmo definia como um "não viver", o caminho mais normal era desistir. Foi o que fizeram todos os colegas brasileiros que passaram pelo sótão, em diferentes momentos.
Mas ele decidiu insistir. Arrumou forças na família, nos amigos, na fé e no objetivo pelo qual tanto lutava. O que aconteceu em seguida pode ser explicado de várias formas: por Deus, pela sorte, por alinhamento de astros. Ou apenas por uma daquelas coincidências que muda a vida de alguém.
"O meu empresário é alemão, e o melhor amigo dele mora na Suécia. Ele sempre ia ver os jogos das divisões menores, um dia me viu e veio falar comigo. Eu falava espanhol, a gente conseguiu se comunicar. E ele falou pra esse amigo, que viria a ser meu empresário: nós temos que tirar esse garoto daqui, o nível dele é outro", lembra.
O resultado da conversa foi um teste no time B do Schalke, que disputava a quarta divisão alemã. O teste durou dez minutos: Léo fez um gol, deu duas canetas e, depois de uma disputa de bola, se machucou e teve de sair de campo.
Ele pensou que tudo tinha acabado, mas o treinador deu a boa notícia: "Os 10 minutos que vimos são o suficiente". Dias antes de fazer 22 anos, assinou contrato por duas temporadas com o Schalke II. "Foi o primeiro contrato profissional da minha vida, com quase 22 anos".
A primeira esperança era de conquistar uma chance no time principal, mas ela nunca apareceu. Depois de duas temporadas na Regionalliga, a quarta divisão, recebeu uma proposta que poderia mudar tudo: o Magdeburg, da 2.Bundesliga — a segunda divisão alemã — queria contar com o brasileiro.
Caindo quatro divisões
Depois de escalar da quinta divisão da Suécia até a segunda da Alemanha em dois anos, o final feliz parecia próximo para Léo. Mas no meio do caminho tinha um técnico: o alemão Christian Titz.
"Normalmente, no papel, é um passo bem legal. A 2.Bundesliga tem um nível parecido com o dos times do meio da tabela pra baixo da Série A do Brasileirão. O nível é muito bom. Mas eu não me dei bem com o treinador. Ele me tratava um pouco mal porque eu não falava muito bem o alemão ainda", recorda.
O resultado foi uma queda de quatro divisões: o brasileiro foi jogar no time B do Magdeburg, que disputava a sexta divisão.
Entre atletas e equipes amadores e semi-profissionais, Léo sobrou: em 10 jogos, foram 13 gols e sete assistências. "Fiquei seis meses jogando nesse nível. Foi horrível, horrível. Foi uma fase muito ruim, que não dava pra entender o porquê", lembra o atacante.
Foi então que, outra vez, o roteiro da vida de Léo Scienza mudou.
Ídolo na cidade de Einstein
A cidade de Ulm, no sul da Alemanha, é famosa por ser a terra da Albert Einstein e por ter a igreja mais alta do mundo.
Na temporada 2023-24, Ulm também foi a cidade do melhor jogador da terceira divisão da Bundesliga. Foi lá que Léo voltou a subir na carreira, depois de seis meses no calvário da sexta divisão pelo time B do Magdeburg.
"O Ulm foi um dos times que se interessou por mim, depois dessa temporada difícil. Eu fui lá, falei com o treinador, foi uma conversa maravilhosa. O time deles acabava de subir pra terceira divisão, então a meta era permanecer na 3.Bundesliga. Já seria maravilhoso", conta.
Só que o Ulm arrebentou: foi campeão da terceirona com 10 pontos de vantagem sobre o vice-campeão e teve o brasileiro como principal jogador. Foram 12 gols, 17 assistências e atuações que chamaram a atenção de times da segunda e da primeira divisão.
Quando a proposta do Heidenheim chegou, o brasileiro fez um pedido: poder continuar vivendo em Ulm, a 50km de distância. O clube aceitou. "A cidade é maravilhosa. Encontrei a felicidade, encontrei amigos, um clima bom".
O sonho é real
Chegar à Bundesliga depois de passar por tantos obstáculos já seria um prêmio, mas o destino tem dado mais motivos para Léo se beliscar a cada manhã. Ele ainda dá seus primeiros passos na elite do futebol europeu, mas já está na história do Heidenheim.
"O primeiro jogo foi pela Copa da Alemanha, eu fui titular e dei uma assistência. O segundo foi pela Conference League. Foi o primeiro jogo internacional da história do clube: vencemos por 2 a 1 e eu fiz o gol da vitória", diz, consciente de que o nome está gravado na memória dos torcedores.
O primeiro gol na Bundesliga aconteceu na vitória por 4 a 0 sobre o Augsburg, já na segunda rodada.
A ascensão de Léo já chamou a atenção do técnico da seleção; não a brasileira, mas a de Luxemburgo. Ele tem passaporte do país, por descendência, e em tese poderia defender a seleção nacional.
Na prática, há um detalhe que complica as coisas. Pelas novas regras da Fifa, ele teria de morar 5 anos no país. "Eu não tenho planos de morar em Luxemburgo, nem de jogar na liga de lá, então não vai ser possível", diz.
Sem Luxemburgo, restam duas opções: a seleção brasileira e a alemã —ele deve receber a cidadania em breve. Mas, nesse assunto, o atacante coloca os dois pés no chão.
"Isso é uma coisa que nem me passa pela cabeça, de verdade. E nem passou em momento algum, porque agora é a primeira vez que cheguei nesse nível. Virar uma referência nesse nível para conseguir chegar a uma seleção é outra história", acrescenta.
A seleção de Léo, hoje, é o Heidenheim. Cada partida é especial de alguma forma para quem há cinco anos estava sem esperanças, num sótão no interior da Suécia, esperando que o destino (ou Deus, ou o universo) mudasse o rumo das coisas.
Seis anos depois de deixar o Brasil e ser vítima de um golpe, dá pra dizer que as coisas mudaram, sim.
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